Picasso e Hockney, claro, uma coincidência forte em NY, em 1996, e Arikha (ver "categoria") também por lá
EXPRESSO/Revista de 10-08-96, pp. 72-76
"Flores de Nova Iorque"
"Três exposições voltam à pintura de flores: Hockney, Arikha e Ross Bleckner. As emoções continuam a habitar o território da arte"
Os girassóis de David Hockney são uma homenagem a Van Gogh e fazem parte de uma série de naturezas mortas de 1995. As figuras humanas, que foram, por muito tempo, o motivo mais constante da sua pintura, desapareceram das últimas obras, mostradas em Maio-Junho em duas exposições simultâneas em diferentes andares do mesmo edifício da rua 57, nas galerias Andre Emmerich e Robert Miller.
No início dos anos 90, a abstracção passou a dominar a pintura de Hockney, aplicada numa exploração de formas e ilusões espaciais que partiu da observação da paisagem e do mar para prescindir depois de toda a aparência representativa, seguindo uma nova direcção mais especulativa, sem, no entanto, nunca se afastar da comunicabilidade directa e lúdica. Como que a compensar essa deriva pelos caminhos do imaginário, estimulada pela experiência do desenho cénico para óperas, o pintor regressa agora ao real através da observação dos objectos mais próximos e simples, naturezas mortas em que os motivos (girassóis ou antúrios, três pães num prato, algumas maçãs sobre uma toalha, duas alcachofras, uma truta sobre uma mesa azul, etc) são vistos num enquadramento cerrado, em pinceladas muito rápidas de cores quase puras.
As duas exposições paralelas ofereciam ao espectador uma insólita diversidade de estilos e de géneros: as últimas pinturas abstractas e as naturezas mortas, uma série de 15 pequenos quadros retratando os seus cães e também novos trabalhos fotográficos editados em grande formato numa impressora digital de jacto de tinta e uma tela de enorme dimensão apresentada sob focos de luz de cores variáveis que se vê como uma pintura-espectáculo. Aos 59 anos, Hockney continua a demonstrar uma infatigável capacidade de ensaiar novas direcções de trabalho e também a necessidade de sujeitar a sua imensa destreza formal à prova dos mais recentes processos tecnológicos. «Demonstrações de Versatilidade», o título da série de telas que o revelou, em 1962, numa colectiva escolar em Londres de «Jovens Contemporâneos», continua a ser plenamente actual.
Visto a poucas dezenas de metros da grande exposição dedicada a Picasso pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, «Picasso e o Retrato» (até 17 de Setembro, viajando a seguir para Paris - link ), é impossível não reconhecer o parentesco entre a infinita liberdade com que ambos jogam com os estilos e com as convenções da representação. Hockney não é um continuador de Picasso, mas nenhum outro pintor contemporâneo lhe está tão próximo e o estudou com tanta admiração. Até a reserva hostil com que o mundo institucional da arte observa o seu êxito junto do público tem um exacto paralelo na distância mantida pela crítica ao longo das últimas décadas da produção de Picasso, como se esta já não tivesse lugar numa história reduzida à sucessão de tendências, estilos colectivos ou «problemáticas», onde a necessidade da morte da pintura já se decretou inúmeras vezes.
Novo ou único
Foi igualmente uma pintura de flores a imagem escolhida para o convite da exposição de Avigdor Arikha na galeria Marlborough.
Houseplants, de 1995, é um exemplo perfeito da sua «pintura de observação» («painting from life» - ver ), demonstrada por três dezenas de obras realizados desde 1992, que é possível dividir em naturezas mortas e retratos, interiores e paisagens, se não se entender que a obra de Arikha — «pós-abstracta», segundo o próprio artista — não é um retorno aos géneros da tradição, mas sim um exercício eternamente recomeçado de captação do visível, a «apreensão do vivido pela pintura».
Ao contrário de Hockney, o seu nome não é familiar ao grande público e é até quase desconhecido dos meios «especializados», mas, se fosse necessário enumerar os cinco mais importantes artistas activos, Arikha não puderia faltar.
Nascido em 1929, em Bucovina, uma província do Império Austro-Húngaro depois dividida entre a Roménia e a Ucrânia, de nacionalidade israelita e residente em Paris, Aricka é um caso raro de pintor que é também um teórico e um erudito em matérias de história de arte (Peinture et Regard, ed. Hermann, Paris, e On Depiction, Bellew, Londres). Expressionista abstracto até 1965, voluntariamente restringido à prática do desenho até 1973, prossegue desde então uma obra sem substanciais variações de processos, que é possível comparar, pelo rigor de um sistemático trabalho em torno da emoção visual, à de dois outros artistas solitários, Giacometti, de quem foi muito próximo, e Giorgio Morandi.
