Há dez anos, e dez anos depois da 1ª feira
ver tb a 24 - 12 - 1996 - Marca Madeira em 1997, cx Actual
1 - Marca atlântica
Um festival de arte contemporânea no Funchal, de 21 a 27 de Agosto
Expresso/Cartaz 15-8-97 (pág. 11)
Dez anos depois da primeira edição volta a realizar-se a Marca-Madeira,
um festival de arte que decorrerá no Funchal a partir da próxima
quinta-feira, dia 21. Francisco Faria Paulino (regressado da Comissão
das Descobrimentos às actividades artísticas) é mais uma vez o promotor
da iniciativa, que em 1987 constituiu um momento decisivo da tomada de
consciência de uma nova conjuntura nacional no terreno das artes
plásticas.
À Marca de 1987 ficou ligado o início da actividade associativa das
galerias de arte e o arranque das primeiras feiras de arte que se
organizaram em Lisboa, no Forum Picoas, logo nos anos seguintes.
A
realização de um leilão de obras de arte em directo pela televisão
assegurou então uma larga projecção público ao evento, ao mesmo tempo
que um congresso efectuado no Funchal proporcionou uma positiva
aproximação e o confronto de posições entre os diversos agentes
implicados nas áreas da crítica, da museologia, do mercado e do ensino.
Dez anos depois, é já radicalmente diferente a situação do sector, e é por isso natural que a segunda edição da Marca não venha a ter o significado nacional alcançou em 1987, assumindo, no entanto, uma outra importância como acontecimento regional — o mesmo sucedeu, por exemplo, no espaço de dez anos, com a Bienal de Cerveira.
A década que passou conheceu um primeiro período de forte expansão e depois a entrada numa crise de mercado (e também de reconhecimento dos critérios de legitimação crítica e talvez de criação) que deixou de ser entendida como um mero fenómeno conjuntural. Tornou-se, entretanto, muito mais intensa a intervenção institucional, ao mesmo tempo que se observa uma menor centralização de iniciativas, com o acréscimo de acção de numerosos municípios e o aparecimento de galerias de forte poder económico situadas em locais periféricos.
A presença no Funchal de sete galerias municipais, de Almada, Santa Cruz, Viseu, Beja, Oeiras, Vila Franca de Xira é, precisamente, uma das inovações da actual Marca, representativa de novos dinamismos regionais. Por outro lado, as 22 galerias presentes associam experiências e actividades muito diversificadas, revelando como a distinção entre sectores mais ou menos «dinâmicos» perdeu significado. Estão anunciadas, entre outras, as galerias 111, Monumental, Novo Século, São Bento e Barata, Luis Serpa Projectos, Altamira e Casino Estoril, enquanto do Porto se deslocarão as galerias Fernando Santos, Quadrado Azul, Canvas & Companhia, Presença e André Viana, a par da Almadarte da Costa da Caparica, a Gilde de Guimarães, Mário Sequeira de Braga, etc.
Por outro lado, tornou-se este ano mais significativa a participação das regiões, através de galerias (Porta 33 e Edicarte, do Funchal, e Arco 8, de Ponta Delgada) e dos Museus da Madeira e dos Açores, bem como da Secção de Arte e Design da Universidade da Madeira.
A Marca inclui ainda um colóquio internacional que decorrerá em três sessões, nos dias 23, 25 e 26, presidido por Raquel Henriques da Silva, directora do Museu do Chiado, e contando com intervenções previstas de Vicente Todoli, do Museu de Serralves, Andel Jarolslav, do Centro de Arte Moderna de Praga, Maria Corral, da Fundação La Caixa, de Espanha, Louise Neri, «curator» da Bienal do Museu Whitney, Alexandre Melo e Rui Trindade.
