EXPRESSO/ Revista de 05 - 11 - 1994, pp. 96-99
Na inauguração do Museu Arpad Szenes e Vieira da Silva
«De volta a casa»
Vieira da Silva e Arpad Szenes já têm o seu museu em Lisboa. Reunida uma vasta colecção num espaço digno, espera-se que não lhe faltem os meios
No início, tratava-se apenas do projecto de um centro de estudos onde se reuniria a documentação dos dois pintores, utilizando a sua antiga residência e atelier do número 3 da Rua Alto de Santa Catarina, ao Jardim das Amoreiras. Arpad Szenes já tinha morrido, em 1985, e Maria Helena Vieira da Silva preocupava-se com o destino de um espólio considerável de memórias e trabalhos das duas longas carreiras, constituido por centenas de desenhos ou pinturas sobre papel e também por arquivos de correspondência, catálogos e livros, que, segundo a vontade da pintora e o parecer dos seus amigos, não deveria dispersar-se ou entrar no comércio.
A ideia de um museu só apareceu mais tarde, na mesma sequência dos gestos de reaproximação entre a artista e o país natal com que se curavam as feridas abertas pela recusa da nacionalidade em vésperas da Segunda Guerra. No entanto, a sua concretização, na dependência da Fundação criada em 1990 com o nome de Arpad Szenes e Vieira da Silva, acabou por ultrapassar a do centro de estudos, cujas obras de instalação só se iniciarão no próximo ano (*). Lisboa passou, pois, a contar com um novo museu, inaugurado esta semana. O terceiro aberto neste ano de capital cultural, embora à margem do programa oficial, ao contrário do que sucedeu com os museus do Chiado e da Música, vá-se lá saber porquê....
A documentação referida, inventariada em cerca de 1500 peças dos dois pintores, incluindo os desenhos, estudos e esboços sobreviventes de uma selecção em que Vieira da Silva participou — mais algumas pinturas sobre tela da sua coleção pessoal que agora se expõem —, e também a correspondência com interlocutores portugueses e cerca de 600 quilos de catálogos parisienses, já tinha discretamente chegado a Portugal há alguns anos, ao cuidado da Gulbenkian, e fica a aguardar futuros trabalhos de pesquisa que deverão animar a actividade do museu e do centro de estudos.
Em Julho, ao cabo de muitos meses de negociações com o governo francês (ver EXPRESSO/«Revista» de 19 de Março de 1994), chegaram as 38 obras doadas a Portugal e ao museu pelo testamento da pintora, falecida em 6 de Março de 1992. Apesar de preparada em contacto com as autoridades oficiais de Paris, uma mudança de governo e a demora negocial portuguesa transformaram a isenção de direitos alfandegários dessa doação num episódio obscuro, só resolvido por um acordo bilateral com efeitos alargados a outras acções de incidência cultural.
Mas para que o museu pudesse apresentar, no momento da sua inauguração, um panorama representativo da obra de Vieira da Silva e de Arpad Szenes, foi necessário reunir ainda, a essas duas doações sucessivas da pintora, uma parte considerável do acervo que foi sendo adquirido ao longo dos anos pela Fundação Gulbenkian e, em especial, também a título de depósito, duas dezenas de pinturas pertencentes a Jorge de Brito, o mais importante coleccionador mundial da artista. De um total de sete dezenas de trabalhos fazem parte também três obras do Metropolitano de Lisboa — e nenhuma das colecções do Estado, significativamente.
ESPAÇO E ACERVO
Para instalar o museu, a antiga Fábrica dos Tecidos de Seda, cedida pela Câmara de Lisboa, foi readaptada às novas funções com uma assumida sobriedade arquitectónica (talvez excessiva) que procurou manter a memória da traça anterior — seguindo o desejo expresso pela artista. O projecto, custeado pela Fundação Gulbenkian em 275 mil contos, juntamente com fundos do Prodiatec, foi da responsabilidade do arquitecto Richard Clarke com a colaboração de José Sommer Ribeiro, que é o primeiro director do museu, também por sugestão de Vieira da Silva.
Nesta reforma arquitectónica foi respeitada a separação dos dois edifícios do antigo complexo fabril — um de traçado pombalino, de dois andares, com fachada para a Praça das Amoreiras, outro lateral, com uma extensa nave que era circundada por uma galeria — e o seu interior, parcialmente interligado, desenvolve-se agora em quatro pisos, numa minuciosa conquista dos espaços necessários para alojar as múltiplas funções exigidas a um museu vivo.
