Serralves nunca foi um museu. Usurpou o nome, que teve um significado e um prestígio próprio, mas funciona como uma galeria de exposições, uma kunsthalle. Lugar de passagem de exposições, casa de passe, onde o monta desmonta se substitui à sedimentação, revisão, rotação de uma colecção - sem prejuízo dos espaços para outros programas de prospecção, investigação, divulgação. Um museu, uma colecção, é uma narrativa, a construção temporária de um sentido. Um acervo nas reservas identifica um armazém, um depósito, não um museu.
Entende-se a lógica do não-museu, o parque de diversões, porque quantas obras das que se vão adquirindo aqui e ali, por estas ou aquelas razões e cumplicidades, e vão directas para as reservas, sustentariam as razões associadas a um tempo longo, passada a impressão de novidade ou só da aparente surpresa. A ideia de escolha (sujeita a revisão sucessiva) no que ela implica de exigência de significado e qualidade, e no que pretende de perdurável (não imutável) é alheia aos critérios de programação. É a indiferenciação que sempre reinou, sobre o compromisso firmado entre uma estratégia de recuperação institucional dos anos 60 (circa 68) e uma lógica de mercantilização alargada de produtos destituídos de quaisquer condições ou especificidade - quem cauciona o quê nessa rede de interesses? Não se trata de definir um cânone (nunca se tratou de definir um cânone nos museus... - os museus são recentes, e a prioridade ao efémero contemporâneo foi a regra até ao construir da história da arte como disciplina na segunda metade do séc. XIX); trata-se de distinguir, de ensinar a distinguir, de separar a moda e o sentido mais vital e profundo... Um exemplo só: aqueles não são Rauschenbergs de museu, são de galeria... - e foi-se perdendo a consciência dessa diferença. Quem não viu outras obras não fica a saber porque é que R. foi um artista de grande importância (não basta incumbirem publicitários de dizer que o homem/é foi um grande artista. Mas a idea de importância relativa e a exigência de saber não são politicamente correctas.
No Chiado, o museu definido pelo organismo da tutela foi desvirtuado no seu progama por um director deixado em roda livre, esvaziando-se as galerias para promoções variadas e aplicando-se critérios de montagem próprios de um design novo-rico, depois de fazer desaparecer a compartimentação do espaço que um arquitecto especialista francês julgara conveneniente para obviar à escassez de superfícies (sabemos mais disso cá na província). Para impor certos presentes é preciso maltratar a história, apagar o passado. Uma ou outra atracção que por lá passa (a caminho da colecção Rendeiro?) não trava o crescer da insignificância e a ignorância crescente que se lhe segue. Percebe-se que a degradação da ideia de museu agrade às chamadas autoridades, que assim se desobrigam do compromisso que um dia assumiram de lhe ampliar as instalações. Mas para que raio haveria de crescer o museu do Chiado, se assim se prova que aquilo não interessa a ninguém? Para ser mais do mesmo já basta assim. Aqui ao lado, com o Prado, o Reina Sofia, o Thyssen, passa-se o exactamente o contrário, mas Madrid é uma capital; nas províncias espanhola é possível passar-se o mesmo que em Lisboa.
Chegou a vez da Gulbenkiam desfazer-se do seu museu contemporâneo, por pressão de uma administração cujas limitações muito se agravaram publicamente com o transe comemorativo do meio século (...
). Começou por privadamente se desvalorizar a colecção, demasiado portuguesa, logo provinciana, inútil - o modelo de Serralves foi fazendo escola. Depois instalou-se um exercício de efemeridade gratuita com a chamada instalação que lá estacionou uns meses, após se ter usado o salão vazio para um jantar aniversariante. Agora esconde-se uma breve escolha da colecção nos bordos da grande nave e inicia-se um ciclo de eventos. O papel histórico e escolar da colecção do CAM, melhor ou pior servido, é deitado fora e o que se podia ver e estudar ao vivo (a única aprendizagem real) substituir-se-á por leituras - deve ser por isso que cada vez se vem escrevendo pior sobre arte.
