David Hockney (em Paris)
"À conquista do espaço"
Expresso Revista de 27-03-1999, pp. 126-132
"A bigger Grand Canyon", 1998, um panorama com sete metros e meio de largura para enfrentar o desafio da mais mítica das paisagens americanas (Fotos: © David Hockney)
"Três exposições simultâneas em outras tantas instituições centrais de Paris é um acontecimento insólito, mais marcante do que a rotina das retrospectivas de consagração. A mostra principal está no Centro Pompidou sob o título «Espaço/Paisagem» e é dedicada às questões da representação do espaço na pintura e às sucessivas experiências de David Hockney. A reinterpretação do cubismo e das lições de Picasso ocupa o museu do autor de Guernica, parecendo designá-lo como o mais importante dos seus discípulos. E a terceira exposição percorreu a obra fotográfica do pintor e os seus ensaios com as novas tecnologias da imagem. Aos 61 anos, ele diz que está a entrar no seu período de maturidade
QUEM é o mais importante artista vivo? As respostas só podem ser individuais, mas não são irrelevantes para pôr à prova, no quadro plural da arte do presente, algumas hipóteses de orientação, ou mesmo de avaliação, que contrariem o relativismo ambiente e a confusão ou o alheamento dos espectadores. Hockney, interrogado há dias em Paris, apontou Balthus, um dos mais solitários artistas do século XX, já com 91 anos. Poderia também sugerir-se - depois das mortes de Picasso, de De Kooning e de Bacon - o nome de Lucian Freud, que repôs o retrato e a representação realista do corpo como um pólo incontornável das interrogações contemporâneas, ou talvez Jasper Johns, se a sua produção não parecesse bloqueada sobre a revisão da respectiva trajectória.
Mas o próprio David Hockney, hoje com 61 anos, o que não é muita idade para um grande pintor, é um forte candidato ao lugar e está mais do que nunca aplicado em explorações que alargam as fronteiras do seu trabalho e lhe asseguram uma imprevisibilidade muito pouco usual.
Em cima, «A Estrada para York à Passagem por Sledmere», uma das pinturas de 1997 sobre a paisagem do Yorkshire, onde nasceu Hockney, representando a experiência visual de uma viagem feita de automóvel . Em baixo, «A 16.ª Pintura Muito Nova», da série das «Very New Paintings», de 1992, quando a atracção pelas novas tecnologias das imagens informáticas conduziu o pintor à abstracção
Hockney começou por afirmar-se nos anos da Pop britânica, mas não ficou preso ao rótulo do movimento nem passou a gerir um pequeno estilo pessoal como a marca registada de um futuro tranquilo. Aqueles que fixam os artistas às imagens com que adquirem uma primeira notoriedade, nas prateleiras das gerações ou das correntes, apenas recordam os retratos elegantes e o hedonismo homossexual das piscinas de Los Angeles, para o classificarem como um pintor fútil, à margem do que seriam as rupturas das últimas décadas. De facto, além de ser demasiado famoso junto do grande público para que alguma crítica admita reconhecer-lhe a seriedade da obra, foi ele próprio quem se colocou numa posição de confronto com o «mainstream» modernista quando ousou desafiar, na segunda metade dos anos 70, o domínio institucional do formalismo abstracto e das correntes conceptuais. Nunca foi esquecido o artigo «Não há alegria na Tate», publicado no «Observer» em 1979, onde punha em causa «a arte triste, sem alma e teórica», que merecia a atenção quase exclusiva das vozes oficiais, mas o trabalho de Hockney não se deixou ostracizar no terreno das circulações apenas mundanas e foi conquistando os museus mais significativos.
A retrospectiva que percorreu em 1988-89 o topo do circuito das consagrações, entre o Los Angeles County Museum, o Metropolitan de Nova Iorque e a Tate Gallery, fixou-o num lugar central da actualidade, embora exterior ao que pretende definir-se mais estritamente por arte contemporânea.
A última década manteve-o com uma visibilidade intensa, numa ininterrupta circulação de retrospectivas ou de antologias sectoriais de desenho, fotografia, pintura, obra gráfica e projectos de cenários, ao mesmo tempo que se sucediam as mostras com os trabalhos onde experimentou os recursos do fax, da fotocópia e da impressora digital, ou com as pinturas abstractas (as primeiras desde os anos de estudo na Royal Academy), a série dos quadros dedicados aos seus cães ou a flores, a instalação de pintura em movimento, etc., etc.