O hall de entrada e de distribuição dá acesso directo a uma pequena galeria de exposições temporárias e também ao posto de recepção e venda de publicações, aos serviços administrativos e a uma cafetaria, abrindo-se ainda para a escadaria, quase monumental, de acesso ao piso superior. É aí que se situa a zona de exposição permanente do museu, num espaço amplo e luminoso com 90 metros de superfície parietal útil, sobre o qual se manteve visível o vigamento de sustentação do telhado, aberto para permitir a iluminação natural. A forte presença das asnas, que marcam todas as fotografias do lugar, não interferem com a visibilidade das pinturas — e não deixam de estabelecer algum associação com a geometria estruturante dos espaços pintados por Vieira da Silva.
Dessa vasta galeria tem-se acesso a quatro salas do edifício pombalino que prolongam a zona do museu em espaços de maior intimidade (mais 100 metros de «cimaise»). Um segundo andar sobre este mesmo corpo, aproveitando o vão do telhado, servirá de biblioteca e centro de investigação; por outro lado, sob a zona fabril, foram abertas uma sala polivalente com cem lugares, dotado de cabines de tradução, a área das reservas e uma oficina.
A montagem do acervo foi feita conjuntamente por Sommer Ribeiro e Guy Weelen(**), antigo secretário, colaborador e biógrafo da pintora que integra também a administração da Fundação. O percurso do visitante confronta-se, logo na zona da escadaria, com obras da juventude e trabalhos decisivos do processo de constituição da linguagem característica de Vieira da Silva, e também do seu marido, em peças que foram muitas vezes apresentadas nas suas retrospectivas.
Entre essas obras marcantes destacam-se a Composition, de 1936, onde uma estrutura dinâmica vertical se desenvolve em rotações laterais que contrariam a visão ilusionista de um espaço definido por uma instável perspectiva, e um Enfant au Cerf-volant, de 1935, de Arpad, onde um tema persistente da sua inicial figuração exibe um colorido de rara intensidade. A seguir, já à entrada do grande salão, está o decisivo Atelier, Lisbonne, de 1934-35, obra-charneira e súbita descoberta do que viria a ser a originalidade da pesquisa sobre a profundidade espacial que, anos mais tarde, virá a aprofundar-se na sua obra («Interessei-me pela perspectiva, porque já ninguém se interessava por ela», citação de Dora Vallier, 1982) — em paralelo com outra peça marcante, La Rue, le Soir, de 36. Neste percurso inicial, dois auto-retratos, incluindo o surpreendente Autoportrait à la Pupille Rouge, de Arpad, ainda dos anos 20, e outras obras exemplares dos primeiros anos de trabalho de Vieira, Les Balançoires e L'Arbre en Prison, ou do seu marido, Villa des Camélias e L'Obstacle.
ITINERÁRIOS
A seguir, o espaço bifurca-se numa área menor dedicada ao pintor húngaro, que mostra uma boa síntese do seu paisagismo abstracto, e numa longa galeria preenchida apenas com obras da maturidade parisiense de Vieira da Silva. Aí se sucedem os exemplos das suas estruturações arquitecturais da superfície pictural, em desmultiplicações de planos que reconstroiem sob formas abstractas a paisagem das cidades, em espaços labirínticos ou perspectivas ascencionais, cuja sistemática construção ortogonal se estrutura sobre ínfimas quadrículas de cor e de luz, em subdivisões até ao infinito. Em destaque, no polo oposto da galeria, duas peças maiores, Au Fur et à Mesure, de 1965, e La Biblioteque en Feu, de 1970-74.
Nas quatro salas autonomas mostram-se igualmente séries de pinturas sobre tela, com um primeiro espaço dedicado à obra inicial de Arpad, onde é patente um imaginário poético próximo do surrealismo; uma sala com «pinturas negras» de Vieira, exemplos do uso construtivo do preto como cor e também de uma inquietação que atravessa parte da sua obra tardia; outra com retratos cruzados e auto-retratos, num espaço de representações da intimidade do atelier; e, por fim, uma nova selecção de pinturas de Vieira da Silva, confrontando modelos diferentes do grafismo e da mancha como elementos estruturantes, em peças de primeira importância como Les Pistes e Bataille des Rouges et des Bleus, ambos da colecção Jorge de Brito, ou Landgrave, de 1966, da Gulbenkian.