2 - Circulações insulares
EXpresso - 29-8-97, cartaz
«O Museu do Chiado tem de crescer», disse Raquel Henriques da Silva durante o colóquio da Marca-Madeira, a que presidiu. É preciso, acrescentou, ganhar espaço à garagem e ao refeitório da Polícia, que lhe são vizinhos — vizinhos perigosos, aliás. Só assim as colecções existentes puderão dispor de áreas condignas de exposição permanente e se cumprirá o programa cronológico do museu, que foi muito recentemente ampliado até meados da década de 60 com a devolução de parte da colecção pública antes atribuida a Serralves.
«O Estado tem de conter a vertigem de dirigir a arte portuguesa e limitar-se a assegurar as condições estruturais necessárias», defendeu Francisco Faria Paulino, o promotor do festival de arte contemporânea do Funchal. Estabeleceu-se o consenso em torno da exigência de que a compra de obras pelos museus e outras instituições deve fazer-se através das galerias (e não directamente aos artistas), como condição de existência de um mercado saudável. O galerista Manuel Brito trouxe à superfície as expectativas que existem à volta do milhão de contos prometido à colecção do futuro Museu de Serralves. Mas Alexandre Melo avisou que o horizonte próximo — quando as estruturas oficiais, actualmente em criação, estiverem em pleno funcionamento — será o alargamento da actuação do museu ao mercado mundial.
Maria Corral, há tempos afastada do Museu Rainha Sofia, de Madrid, denunciou a intromissão dos políticos nas instituições de arte contemporânea e, referindo-se concretamente a Portugal, condenou o facto de se nomearem artistas para a sua direcção. Porque eles «têm uma mente estreitíssima para julgar as obras dos outros artistas», disse. A passagem foi fortemente aplaudida, mas talvez não se tenha entendido todo o alcance da defesa da tutela da arte contemporânea por uma classe de «managers» especializados, na base de uma suposta ruptura com a arte moderna e, em geral, com a historia da arte.
Vicente Todoli apresentou o seu projecto para Serralves, tomando a data simbólica de 1968 como base da colecção. Propôs como característica distintiva do museu a «personalidade da Casa» — mostrando com «slides» a retirada dos painéis que permitiam a sua utilização como espaço de exposições, para repor a possibilidade da respectiva «experiência estética» — , e também o respeito pelo Parque de Serralves na sua integralidade, porque ele «é uma obra de arte em si mesmo» (preconizando a criação de «obras de arte quase invisíveis»). Como o novo edifício de Álvaro Siza não será um «contentor neutro», parece que o funcionamento como museu será sacrificado à prioridade da arquitectura com instalações e obras «site specific».
Tornando mais claro ainda uma certa concepção finalista da arte, a síntese escrita da sua comunicação toma como referências fundadoras da «arte de hoje» a «desmaterialização da obra de arte», os novos suportes de projectos conceptuais, a «ruptura do conceito de moldura», etc. É um programa construído sobre uma visão muito estreita da criação actual, que costuma recusar o título de arte contemporânea a tudo que contradiz as escolhas de uma selecta rede de gestores. Por exemplo, classificando a obra actual de Paula Rego como a «mera sobrevivência de uma problemática dos anos 60», como dizia há tempos outro responsável — mas em privado, naturalmente.
O colóquio da Marca não poderia permitir o aprofundamento de diferendos que dominam a actualidade internacional e de que ainda quase não chegaram ecos a Portugal. Mas alguns sintomas e inquietações vieram à superfície, num programa que contou com a um assinalável painel internacional e assistência numerosa. Luis Serpa, galerista, pôs a hipótese de se assistir a um divórcio entre o sistema institucional e o sistema de mercado, criado em torno das galerias e dos coleccionadores. Defendeu que os museus devem retomar a perspectiva histórica, actuando como coleccionadores especializados em vez de pretenderem dirigir a criação artística. O director do Centro de Arte Moderna de Praga, Jaroslav Andel, caracterizou como um momento crítico a situação actual dos museus europeus, num panorama marcado por gerais restrições financeiras.
