A 1ª exposição da pintura de Picasso em Portugal foi há dez anos. As obras datavam de 1967 a 1972 (circa 68, como dizia o outro). No mês anterior, a "Suite Vollard" tinha sido inaugurada em Cascais.
Expresso Cartaz de 1 Nov. 1997 (capa)
"Picasso contemporâneo"
Museu do Chiado
O MOSQUETEIRO foi o último personagem a entrar na galeria das criações
de Picasso. A gola de renda, a cabeleira encaracolada, a barbicha
afiada, o bigode espetado — e, eventualmente, o chapéu de plumas, a
espada e os sapatos de fivela — definem a sua figura vinda do passado,
da Espanha do Século de Ouro e da Ronda da Noite de Rembrandt. Aparece
em desenhos dos finais de 1966, quando Picasso começava a sair da
demorada convalescença que se seguira à intervenção cirúrgica do ano
anterior (ablação de dois terços do estômago), e vai acompanhá-lo ao
longo de mais cinco anos de trabalho. Sem contar com as gravuras, o
mosqueteiro reconhece-se em 450 pinturas e desenhos, na produção
torrencial e tumultuosa que realiza entre os 85 e os 90 anos (Picasso
deixa de trabalhar no Outono de 72 e morre em 8 de Abril de 73).
É o último Picasso que está presente no Museu do Chiado, na primeira
exposição da sua pintura que desde sempre se mostra em Lisboa. Não se
tratou, agora, de fazer a impossível síntese de uma obra desmedida, que
pretendesse recuperar de uma vez a «falha traumática que impediu
gerações sucessivas de artistas e amadores do contacto directo com uma
das mais impressivas revoluções do imaginário do século», como escreve
Raquel Henriques da Silva no catálogo, referindo-se, em geral, à
«invisibilidade nacional» da arte moderna. Na realidade, esta exposição
de obras afinal muito recentes — note-se que são posteriores à quase
totalidade das que apresentam no CCB os anos Pop de 60 — tem também o
mérito de fazer vacilar as cronologias simplificadas que parecem
sujeitar a arte a um devir evolucionista de curtíssimos ciclos, quase
sempre redutor e niilista, ao mesmo tempo que nos faz participar da
lenta e mais recente ainda descoberta da importância da obra tardía de
Picasso (desta vez quase sem atraso, portanto).
É esta a primeira vez que ao tema do mosqueteiro é dedicada uma exposição monográfica, apontando-o como uma presença maior da obra final de Picasso e questionando o sentido dessa figura de outros tempos que surgia no início de uma derradeira fase de vitalidade criativa, tão explosiva como soberana. O mosqueteiro reconhece-se aqui como uma espécie de alter-ego do pintor, de auto-retrato metafórico, sujeito de um último confronto com os seus contemporâneos de eleição, Greco, Velazquez e Rembrandt, referidos explicitamente em alguns destes quadros e desenhos. Nascido num período que pode ser visto como um derradeiro combate contra o envelhecimento e a morte, ele é igualmente o protagonista de uma última luta com a pintura, que é mais forte do que o pintor mas está tão ameaçada de morte como ele — segundo dizia Picasso, que assistira ao fim do academismo «pompier» e à academização de sucessivas vanguardas.
A esse último período, ao mesmo tempo «sombrio e alegre», «mais vivo que nunca apesar dos avanços da morte», Michel Leiris aponta toda a ambiguidade de um mozarteano «dramma giocoso» (drama jocoso): o mosqueteiro é o fidalgo orgulhoso e patético, o pintor e espadachim burlesco, o herói mascarado de romance picaresco, trazido do «Grande Século» por um artista que ri da sua decadência física e continua a criar, nas suas séries paralelas de nus femininos, retratos de Jacqueline, pares, beijos, etc, as mais irreverentes pinturas do seu tempo. Com «a desenvoltura de um desenho libertado de todos os condicionamentos estilísticos e a intensidade das cores» (Leiris), Picasso desafia o tempo e todos os limites, possuído pela urgência de prosseguir infindavelmente um jogo sem regras estabelecidas, onde em cada quadro se convocam infindáveis memórias da pintura e ela novamente recomeça («Je n'ai fait seulement que commencer», citado por Hélène Parmelin), construindo-se sempre sobre o máximo risco de a destruir.
Quando foram mostradas pela primeira vez, no Palácio dos Papas de Avignon, em 70 e em 73, poucos foram os que souberam admirar a prodigiosa lição de vitalidade e invenção do velho pintor e lhe reconheceram um lugar no seu tempo. Mesmo um dos mais próximos comentadores, Douglas Cooper, falava de «garatujas incoerentes executada por um velho frenético». A resposta foi mudando nos anos seguintes, desde as exposições de Basileia (1981, «Picasso, das Spätwerk), do Guggenheim (83, «The Last Years») e «O Último Picasso», 87-88, Tate Gallery e Centro Pompidou. Mas, hoje ainda, esta exposição lisboeta não é, «apenas», a oportunidade de visitar um pintor moderno consagrado e arrumado numa prateleira histórica; é o encontro com uma obra contemporânea e um desafio colocado a um presente que raramente consegue erguer-se sobre a sua gigantesca herança.
Comissariada pela directora dos Museus de Arles, Michèle Moutashar, a partir da colecção de desenhos que o pintor ofereceu ao Museu Réattu, «Picasso e o Mosqueteiro/Le Final des Mousquetaires» é uma magnífica pequena exposição. Com um total de 39 obras datadas de 1967 a 72, incluindo 16 pinturas mais desenhos e gravuras, é uma produção original para o Museu do Chiado e, como se disse, uma abordagem monográfica inédita. Feita de peças de excepção, mesmo se é em geral impossível fazer chegar a Portugal empréstimos dos museus centrais (ressalve-se a presença de uma tela do Metropolitan de Nova Iorque), e continuada por um catálogo onde os breves textos de Michèle Moutashar são sempre preciosos apoios de informação e de iluminação, escritos com o fulgor de quem se deixa seduzir pelo jogo da pintura.