Na mesma digressão pelas galerias de Nova Iorque, as flores surgiam ainda na pintura de Ross Bleckner, neste caso como tema único de uma exposição na galeria Mary Boone, com que se inaugurou o seu novo espaço na 5ª Avenida. Diante dos quadros de Bleckner, artista surgido na década de 80 e reconhecido como uma das vedetas da cena nova-iorquina, não estamos perante a continuidade de uma linguagem figurativa, que, por hipótese académica, fosse possível caracterizar como sobrevivência de problemáticas datadas, mas sim diante de uma contemporaneidade dita pós-moderna que se reencontra com a tradição, a questiona e prolonga.
Bleckner partiu da revisitação da abstracção geométrica, numa pintura de bandas associável à op art, para ensaiar a possibilidade e o poder da imagem, passando de uma abordagem irónica do formalismo a uma pintura que se afirma como uma meditação sobre a morte e a transcendência, identificada com a questão da sida.
Se as pinturas de flores, para além da possível «pureza» das questões formais que envolvem, podem sempre ser entendidas como emblemas da beleza efémera e da transitoriedade da vida, os crisântemos, malmequeres e girassóis de Bleckner distanciam-se das condições próprias da observação e da natureza morta para serem um comentário dos valores decorativos e sentimentais associados à imagem da flor. São flores abstractas, multiplicadas sobre um fundo uniforme, como a malha ou padrão de um papel de parede, e noutros casos representadas isoladamente, estilizadas, por exemplo, com as pétalas estendidas até aos bordos formando tentáculos ou raios. Transportam títulos elípticos, como Love and Ambition ou In Sickness and in Health, com os quais se sublinha uma dimensão existencial.
As flores encontradas nestas três exposições, sendo um tema raro na arte das últimas décadas, são mais do que um ocasional traço comum a artistas muito diversos. Através delas, da natureza morta ou mesmo da referência a um imaginário kitsch, em Bleckner, é a pintura que se reafirma como permanência de uma prática sempre capaz de se continuar e renovar.
As flores de Nova Iorque, as de Hockney, Arikha e Bleckner, não são manifestações de qualquer academismo ou revivalismo, embora, enquanto tema de pintura, um quadro de flores não possa apresentar-se em termos de novidade. Outros roteiros seriam obviamente possíveis em busca do «novo», moldando a relação com a arte sobre a urgência jornalística, que tem de fabricar factos e modas. Mas as flores, como as naturezas mortas em geral, prestam-se particularmente bem à revelação da existência própria, na pintura, das formas, das cores e dos valores da luz. Como escreve Arikha, «as maçãs de Cézanne não foram nunca novas, mas são únicas», e é em termos de emoção que continuam a tocar-nos para além do que podem significar ou do processo de composição pictural que ensaiam. «A modernidade é autenticidade e não novidade», diz ainda Arikha.
O espaço da ilusão
Confronto com a noção condenada da beleza, exercício de criação visual que é, na sua banalidade temática, irredutível por inteiro à verbalização de uma anedota ou acção, as flores podem ser um grau mínimo que nos reconduz à necessidade da pintura como expressão de uma subjectidade criadora e visão carregada de emoção.
É o que Picasso, no MoMA, por outro caminho, demonstra com a perturbadora actualidade de uma obra que dominou o século, com uma grandeza que pareceu condená-lo a uma quase extra-territorialidade. Na sucessão das suas séries de retratos, estreitamente associados à sua vida de todos os dias, aos amores e amizades e também à observação do próprio rosto, ver-se-á que a afirmação e evolução de uma criação pictural não pode ser substituída pela «reflexão» sobre os meios e o destino da pintura, ou, segundo o formulário esvaziado dos novos academismos, pelo «questionar da própria actividade artística».
Regresse-se a Hockney e à diversidade das suas obras, permanentes ocasiões de surpresa e de humor. Na galeria Andre Emmerich, Snails Space é um espectáculo de pintura, ou «painting as performance», levando até às últimas consequências as experiências do desenho cénico que realizou para Tristão e Isolda, Turandot e A Mulher Sem Sombra, entre 1987 e 1993.
O espectador é convidado a sentar-se diante de uma parede de pintura com mais de seis metros (óleo e acrílico sobre tela), prolongada para o chão por uma segunda tela com colagens de pequenos cubos, mas nenhuma imobilidade do olhar lhe é permitida. Seis «vari-lites» proporcionam um ciclo de nove minutos de lenta variação da iluminação, desencadeando uma quase imperceptível alteração das cores e do espaço interior da pintura, dos seus relevos e escalas, enquanto o desenho se mantém invariável. O trabalho para o palco, estudado no atelier com o recurso a grandes maquetas, já na sequência de exaustivos ensaios sobre a espacialidade cubista, permitiu a Hockney a nova aventura de uma investigação-jogo sobre a ilusão e a realidade da percepção espacial, com a construção de recortes serpenteantes e profundidades vertiginosas. É a pintura em movimento, reconduzida da caixa do palco à superfície estrita da tela.