A imagem de um pintor reaccionário ou tradicionalista é-lhe totalmente alheia, ainda que o seu trabalho ponha em causa o mito vanguardista da tábua rasa. Tão interessado pela exploração das novas tecnologias como disponível para a revisitação dos mestres do passado, nunca é de uma posição nostálgica, presa à lógica de um cânone, que a obra de Hockney põe em causa a proliferação da insignificância e da idiotia em muitas obras com circulação recomendada no mundo da arte.
Agora, a convergência em Paris de três exposições simultâneas, organizadas por outras tantas importantes instituições, tem uma projecção que acaba por exceder a situação consagradora de uma retrospectiva única para ganhar a incomodidade de um acontecimento insólito. O vértice da temporada Hockney está no Centro Pompidou, onde continuam os trabalhos de renovação do edifício e a única galeria disponível obrigava a uma montagem sintética. A mostra, apesar de organizada em colaboração com a Galeria Federal de Arte e Exposições de Bona, que acolherá em Junho um vasta retrospectiva, concentrou-se por isso apenas num tema, «Espaço/Paisagem», em correspondência com os mais recentes interesses do pintor (prolonga-se até 26 de Abril).
A montagem culmina com a apresentação de uma série de quadros dedicados à sua região natal, o Yorkshire, a que regressou em 1997 para acompanhar a doença terminal de um amigo de longa data, e, em especial, com duas imensas pinturas inéditas onde Hockney se confronta com o desmesurado projecto de pintar o Grand Canyon, a mais mítica das paisagens americanas. Na aproximação a estes últimos trabalhos, toda as etapas da obra realizada desde 1962 são sumariamente percorridas, mas apenas de modo a testemunhar a constante renovação das experiências sobre a representação do espaço e as convenções ou artifícios da perspectiva. São também essas as questões que dão passagem às duas exposições paralelas, através da relação com o cubismo e com a fotografia.
No Museu Picasso, que não se costuma abrir à apresentação de outros pintores, a mostra tem por objectivo imediato observar o interesse de Hockney pela respectiva obra e a reinterpretação do cubismo, que o ocupou ao longo dos anos 80 (é visitável até 3 de Maio). Mas ao intitular-se «Diálogo com Picasso» é evidente que, além de se sumariarem as homenagens, citações e apropriações estilísticas, a exposição assume um sentido mais amplo. Não é irrelevante que Gérard Régnier, que sob o pseudónimo Jean Clair é o mais polémico dos críticos actuais, seja o director do museu e também o comissário da exposição, conjuntamente com Didier Ottinger, sendo este o responsável pela mostra do Centro Pompidou. O que está em causa, para além de reconhecer a assumida influência de Picasso, também é avaliar o lugar de Hockney como «continuador» de uma obra que dominou o século com o seu gigantismo e a constante variabilidade estilística mas que parece ter anulado a possibilidade de gerar discípulos convincentes.
Por outro lado, se ambos sustentaram o seu trabalho sobre um prodigioso domínio do desenho, remetendo-se à disciplina da observação perante o esgotamento de cada uma das fórmulas exploradas, é curioso observar como os dois pintores foram sendo sujeitos a sucessivas condenações críticas, que os davam como arredados das problemáticas consideradas determinantes no momento, para depois se voltar a admitir a sua inesgotável vitalidade criativa.
Hockney lembra que a influência do cubismo se exerceu principalmente como caminho para a abstracção, sem que a sua crítica da espacialidade clássica fosse apreendida pelos artistas interessados na figuração realista. É essa herança possível que lhe interessa, mediante uma percepção do espaço que se altera com a captação do tempo e do movimento, em conjunção com os novos dados das ciências (a física e a psicologia). Tratava-se de substituir o ponto de vista único, imóvel e distanciado da perspectiva linear por uma fragmentação que não é arbitrariamente formal nem a diluição das aparências, mas sim o resultado de uma observação aproximada, envolvente, multifocal, multiplicada pela memória e a afectividade, que também aspira a mudar a relação do espectador com o objecto visto.
Aliás, muito para além do cubismo clássico de Picasso e Braque, é o período tardio do pintor espanhol que mais lhe interessa, com a imensa intensidade emocional que transporta a sua absoluta liberdade formal.
No museu, no entanto, não estão expostas obras recentes. A mostra inicia-se com a «descoberta» de Picasso, à data da sua morte, nas gravuras em que Hockney se assume como discípulo directo (Artista e Modelo), e encerra com alguns retratos datados de 1984 e duas pinturas de 1987 que acompanharam a montagem da ópera Tristão e Isolda, onde os respectivos personagens são tratados com uma espontaneidade próxima do último período de Picasso, mas o próprio autor considerou-as realizações ilustrativas e sem importância.