Há dez anos a Marca-Madeira juntou no Funchal praticamente todas as galerias então existentes, reuniu os novos críticos e historiadores de arte surgidos na década de 80 e atraiu também numerosos artistas. A feira e o congresso que então decorreram, enquanto um leilão em directo pela televisão assegurava a projecção mediática do evento, vinham coroar uma conjuntura favorável à redefinição de posições no quadro nacional das artes plásticas. A Marca serviu de arranque à primeira organização associativa das galerias de arte e também às feiras que seguidamente se fizeram em Lisboa. Mas os anos 80 acabaram por não existir a nível institucional, disse Raquel Henriques da Silva.
Entretanto, ao «boom» do mercado e à energia criativa da década anterior sucederam já tempos de crise e novas confrontações geracionais. Apesar do proverbial voluntarismo de Faria Paulino, organizador das duas edições, o tempo era agora pouco propício à mobilização e ao optimismo de há dez anos. Mas a segunda edição da Marca, assegurada em cinquenta por cento dos custos pelo Governo Regional, não foi só uma formal celebração do aniversário.
«A resposta não foi a que esperava», reconhece Faria Paulino, a propósito da falta de participação de várias galerias, da anulação dos «foruns» em que, num primeiro momento, pensou reunir escolas de arte e museus, ou da necessidade de reduzir do congresso a colóquio. No entanto, readaptado o programa inicial à escala do possível, a Marca acabou por ser reconhecida como um êxito pelos participantes, por ter permitido «forçar o debate», por atrair a afluência de público e até pelos inesperados êxitos de vendas da generalidade das galerias. Para além das compras dos particulares, o Madeira Tecnopolo e a Secretaria Regional avançaram um montante importante de reservas de obras.
Em especial, a feira permitiu reconhecer uma nova configuração da rede das galerias, aproximando no terreno parceiros com programas muito diferenciados e fazendo descobrir o crescente alargamento do mercado a regiões periféricas. No retrato incompleto que a Marca estabeleceu, reveste-se de particular importância a comparência das galerias municipais de Faro, Vila Franca de Xira, Beja, Oeiras e Santa Cruz, na Madeira, para além do caso exemplar da Casa da Cerca de Almada.
3 - Marcas permanentes
Expresso / cartaz, 29-8-97
A Marca foi também uma oportunidade para descobrir o que na Madeira é mais do que um jardim, mesmo que se não tenha ainda começado a dar visibilidade à oferta cultural que existe — por exemplo, não há no Turismo um simples folheto sobre a admirável colecção de pintura flamenga do Museu de Arte Sacra, que muitos estrangeiros seguraramente trocariam por um dia de piscina.
O Funchal também já tem o seu Museu de Arte Contemporânea e utilizou a oportunidade para lançar o catálogo da sua pequena colecção dos anos 60, que é uma curiosa memória de dois salões realizados em 65-66 e 67, e para abrir uma nova sala de esculturas recentes, ampliando a apresentação de uma selecção do seu mais jovem acervo. Situado na Fortaleza de São Tiago — um lugar excelente, se não vier a ser condenado por uma futura avaliação das condições climatéricas —, pertence à Secretaria Regional do Turismo e Cultura / Direcção Regional dos Assuntos Culturais (DRAC) e é dirigido por Francisco Clode Sousa.
Procurando acompanhar a actividade das galerias locais, o Museu reuniu nos últimos seis anos um espólio interessante de obras de artistas apresentados na Madeira, voltando a surgir como comprador durante a Marca. É um critério certamente adequado à limitada escala dos seus meios, com o mérito de prolongar o eco das exposições das galerias Porta 33, Funchália ou Edicarte, apoiando também a sua acção. Aí se expunham esculturas António Campos Rosado, Manuel Rosa e Patrícia Garrido, na nova sala inaugurada, e também Fernando Calhau, Biberstein, Palolo, José António Cardoso, Jaime Lebre, Ana Vidigal, Graça Pereira Coutinho, Sofia Areal, Filipe Rocha da Silva, José Loureiro, Miguel Branco, João Queiroz, Ilda David, Pedro Portugal, Cabrita Reis ou Albuquerque Mendes.