Entretanto, na galeria Robert Miller, Hockney mostrou fotografias feitas em estúdio com uma câmara de grande formato, sobre pormenores de Snails Space e também sobre as próprias naturezas mortas e os elementos que lhes serviram de modelos. Depois das experiências com a fotografia, com o Polaroid e o video fixo, Hokney voltou-se nos últimos anos para as fotocopiadoras laser, o fax, o ecrã do computador e às tecnologias digitais, associando o trabalho da criação das imagens à experiência da sua impressão, reprodução e circulação, no mais radical dos exercícios sobre a ideia de cópia e original, até fazer desaparecer por inteiro a noção de original. Contrariar os preços proibitivos que atingem invariavelmente as suas obras parece ser um dos estímulos que o movem.
De certo modo, as últimas obras são ainda uma experiência sobre a não-veracidade da fotografia, por exemplo quando é praticamente total a indistinção do que é, na imagem impressa, fotografia, pintura ou fotografia de pintura. Photography of a Photography with Photography of a Painting with Model reune na mesma imagem final a fotografia de uma pintura abstracta, uma natureza morta pintada e os objectos que lhe serviram de modelo, tudo isto num espaço do atelier onde se vê ainda um chão pintado com falsas sombras. Mas é em especial a exploração das qualidades de textura e cromatismo alcançadas pela impressão em grande formato de imagens fotográficas digitalizadas que interessa ao pintor: «a cor sobre o papel parece quase física». E se as condições de conservação não estão completamente asseguradas, tratar-se à de «gozar o momento», sabendo que a beleza de uma folha de papel irá mudando lentamente com o tempo, como tudo o mais.
Tornar visível
Para Arikha a eternidade é uma ambição essencial da criação artística, mesmo se o desenho e a pintura se fazem em «estado de urgência» e se a espontaneidade do traço e da pincelada tem por modelo a libertação absoluta procurada na prática zen do tiro ao alvo. Pintura de observação «alla prima», actividade raríssima, realizada sem estudos prévios ou esboços preparatórios, sempre numa única sessão de trabalho e diante de um modelo que é, em geral, um fragmento do mundo quotidiano e íntimo do pintor: os objectos domésticos e instrumentos do atelier, interiores, a mulher e os amigos mais próximos, o próprio corpo e rosto, paisagens de Jerusalém ou Nova Iorque despidas de todo o exotismo.
O pintor está «desarmado perante o visível» que assalta o seu ângulo de visão, impondo-se a revogação de todo o saber adquirido para que a expressão do visto não seja a sua cópia morta. Para Arikha, a transfiguração dos dados visuais num estado de tensão dos dados da pintura requer a simultaneidade do observar, sentir e traçar/modelar como por efeito de um elo entre o olhar e a mão. «Painting from life» (ou «life-painting») e pintura «sur le vif» não têm exactas traduções que revelem toda a intensidade vital de um «desenho do natural» em que, ao contrário do desenho académico, «é a recusa de tudo o que é voluntário e intencional, transformando o tema mais banal, uma maçã ou um pedaço de pão, num conteúdo carregado de emoção».
É um projecto de máximo rigor conceptual, guiado por um esforço radical de suspender a imaginação e a generalização para recomeçar, sempre de novo, a restituição da aparência de um modelo através da disposição mínima de um traço ou de uma pincelada. Importa-lhe o como e não o que é pintado, porque, ao contrário da imagem, a pintura não se «lê» e não tem um papel (uma ideia ou um acontecimento exterior) a representar — e alguém que conheceu a deportação e o campo de concentração nazi na adolescência e que fez depois a guerra da independência de Israel, onde foi gravemente ferido, está em respeitáveis condições para falar dos conteúdos da pintura.
É uma ideia de pintura quase minimalista, mas não formalista, que Arikha propõe para derrubar uma cisão entre a arte contemporânea e a arte do passado que considera uma ficção imposta pelas ideologias vanguardistas. Intensamente polémico, critica a evolução dominante da arte do século XX como um processo de ruptura entre o ver e o tornar visível, por onde se insinuou o artifício e o arbitrário que tornam indistintos a pintura e a imagem, a pintura e a decoração. Pintar uma flor «from life», tentar apreendê-la tal como ela é, parece-lhe ser hoje tão urgente como foi urgente pintar um puro quadrado no princípio do século.
Comments
You can follow this conversation by subscribing to the comment feed for this post.