Os últimos retratos, a partir de 95, que não foram expostos em Paris, já voltaram a afastar-se de um modelo linearmente cubista para assumirem um realismo mais austero em imagens de rostos frontais que lembram as tábuas mortuárias egípcias de El-Fayoun. Em vez da proximidade física do modelo e do movimento fragmentário da observação, é a antecipação sofrida de uma ausência que eles fixam, com uma procura da profundidade psicológica que suspende de forma quase brutal a antiga elegância e o prazer do traço. Se antes o pintor qualificara a perspectiva linear como uma metáfora da morte, é essa dimensão que o interessa nesses últimos retratos de parentes e amigos mais chegados.
O terceiro pólo, apresentado na Maison Européenne de la Photographie e já entretanto encerrado, foi dedicado à obra fotográfica de Hockney, que pode ser valorizada autonomamente como uma produção paralela à pintura, mas constitui um terreno de experimentação essencial na sua evolução. Como ele explicou em sucessivas conferências, foi através da fotografia que começou a reinterpretar o cubismo, num processo que o levaria a descobrir que este já fora uma resposta à popularização da fotografia. Afinal, a invenção do processo fotográfico apenas viera permitir conservar a imagem fugazmente captada por um aparelho usado há mais de 400 anos pelos pintores: a «camera oscura».
O ponto de vista centrado da fotografia não fazia mais do que repetir a concepção tradicional da janela interposta entre o observador e o mundo que dominara a espacialidade da pintura ocidental, anulando, com a eliminação da mão do pintor, o movimento que integrava o tempo na obra pintada. Para Hockney, tratava-se também de voltar a interrogar o destino da representação pictural depois da fotografia, pondo à prova a convicção de que esta teria condenado a pintura à extinção ou a um destino abstraccionista.
É em grande medida uma batalha contra a fotografia o trabalho a que o pintor se entrega, sujeitando-a a montagens de «polaroids» ou a fotocolagens de provas tradicionais que procuram contrariar a insuficiência congénita da imagem monofocal para transmitir «a experiência humana da percepção», sempre na sequência das suas investigações sobre a natureza da representação. É a partir da colagem de fotografias que Hockney inventa uma maleabilidade do espaço pictural que lhe permitirá representar sobre uma superfície plana a experiência visual de um movimento em torno de um objecto e depois a deslocação de um observador ao longo de um espaço. A Walk around the Hotel Courtyard, Acatlán, de 1985, exposto no Centro Pompidou, é uma longa tela panorâmica de mais de seis metros onde a multiplicidade dos pontos de fuga desdobra a profundidade do espaço pintado para transmitir a experiência visual da deambulação à volta de um pátio, sem a imobilidade de um ponto de vista central nem a fragmentação sincopada do cubismo clássico.
A ambição de Hockney é fazer entrar o espectador na superfície ilusionista do quadro, levando-o a experimentar a sensação de passear no espaço representado. O processo será prolongado em telas que tomam por tema o interior da sua casa de Los Angeles e em paisagens da costa do Pacífico que transmitem a experiência de uma viagem por estrada. «Não se pinta uma paisagem procedendo como se o automóvel não tivesse sido inventado», segundo um comentário incluído no excelente catálogo do Centro Pompidou.
Entretanto, dois outros vectores essenciais da mesma pesquisa, que não se encerra no terreno desencarnado da especulação teorizadora e sabe sempre manejar a atracção própria da estimulação visual, foram o interesse pela pintura japonesa, a que foi buscar o uso da perspectiva invertida e, por outro lado, as experiências realizadas com os cenários para óperas, que permitiram tratar as questões do espaço e da luz nas condições reais oferecidas pelo palco. Do mesmo percurso ziguezagueante faz parte a disponibilidade descomplexada para investigar as mais modernas tecnologias da imagem, voltando à pintura com novas ideias ou recursos.
Hockney passou da fotografia à fotocópia a cores de grande formato, inventando processos de reprodução sem original e observando novos meios de criar padrões, tramas, texturas e ilusões espaciais, e depois explorou o fax, a impressão de imagens digitalizadas a partir do vídeo e a paleta gráfica do ecrã do computador.
A chegada à abstracção no final dos anos 80 é talvez a mais inesperada das mutações no percurso do pintor, ao mesmo tempo que ganhava uma nova liberdade no tratamento da paisagem. A série das «Very New Paintings», de 92-93, resulta directamente da exploração das possibilidades gráficas e cromáticas do suporte informático, mas, mais uma vez, a inovação beneficia do trabalho realizado para a ópera (Turandot e A Mulher sem Sombra, de Richard Strauss). As cores trazidas do computador são saturadas e eléctricas, e o grafismo recorta superfícies que se encurvam, serpenteiam e entrechocam como pregas espacialmente inverosímeis. É nessa sequência que surge a instalação Snails Space with Vari-lights, «Painting as Performance», de 95-96, um espectáculo de pintura a três dimensões com luzes programadas para variarem lentamente ao longo de nove minutos, modificando os relevos e as cores.
