EXPRESSO Actual de 15/6/2002
"Viagem no tempo"
Retrospectiva de José Júlio, pintor, divulgador e activista associativo. Evocação de uma época
(SNBA, Até 6 de Julho)
Com a retrospectiva de José Júlio, entra-se no grande salão da SNBA como se uma viagem no tempo nos levasse à sua época mais dinâmica, quando aí tinham lugar as mostras colectivas que preenchem a cronologia da modernidade nacional, entre as Exposições Gerais da segunda metade dos anos 40 e a dispersão dos 60, precipitada pelas emigrações e a primeira afirmação do mercado. A sua breve obra de pintor, divulgador e activista associativo, interrompida em 1963, aos 47 anos, coincide com grande parte desse período de viragem, sendo a sua entrada para a direcção da SNBA, em 52 (com Celestino de Castro e Vasco da Conceição), um sinal de mudança da velha instituição. Nesse ano, Eduardo Malta foi expulso numa assembleia e a SNBA esteve vários meses encerrada.
É também a obra de José Júlio, através da busca da sua identidade pessoal e da sintonia com as questões dominantes da época, que preenche o salão como uma síntese desse tempo. Pela cronologia da exposição vai-se das «Gerais» (até à edição retrospectiva de 56) aos Salões de Arte Moderna que se iniciam em 58, passando pelos «Artistas de Hoje» (56), a exposição Gulbenkian de 57, que a SNBA acolheu, e os «50 Artistas Independentes» que em 59 responderam aos «Novíssimos» do SNI. Pela sucessão das obras, após a aprendizagem autodidacta com os clássicos da modernidade, é com a tensão entre figuração e abstracção, que marcou a década de 50 e os primeiros anos da seguinte, que extensamente se contacta.
Nascido em 1916, em Lisboa, chegou tarde à pintura, já aos 33 anos. Professor de matemática no Liceu Francês, foi um artista amador, como a esmagadora maioria dos outros, num tempo quase sem mercado de pintura. Desenvolveu ao mesmo tempo intensa actividade de divulgação e pedagogia, em palestras sobre a história da arte moderna («de Manet a Klee») e exposições de reproduções, para além de ter exercido crítica no jornal «Ler», em 53. A sua intervenção completa-se na referida direcção da SNBA e no seu conselho técnico, sendo também um dos fundadores da cooperativa Gravura, em 56.
Cerca de 140 trabalhos - e outros reproduzidos no catálogo, numa acertada selecção extensa de obras mais conseguidas ou indicativas de incertezas de rumo - documentam a produção do pintor e do gravador, incluindo 23 fotografias, decerto nunca antes expostas. Nelas se revela uma pesquisa próxima da pintura, no interesse pela paisagem, as atmosferas e profundidades espaciais, as formas recortadas de árvores e velas de barcos, que foram temas ou pretextos persistentes, mantendo a sensibilidade ao espectáculo do mundo mesmo através das experiências abstraccionistas e na «figuração diluída», como se dizia. A gravura é, entretanto, para além da investigação de recursos expressivos, decisiva na evolução da linguagem do pintor, levando-o a uma crescente depuração construtiva e substituindo o lirismo da mancha de cor pela concisão da forma gestual; é, aliás, sobre a pedra litográfica que executa os raros desenhos reproduzidos.
Aquela referencialidade paisagística identifica-se, num primeiro tempo, com a referência directa aos pioneiros da expressão moderna, em pinturas onde interpreta lições de Cézanne, Van Gogh, Picasso e Braque, este em duas homenagens explícitas de 52. É um percurso de aprendizagem disciplinada e ao mesmo tempo ziguezagueante, que passa pelos estudos de composição da natureza morta e se confronta com a dificuldade da abordagem da figura humana.
Uma tela de 1954, Paisagem, judiciosamente adquirida por Diogo de Macedo para o Museu de Arte Contemporânea, estabelece um primeiro marco evolutivo, onde a cor ensurdece e se desnaturaliza numa construção espacialmente sintética. A geometrização das formas já evolui então noutro quadro de referências, onde a influência da Escola de Paris se actualiza com Vieira da Silva, Bazaine e Nicolas de Staël, também próxima de Júlio Resende (Casario, cerca de 56), numa evolução sem rupturas e determinada pelo seu próprio curso produtivo, que pelo final da década parece desembocar numa opção não-figurativa.
A formalização abstracta já não era, porém, um ponto de chegada, ao contrário do que à época se pretendia. Explorada a vibração do espaço pictural, com renovada abertura à expressividade da cor, onde recupera a cintilação lírica de azuis muito próprios, José Júlio volta a interessar-se pela possibilidade de traduzir o mundo em pintura. Não se trata de um regresso à figuração, como um recuo a uma ordem aprendida, mas de prosseguir a experimentação sobre novos meios, na busca de uma síntese das linguagens abstractas e da observação do visível. Sucessivas «Marinhas», de 60, 61 e 62, dois «Rebocadores» e diversas «Paisagens» dos mesmos anos estabelecem, a partir da intensidade da cor, novos marcos nesse percurso, que ficou interrompido quando a vaga das «novas figurações» surgia a instalar um novo contexto criativo.
A pintura de José Júlio transporta com as suas dificuldades de autodidacta uma natureza simultaneamente reflexiva e sensível que nunca se estabilizou num formulário defensivo, ultrapassando na seriedade da sua pesquisa própria o que poderiam ser só marcas colectivas do tempo. A sua presença pública foi intensa, através de dez individuais, todas as colectivas marcantes da época e duas representações na Bienal de São Paulo (53 e 57); conservada quase toda a obra na posse da família, que tomou a iniciativa desta exposição, a visibilidade posterior reduziu-se praticamente às homenagens prestadas em 1965 e 1979-80. Haverá agora que encontrar-lhe outros destinos, os do museu e do mercado. São as colecções que fazem os artistas e a sua memória.
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