Eles convidam os Steiners para discursarem em elegantes saraus, mas fazem tudo ao contrário. Propõem-se avaliar o estado do mundo mas não cuidam da situação da casa. Aquele convergente modelo estratégico anti-museu que as diversas instituições perseguem tem uma larga aceitação porque em matéria de cultura passou a ser-se reverente e obrigado com quem manda. E ao "revitalizarem" o CAM, como já ouvi dizer que fizeram, talvez nos venham a caber algumas migalhas, ou seja, talvez também a mim me venha a calhar lá ter um dia uma obra ou coisa, mesmo literalmente por um só dia, que é muito mais do que os cinco minutos de fama de que falava um famoso desenhar de publicidade. De museu a espaço temporário e rotativo é certamente um democrático progresso porque sendo o talento muito desigualmente distribuido só uma lógica de indistinção e insignificância nos pode facultar a todos a miragem universal de uma qualquer efémera consagração e de uma igualizável suposta excelência, usando palavras sem sentido como consagração e excelência.
Pois é. Resta o Berardo, que é o único museu de arte contemporânea que existe por agora em Portugal. E ainda dizem mal do homem...
Posted by: Luisa | 11/23/2007 at 12:05
Ainda relativamente ao comentario anterior e sobre tudo o que li aquando das reaccoes do Museu da coleccao Berardo fiquei negativamente surpreendido com os comentarios feitos na altura.
Penso que a' parte das negociacoes que foram feitas relativamente 'a instalacao da Coleccao Berardo no espaco do CCB, os directores de outros museus que mais criticaram a iniciativa deveriam ter sido mais inteligentes.
Deveriam sobretudo tirar contrapartidas para si e visto que o Estado Portugues supostamente ira' minimizar os custos com o CCB, o "excedente" poderia ser utilizado em projectos de desenvolvimento de outros museus ou espacos com perfil museologico.
Para alem disto penso que deveria haver uma maior aposta curatorial sobre o acervo dos museus - quase como uma especie de memoria organizada por alguem que conhece profundamente a coleccao e que permite abrir horizontes 'as pessoas que nao tem esse conhecimento.
Uma criacao de um "dialogo" entre artistas, museus e publico.
Nao se pode esperar uma atitude activa de um Publico que nao consegue ter espaco de participacao.
As consequencias disto sao sempre uma submissao do espectador em relacao ao que lhe e' apresentado e sucessivamente uma falta de opiniao critica (ou entao demasiadamente critica por muitas vezes estar completamente fora de contexto).
E' realmente importante construir uma memoria em vez de se andar atras das "novidades" e formulas aristicas que podem ser encontradas nos livros da Phaidon ou Tashen e posteriormente apropriadas.
Aos jovens criadores hoje nao existem muitas outras alternativas.
Contudo eu acredito nesta nova geracao, que ainda que nao tenha um forte laco com o passado parece fazer contrariar a fraca cristalizacao da memoria museologica. Existem espacos e iniciativas espalhados pelo Pais e a pouco e pouco o seu valor tem vindo a ser reconhecido nesses mesmos lugares que sao hoje a sua memoria.
Talvez daqui a umas decadas e se os Museus nao se continuarem a comportar como portadas de grandes coleccoes nacionais (que legitimam a presenca da obra nas coleccoes) e fizerem o seu papel de criadores de memoria, entao se possa falar de um refrescamento e um novo comeco para a Arte Portuguesa.
E' importante que continuem a existir premio para Jovens Criadores, Antecipartes, espacos como a ZDB, o Pessego para a Semana, Avenida da Liberdade 211, Voyeur Project View e outros que tal...
Destes espacos ou iniciativas semelhantes futuras se constroi o Amanha. Os museus tem a obrigacao de dar a base de conhecimento para que se possa construir e consolidar o que e' a nossa cultura, mas ao mesmo tempo abrir oportunidades para que estas pessoas possam expor.
Nao se pode ficar demasiadamente preso ao passado, mas tambem nao se pode querer estar a tentar fazer de um museu uma especie de loja que vive da sazonalidade dos artistas.
Posted by: Pedro dos Reis | 12/09/2007 at 20:11