1
um filme produzido em 1979, entrevistas conduzidas por Barbara Rose e Susan Ginsburg; realização de Michael Blacwood
RAUSCHENBERG
(Artes e Letras)
Domingo, TV2, 21h40
Expresso/Cartaz data ? 1994 / título ?
Em 1964, o grande prémio da Bienal de Veneza foi atribuido a Bob Rauschenberg, consagrando o fim da hegemonia parisiense sobre o mundo da arte. O que a primeira geração de Nova Iorque não conseguira, o reconhecimento internacional, surgia então sob a vaga da Pop, depois da reconstrução europeia, da guerra fria e do efeito Kennedy <na foto, Retroactive II, 1964>. Mas R. não era um artista Pop — e, de facto, o programa desta noite, também magnífico, deveria ter precedido o «Artes e Letras» da semana passada, sobre Lichtenstein.
Produzido em 1979 e centrado na retrospectiva de 1977 no MoMA, o filme constitui um precioso testemunho histórico, graças em especial aos numerosos testemunhos de John Cage, Merce Cunningham e do próprio pintor, recolhidos em entrevistas conduzidas por Barbara Rose e Susan Ginsburg (realização de Michael Blacwood). A memória dos anos 50, onde tudo começou, é por vezes já nebulosa, mas é essencial recordar o clima genésico do Black Mountain College, de North Caroline, em 1948-49 e em 1951, onde o ensino «disciplinador» de Albers, vindo da Bauhaus, se encontrava com a atracção pelo budismo zen e com uma vontade de «abolir as fronteiras entre a arte e a vida» (Cage) que constituia uma interpretação livre de Duchamp.
Mais facilmente se aboliriam as barreiras entre autores e géneros artísticos: os quadros brancos de R., de 1949, precedem o silênco de 4' 33'', de Cage, e o primeiro «happening» é de 1952. Entre 55 e 65, o pintor foi «cenógrafo» e director técnico da Merce Cunningham Dance Company e em 63 criou e interpretou (sobre patins) uma coreografia intitulada Pelican (que o filme também recorda).
Essa vontade de acção colectiva continuou com a Experiments in Art and Technology (EAT), de 1966, e veio até ao presente, sob a forma de uma utopia já algo fatigada, com a Rauschenberg Overseas Cultural Interchange (ROCI), inaugurada em 1985 e dedicada à paz mundial, como uma retrospectiva itinerante que se alimentava de produções mais ou menos colectivas realizadas em e sobre diferentes países, iniciada no México e com passagem pela China, o Tibete, Cuba, Malásia, etc, até se encerrar em 1991 na National Gallery de Washington.
No documentário revêem-se
os quadros negros e vermelhos de 52-53 e recorda-se o gesto ambíguo do
apagamento de um desenho de de Kooning e a admiração por Duchamp, em
depoimentos que contrariam as versões da história mais fácil: o «ready
made» era entendido como uma «belo objecto» e não se reconhecia a
negatividade do dadaismo. São dados que ajudam a ver as «combine
painting» de R., a sua criação mais original, numa dimensão pictural
que prolonga a «action painting» sem conteúdo expressionista nem
simbólico, ao mesmo tempo que se abria a possibilidade de um realismo
original, onde os objectos (apropriados, reproduzidos) são apresentados
e não representados.
As consequências dessas obras seriam
universais, actualizando sob uma nova sensibilidade as invenções de
Picasso, Schwitters, Cornell e mesmo Burri, que conheceu em Itália, mas
também é assinalável a ausência de memória histórica do discurso de R.
e de Cage.
Uma frase de Gombrich, de 1965 (citada no livro
indispensável de Irving Sandler <The Triunph of American Painting, Le Triomphe de l'Art Américain, Les Années Soixante, ed. Carré>), é um lúcido juízo sobre R., mesmo que se
mantenha toda a admiração pelas suas obras iniciais: «Alguns artistas
contemporâneos, nomeadamente R., estão fascinados pelos desenhos e as
texturas das velhas paredes decrépitas, com os seus cartazes lacerados
e as suas manchas de humidade. Ainda que não goste da obra de R., não
posso impedir-me de ver essas coisas com olhos diferentes depois dos
seus quadros».