Na entrada da Sala dos Fornos, os primeiros trabalhos expostos colocam o personagem do mosqueteiro sob a dupla invocação de Rembrandt e Velazquez e, por outro lado, na descendência de um tema mais amplo, o pintor e o seu modelo, que atravessa a obra de Picasso desde o regresso à figuração de 1914.
Rembrandt é explicitamente representado nos pequenos desenhos que envolvem uma Cabeça de Mosqueteiro desenhada e estava de há muito (desde as gravuras da «Suite Vollard», de 34, ainda visíveis em Cascais) presente na sua obra, em retratos e na revisitações de alguns dos respectivos temas. Esse fascínio por Rembrandt, pelo pintor e pelo mais exímio dos gravadores, podia associar-se então ao exemplo da absoluta liberdade que o holandês praticara na sua obra mais tardia, com o risco da incompreensão dos contemporâneos (tal como sucedia nas últimas décadas de Picasso). E é com os sucessivos auto-retratos onde Rembrandt observava a sua decadência física que Picasso partilha a interrogação inquieta e desapiedada sobre o seu próprio envelhecimento como homem e como pintor. Os olhos vazios deste mosqueteiro são dois terríveis buracos negros que olham a morte ao espelho.
Velazquez está certamente presente no Homem com Gola de Renda, mas Picasso já o tinha directamente defrontado na sua série sobre As Meninas, de 57, e é com Rembrandt que o diálogo continua em Homem e Mulher Nua, onde retoma os gestos de A Noiva Judia. Aí, tal como sucede em Nu de Pé e Cabeça de Mosqueteiro e Nu de Pé e Mosqueteiro Sentado, trata-se de retomar o tema do pintor e do modelo, mas o quadro deixa de fazer referência ao espaço do atelier bem como ao trabalho do pintor diante da tela, com a dupla presença do modelo e da sua representação. O cenário desaparece e ambos os personagens ocupam um lugar frontal, nascem do quadro com a presença imediata e directa de um reflexo no espelho, com os olhos bem abertos de quem se olha para dentro de si mesmo, sem a mediação distanciadora que antes era o interrogar da obra realizada. O olhar penetrante ou a «mirada fuerte» de Picasso não nasce aqui de um teatro erótico de posse, desejo ou violação, e a figura feminina vai sendo sucessivamente mulher-modelo, criação arquetípica e presença sonhada.
Na segunda sala, os mosqueteiros fumam cachimbo, atributo que lhes acentua o arspecto paródico de espadachins de opereta. Noutras telas que não vieram a Lisboa, o mosqueteiro também maneja o pincel, clarificando o trânsito das identidades, e nos quadros exibidos adiante ver-se-á que o grande retrato de aparato se completa com a espada. São sempre atributos da virilidade, mas o cachimbo, presente noutros inúmeros fumadores dos últimos anos de Picasso, confere também aos personagens um aspecto mais pensativo e nostálgico. Picasso fora proibido de fumar em 65 e essa privação associa-se à perda de outros prazeres, como o próprio declara a Brassai: «Foi a idade que nos forçou a parar, mas continua o desejo de fumar. É o mesmo quanto a fazer amor. Não fazemos mais mas ainda desejamos.»
Na segunda galeria por onde continua a exposição, três outras telas de data posterior, interrompendo a sequência das gravuras e desenhos, estabelecem uma diferente e crescente intensidade dramática do itinerário, sem nunca se tratar de expressionismo, a declaração de estados de alma, mas sempre de fazer coincidir com a construção-desconstrução do corpo, na dissolução das formas e na tensão que ainda as conjuga, a sorte da pintura. Richard Wollheim diz que «para Picasso a arte é o remédio vital, sobretudo quando se pratica como uma extensão da vida» (Painting As an Art), mas não é da busca da salvação que se trata. Identificando-se a pintura e o pintor no desafio de um último prolongar de todos os limites, a sua obra mantem intacta o questionamento dos poderes da arte e, contra todas as versões de puritanismo, dos poderes da imagem.
O primeiro espaço da exposição é feérico, na explosão do humor e da imaginação das figuras, nos achados de um desenho-pintura limitado ao essencial, na festividade da cor — ou por vezes apenas a branco e preto, construindo rapidamente os volumes do corpo com o vazio da tela por pintar. Assiste-se, neste prolongar frenético da vida e da pintura, à conquista de uma facilidade que pode ser o reencontrar da urgência despreocupada da infância. No segundo espaço, a diversidade dos suportes traz o emprego mais narrativo da gravura, que já não é o espelho público do pintor mas o detonador de uma incontinência voyeurista mais privada, de um imaginário erótico com curso livre, mais obscuro e mais cruel, onde o atelier se muda ainda em cena de bordel. Traz também o desenho, brincado na galeria de retratos imaginários dos mosqueteiros de Arles ou outra vez terrivelmente dramático no Mosqueteiro com Adaga que é figura de matador, identificação com a morte num derradeiro desafio. E ambos, gravura e desenho, na exigência de um traço sem emendas ou hesitações, comprovam, se necessário for, que a extrema vontade de simplificação das figuras e a uurgência dos gestos nada têm de uma perda de qualidades, quase até ao fim.
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17-01-1998
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