"Um teatro sem teatro"
é uma exposição vinda do MACBA, Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, para o Museu Colecção Berardo, numa produção conjunta que agora se apresenta ampliada com novas obras e documentos, alguns deles de história portuguesa ou pertencentes à colecção do Museu, e tb remontada nas diferentes e muito amplas condições espaciais do CCB.
São comisarios: Bernard Blistène e Yann Chateigné, com a colaboração de Pedro G. Romero e tb de Bartolomeu Marí (exp.) e Manuel J. Borja-Villel (catálogo).
Guy de Cointet, "Tell Me", 1979. Instalação
James Coleman: So Different... and Yet, 1980.
É uma mostra com uma dimensão muito pouco frequente - todo o segundo piso do CCB - e também com uma grande ambição retrospectiva, quanto ao itinerário histórico percorrido (desde os anti-espectáculos Dadá até ao presente) e quanto ao projecto multidisciplinar (as relações entre artes plásticas e teatro na tradição da vanguarda mais radical, na Europa e nos Estados Unidos). Uma produção com um número de obras e documentos, muitos deles de grande raridade, que não tem paralelo em exposições vistas entre nós.
A surpresa não poderia ser maior para os profetas da desgraça que anunciavam o fim das exposições temporárias no CCB, colocados perante um projecto expositivo com esta extensão e ambição.
É o modelo das grandes exposições retrospectivas que se conhecem do Centro Pompidou de Paris que aqui se segue, e até se poderia dizer que é o B de Beaubourg que agora sugere o B do logotipo do Museu, B de Berardo.
Não é uma exposição fácil, ao fazer o percurso que vai dos espectáculos provocatórios da anti-arte Dadá aos diferentes projectos radicais de teatro da crueldade (Artaud) ou teatro pobre (Grotowski), do teatro de Tadeus Kantor ou Beckett ao happening e às orgias do accionismo vienense ou a formas de anti-teatro e acção de rua, relacionando-os sempre com as respectivas origens, os cruzamentos ou prolongamentos no âmbito das artes plásticas. E um dos fios condutores da mostra é estabelecer o mapa, por vezes inovador, dos trânsitos e das conexões entre momentos ou criadores europeus e americanos.
Num percurso que não é linearmente cronológico, e é às vezes densamente documental, intervêm espaços dedicados a Arthur Cravan, Alfred Jarry, Oskar Schlemmer, Maruja Mallo, o movimento Fluxus, Allan Kaprow e Jean-Jacques Lebel, Fahlstrom, o letrismo de Isou e Lemaître, o situacionismo, Marcel Broodthaers, Christian Boltanski, Mike Kelley e Tony Oursler, Buren e Pistoletto, Bruce Nauman, Juan Muñoz e muitos outros - muitas vezes revelando a matriz teatral, a dimensão viva do espectáculo (ou anti-espectáculo) e a importância do elemento tempo em produções que noutras condições se sujeitam a uma abordagem apenas formal. Em inúmeros casos é só quando são recolocadas no seu contexto histórico, situadas na sua linhagem de radicalização vanguardista, que muitas obras que se encontram por aí desinseridas do seu específico ambiente de aparição, oferecem algum sentido ao espectador actual, para além da sua fetichização como resto artístico.
Do dadaísmo do 1º pós-guerra às neo-vanguardas dos anos 60, num percurso de levantamento de margens culturais e anti-culturais por vezes escassamente conhecidas, passa-se na parte final da mostra a uma abordagem da teatralidade criticada por Michael Fried na escultura minimalista, e das suas consequências quanto a posteriores reflexões sobre a acção-intervenção do espectador, a exploração objectual do espaço ou a relação com o cinema em obras de artistas contemporâneos.
O catálogo, com participações de Alain Badiou, J.J. Lebel, Marc Dachy e dos comissários, com grande presença de documentação escrita e iconográfica, é também uma publicação de grande qualidade.
Mais do que um catálogo que regista os objectos expostos é um livro autónomo sobre a genealogia do tema em análise: as questões da acção e o lugar do sujeito-indivíduo na relação entre o teatro de vanguarda e uma certa linha evolutiva das artes plásticas exterior ou contrária às disciplinas tradicionais, que vem da lógica da anti-arte, da subversão cultural anti-burguesa e de actuações subterrâneas e marginais a algumas formas de criação contemporânea com largo reconhecimento oficial: das margens radicais até ao centro do sistema das artes.
Do radicalismo artístico boémio e anti-burguês aos templos da cultura/incultura da burguesia actual - essa questão tem de se pôr. O que é que mudou? Quem derrota ou recupera quem?
Há outras genealogias, outras direcções recalcadas da história recente que importa valorizar e outras abordagens do presente menos complacentes com a museologização dos restos das guerrilhas passadas. Esta exposição tem um conteúdo polémico e convida ao debate, não ao consumo acrítico que impera na área do espectáculo cultural - contra a própria lógica que se manifesta nos objectos-vestígios desta exposição.