Respeitando embora a experiência de Guy Weelen e Sommer Ribeiro, feita de um longo contacto com as obras dos pintores e do comissariado de muitas outras exposições, é possível interrogar, entretanto, se o efeito alcançado é sempre o mais adequado ao contacto renovado com esta pintura subtil mas também excessivamente laboriosa e por vezes repetitiva. A preferência por apresentar um grande número de obras (tal como já sucedera na exposição da Europália) e uma escolha que parece desejar evitar as oposições entre trabalhos pertencentes a pesquisas diferenciadas, ou contrastes mais fortes entre dominantes cromáticas e construções formais, tendem a uniformizar por vezes o percurso.
A concentração numa sala autónoma daquelas pinturas mais angustiadas, não conformes com a imagem de lirismo que é convencionalmente atribuído a Vieira, bem como a colocação de outras obras menos disciplinadas na última sala do percurso (Landgrave, L'Infinit Turbulent, de 1985, com a sua alongada composição branca de espaços em desiquilíbrio, e Le Retour d'Orphée, de 1982-6, onde a tensão das linhas se abre para o abismo), comprovam aquela opção tranquilizante, ou amável, que parece menos aliciante para o espectador actual.
Também algumas obras muito conhecidas do património da Gulbenkian (que tem obviamente toda a legitimidade para as conservar na sua sede) podem ser apontadas como exemplos capazes de criar situações de dinamismo e surpresa num «continuum» expositivo tendencialmente monótono: a grelha perspéctica em azul de Les Héros, onde a figura humana que se dissolve no espaço, de 39; a História Trágico-Marítima, de 44, onde é a figuração que se estrutura como malha espacial; ou o Aqueduc, de 1955, uma composição sobre uma larga quadrícula vermelha, são trabalhos que poderiam entrecortar um percurso onde também se nota a falta do tema dos jogadores de xadrez.
No entanto, deve assinalar-se que, embora partirndo de um leque reduzido de obras, foi possível propor uma panorâmica bastante completa do trabalho dos dois pintores, ultrapassando as limitações de partida de muitas outras casas-museu e as fronteiras de uma selecção que se poderia supor marcada pelas obras de carácter intimista conservadas no espólio dos artistas.É, de facto, de um verdadeiro museu que se trata.
Entretanto, na sala das exposições temporárias, apresenta-se uma primeira mostra dedicada à «presença de Portugal» na obra dos dois pintores, cumprindo uma mesma estratégia de acompanhamento sintético de toda a sua evolução cronológica, para a qual foi possível contar com peças de numerosas colecções particulares. Em produções genericamente identificadas como abstractas, a presença de uma original inspiração paisagística pode conduzir a uma pesquisa da espacialidade pura ou aspirar a uma referencialidade poetizada, que por vezes só os títulos denotam.
Fica a aguardar-se que o novo museu venha a dispor de meios para não se imobilizar como um depósito tumular, tanto mais que ele conta à partida com a credibilidade internacional que lhe é assegurada pelo único nome português que faz parte das histórias da arte do século XX. A inauguração não teve, no entanto, na ausência inesperada do primeiro ministro e com a indisponibilidade da SEC para convidar o ministro da Cultura de França — segundo informações de fonte parisiense que não foi possível confirmar em Lisboa, mas essa falta arrastou a ausência de outras personalidades do mundo das artes —, o eco externo desejável, que valorizasse o novo museu como um pólo real e simbólico de cooperação cultural entre os dois países. O que significa que, sem uma forte mobilização do Conselho de Patronos da Fundação e de uma prevista Associação de Amigos do Museu(***), o futuro não está assegurado. Porque a inauguração foi apenas uma primeira batalha.
* O centro de estudos não chegou a entrar em funcionamento.
** Guy Weelen, 1919-1999.
*** A Associação de Amigos do Museu só veio a ser activada recentemente, sob a direcção de Maria Manuel Pinto Barbosa, e não tem ainda notoriedade reconhecida.
Olá Alexandre,
Incrível (re)ler o seu texto agora. Passados 13 anos e a entrarmos no centenário da Vieira...
Para quando o presidente do Conselho de Administração? Para quando a Direcção do Museu? Para quando o Serviço Educativo? Para quando a abertura em pleno do Centro de Documentação? Para quando o tal Centro de estudos/atelier-museu? Para quando...os quadros?(!!)Para quando os meios para uma programação atempada (com produção de exposições, publicações, etc) para lá dos limites da resistência?
Como é que é possível?! Que não lhe faltem meios. É o mínimo que se pode dizer...
Posted by: Ana Ruivo | 10/18/2007 at 16:59