O núcleo dos anos 60 inclui o primeiro «grande prémio» atribuido a Joaquim Rodrigo pelo G.N. - Guarda Nocturno, de 1961, que o juri então classificou como «uma importante proposta de pop arte, só depois generalizada na América e na Europa», enquanto J.-A. França situava a marca pop na presença de «uma visão de certo modo ingénua e de certo modo popular da realidade» — à distância reconhece-se a espantosa sucessão de equívocos. António Areal foi o vencedor em 67 e tem representação alargada por aquisições realizadas por ocasião da sua instalação no Funchal, logo no ano anterior. Outras peças significativas, que ganharam segundos prémios ou prémios de aquisição, pertencem a Jorge Martins (uma notável tela a que, por feliz coincidência, a Marca pôde associar outras obras, na galeria Luís Serpa, nas galerias municipais de Faro e na Casa da Cerca, de Almada), Nuno de Siqueira, Lourdes Castro, Artur Rosa (de presença Op), Helena Almeida (a Pintura nº 1, a provar a incompatibilidade com a disciplina) e Manuel Baptista, com um interessante Baixo Relevo branco, enquanto se aguarda ainda restauro o Relevo Preto de José Escada, de plástico recortado.
O catálogo é um registo de informações significativas dos anos 60 e, em especial, da primeira abertura do Funchal à arte contemporânea, que só em anos muito recentes foi reatada. Entretanto, será legítimo esperar que o Museu venha a contar com um acervo compatível com a importância da obra de Lourdes Castro, que é natural da ilha e aí reside agora. E certamente o Museu estará também atento a outros mais jovens artistas madeirenses, que expõem na galeria oficial da DRAC e marcaram presença na Marca: Guida Ferraz, Eduardo de Freitas, Alice Sousa, Lígia Gontardo, Laíz Vieira são nomes surpreendidos de passagem no pavilhão do Tecnopolo, de que ficarão a esperar-se continuidades de trabalho que confirmem ou não uma primeira impressão.
Este é também o lugar para referir uma exposição de Manuel Zimbro, ainda mostrada na Porta 33, enquanto já outra se inaugurava, de Ilda David, com pinturas a propósito do Cântico dos Cantos. «História Secreta da Aviação», acompanhada por um livro com o mesmo título, exibe desenhos a lápis e esculturas «aeromodeladas» (de materiais de aeromodelismo) que dão notável sequência aos «Torrões de Terra», os guaches vistos em 95 na Assírio & Alvim, em Lisboa. Mantendo na aparência da cópia uma radical excentricidade aos códigos da produção corrente («as "delicadezas artísticas", as "poéticas afectações"»), o desenho minucioso das sementes voadoras ou a sua construção em volume toma a atenção silenciosa ao natural um acto de vida, para além da observação e da réplica. É a suspensão do conceito e do sentimento que numa asa da semente do pinheiro sustenta essa outra dimensão da sensibilidade «que liga as mãos-cérebro-coração no nascente acto de fazer, ou de não-fazer», como escreve M. Zimbro.
Entretanto, a nova montagem do Museu Henrique e Francisco Franco (da Câmara do Funchal), anuncia-se sob o sugestivo título «Por Causa de Paris». Inaugurado por ocasião da primeira Marca — outra prova de como os festivais podem deixar efeitos persistentes... —, teve há um ano uma apreciável revisão do seu acervo, igualmente conduzida por Francisco Clode de Sousa, que valorizou em especial os notáveis desenhos parisienses de Francisco Franco, dos anos 20, antes de que o regresso definitivo à pátria e a acomodação às exigências estatuárias do regime se deixassem academicamente tolher. Quanto ao irmão Henrique (1883-1961), do itinerário dos anos 10 e 20, antes de perder-se em pinturas murais e no professorado em Lisboa, resulta a surpreendente descoberta de um pintor que em Paris actualizou um realismo melancólico de seguro gosto decorativo, com lugar marcante no seu tempo — e no nosso também.
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