2
ROBERT Rauschenberg, fotografias e «Photems» (montagens
fotográficas sobre painéis de aglomerado e alumínio, de 1980-81) — Galeria Cobo e Alexander, Madrid
in EXPRESSO/Revista de 27-Fev.- 1993, pp 58-61
in MADRID “Depois do quadrado branco” (...Madrid, à margem do Arco)
ROBERT Rauschenberg, com as suas fotografias e «Photems» (montagens
fotográficas sobre painéis de aglomerado e alumínio, de 1980-81) —
mostradas na Galeria Cobo e Alexander, até 24 de Abril —, é o antídoto
necessário contra o excesso de metafísica e subjectivismo romântico,
graças a uma obra que é sempre realizada «num espaço menos autodefinido
como arte» (Horácio Fernandez, catálogo).
Uma primeira série, editada em 1980 mas realizada 30 anos antes, é
testemunho de uma inicial hesitação entre a carreira de fotógrafo e a
de pintor, e em especial da vontade de reinscrever as imagens do real
na superfície do quadro. Uma segunda série de fotografias («In+Out City
Limits»), de 1979 a 1981, desenvolve-se como um inventário documental
da cidade, próximo do olhar de Robert Frank: Rauschenberg colecciona
fragmentos, recolhe imagens com um olhar neutro, não interessado no
excepcional ou no simbólico, mas na indiferençiação e na banalidade da
experiência urbana americana; as suas imagens são despidas de
conotações emocionais e não procuram definir um lugar preciso.
Mas as fotografias são também materiais destinados a integrarem as
«combine paintings» e, tal como os objectos que recolhe como elementos
de trabalho, servem-lhe para limitar a projecção de intenções ou
sentimentos no gesto de pintor («Não quero que a minha personalidade
esteja presente na obra»). Nos «Photems» elas associam-nas sobre
painéis recortados em formatos irregulares, geralmente verticais,
ditados por uma composição não narrativa e onde as simetrias ou
oposições de formas não se manifestam como procurada desocultação de
sentidos ou sistema hierarquizado. Se a referência ao totem é
explicitamente convocada, opondo a função primitiva à cidade moderna, a
cultura urbana de que eles são a memória não se chega a constituir como
uma unificada imagem simbólica. Eles são, de facto, testemunho de um
universo caótico, onde a tecnologia se cruza com a ruína numa
permanente labirinto de experiências onde tudo está desorganizada e
simultaneamente presente.
3 - 1997 Diccionário Pop
Expresso Revista, 27-09-1997 (ed. ver Pop)
RUPTURA: Rauschenberg «inventou uma superfície pictural que deixava o mundo invadi-la de novo», disse Leo Steinberg, numa das mais brilhantes defesas da novidade decisiva que está na origen da Pop. Em diálogo com a leitura de Greenberg sobre o modernismo, que reduzia todos os valores artísticos ao progresso da organização formal, até à afirmação de um espaço plano sem lugar para artifícios ou ilusões, Steinberg defende que, em Rauschenberg, «o plano do quadro é o equivalente da consciência mergulhada no cérebro da cidade»: «a superfície plana que recolhe informações é radicalmente diferente da tradicional "janela aberta sobre o mundo" que corresponde opticamente ao campo visual do homem». Chama-lhe uma pintura «pós-modernista, que permitiu ao curso da arte tornar-se mais uma vez não linear e imprevisível». Até então, um quadro fazia alusão ao mundo natural, referia-se desde a Renascença «ao facto de olhar»; com Rauschenberg e Jasper Johns, importa o «fazer», «passa-se da natureza à cultura» e «a pintura acabada não representa nada mais do que ela é realmente».
Comments