As fotografias médicas realizadas por Miguel Ribeiro na África do Sul nos anos 90 são "incontornáveis". O corpo do outro - negro, doente, ferido - é mostrado (sobriamente encenado ou coreografado, como pose e iluminação) com uma crueza austera, com uma humanidade que ao mesmo tempo impede a boa consciência humanitarista. Foram reconhecidas e publicadas, são decididamente polémicas e dificilmente repetíveis.
A seguir o médico e fotógrafo tomou por objecto o seu próprio corpo, isolando-lhe fragmentos que colocou em relação com a paisagem. Mostrou essas fotos em 2002 (ver abaixo) e outros trabalhos mais em 2004 e 2006, que foram pouco vistos.
O regresso é feito com novas séries de trabalhos que levam mais longe a exploração do corpo próprio, numa direcção que é mais abstracta na aparência imediata, mas que, paradoxalmente, se torna por isso mesmo mais física e mais desafiadora. Passando à impressão digital e à montagem de sucessivos negativos, mas dispensando a manipulação dos registos, adoptando maiores formatos e um profundo contraste do preto e branco, a desrealização das formas e a estranheza inicial são reconduzidas à objectualidade sensual da pele e dos volumes ou vazios de um enigmático teatro corporal. Teatro coreográfico no caso das montagens de pormenores levados até à configuração de uma grelha onde a individualidade de um corpo se dissolve numa multiplicidade indistinta.
O uso do vídeo - em dois casos - é outra das direcções eficazes deste itinerário discreto. Num caso impõe-se a materialidade luminosa dos sucessivos fragmentos de pele; noutro caso, numa diferente linha de trabalho,a montagem sincopada de sucessivas imagens fixas de uma cabeça entre as mãos, em grande formato e com som, impõe-se com um poderoso impacto.
Appleton Square (R. Acácio Paiva 27 r/c, à Av. da Igreja), em colaboração com a galeria Cristina Guerra até 22 de Dezembro
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Expresso Actual 28 Dez. 2002
Miguel Ribeiro
Centro Nacional de Cultura (12 Dez 2002 a 12 Jan. 2003)
Fotografia da série «Paisagens»
O nome era ignorado, mas a informação recebida, além das pequenas reproduções de «Paisagens», dava conta de várias exposições e publicações relevantes, como a segunda versão de «O Século do Corpo» (Culturgest, 1999), mostrada em Lausanne e editada pela Thames & Hudson, em 2000. Tratava-se então de fotografias médicas, notáveis retratos rigorosos de corpos subjugados pela doença, realizados na África do Sul, onde M.R. trabalhou até 1991.
É uma mais recente série de trabalhos que o CNC expõe (mostrando também as edições anteriores), onde fragmentos do corpo próprio recortados em primeiro plano se sobrepõem às vistas imprecisas de um horizonte de mar ou a paisagens diversas, naturais ou às vezes simbolicamente monumentais. Vem à ideia o notável trabalho fotográfico de Arno Rafael Minkkinen, que o autor desconhecia até há pouco, mas a linha explorada é suficientemente diferente para se sustentar por si mesma, nas suas provas de médio e grande formato de um preto e branco de valores tonais profundos. Em vez do corpo atlético e mutante integrado na paisagem, no finlandês de grande carreira norte-americana, encontramos o fragmento anatómico mais ou menos reconhecível, apenas a palma ou partes das costas da mão, dedos ou um calcanhar, isoladamente monumentalizados sobre o distante fundo desfocado, oferecendo-se ambos a uma paralela interpretação divinatória. É um campo de experiências, depois da segurança das anteriores fotografias médicas.
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