As recentes pinturas inglesas, com os campos lavrados e as pequenas povoações do Yorkshire atravessadas pela estrada, têm uma aparência primitiva e quase ingénua que permite supor um reencontro dos dois pintores que marcaram o imaginário figurativo do início do século - Picasso e Henri Rousseau. À experiência de um olhar em movimento, que vai fixando as referências do percurso, junta-se uma outra memória autobiográfica atenta à permanência ou mutação da paisagem conhecida desde a infância. Os quadros não partem de um registo fotográfico e são, como é evidente pelas suas cores luminosas e irreais, um registo imaginário ditado pela relação afectiva com a região.
A vasta sala que encerra a mostra do Centro Beaubourg é dominada pelas duas telas dedicadas ao Grand Canyon, as maiores alguma vez pintadas por Hockney. O interesse por essa paisagem única encontra-se na sua obra desde 1982, em colagens de fotografias com um contorno irregular, onde a disposição em leque acentua a vertiginosa profundidade do imenso abismo cavado à passagem do rio Colorado: numa extensão de mais de 350 quilómetros, as águas correm entre falésias com uma média de 1500 metros, enquanto a largura no topo do planalto varia entre 7 e 25 quilómetros. É uma paisagem mítica da conquista do Oeste, que se tornou parque natural em 1872, quando foi conhecida através de fotografias e aguarelas. Thomas Moran, um dos pintores que revelaram a sublimidade dos grandes espaços americanos, pintou o Grand Canyon em 1893-1901, e o quadro ficou exposto em Washington, no Capitólio, sobre as estátuas dos presidentes.
A experiência não voltou a repetir-se com êxito, e o lugar - «demasiado vasto, demasiado complexo e demasiado grande para ser verbalmente descrito» - passou a merecer o título de «o desespero dos pintores».
A exposição inclui uma outra colagem, feita em 1986 a partir das fotografias de 82, com uma largura de mais de 3 metros e de contorno rectangular, o que multiplica os pontos de vista oferecidos ao espectador, numa imagem sincopada e com parcelas repetidas. Se noutras fotomontagens era possível jogar com a aproximação dos objectos mais distantes, criando um espaço elástico e envolvente, aqui impõe-se uma distância atmosférica que a variação da focagem não corrige. Com cerca de 2 por 7,5 metros, o quadro A Bigger Grand Canyon é um projecto antifotográfico sobre um grande ecrã panorâmico construído por 60 telas de pequeno formato, regularmente dispostas em cinco fiadas verticais por doze horizontais. A grelha assim estabelecida não visa a reprodução da fotomontagem, até porque é agora restabelecida a unidade da paisagem, mas mantém um efeito relativo de multiplicação dos pontos de vista que sustentam o olhar do espectador sobre cada um dos seus fragmentos e contrariam a imobilidade de um lugar fixo de observação.
Uma segunda versão de ainda maior dimensão, A Closer Grand Canyon, é constituída por 96 fragmentos, porque uma última e imprevista transformação (que o catálogo já só comenta num «post-scriptum») levou o pintor a acrescentar-lhe três fiadas de telas sobrepostas, que são ocupadas por um largo céu azul semeado de nuvens. Para esse novo projecto, pôs de parte as fotografias e voltou ao lugar com o caderno de desenhos, estudando a construção mais livre de um espaço maleável, que se desenvolve numa alternância ondulante de formas convexas e côncavas, sem a rigidez planificada de uma parede nem a perspectiva centrada de uma visão longínqua. Em ambos os casos, Hockney ensaia um «tour de force» com a ambição de quem «começa a entrar na maturidade». O lugar desmesurado proporciona uma poderosa experiência do olhar, percorrendo uma construção pictural onde a reinterpretação do cubismo e da pintura oriental deixam para trás a espacialidade do naturalismo clássico. «A questão», diz o pintor, «é saber se o espaço existe totalmente separado de nós ou se é fabricado pela nossa consciência.» Movendo-se entre a visão próxima e distanciada, diante de pinturas de cores puras e fortes, onde o verde e o vermelho provocam efeitos de incandescência, «o espectador faz parte do espaço». O «tema destes quadros é precisamente a relação que o espectador estabelece com eles».
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