Transcrevo adiante parte do texto que Pacheco Pereira dedicou ao Museu do Neo-Realismo numa crónica do Público (10 de Nov.) editada no seu blog ( Abrupto ). Ouvi valorizar a expressão pública do seu interesse pelo Museu de Vila Franca de Xira, com a reverência que se cultiva face à direita inteligente, mas não ouvi discordar da questão que levanta, revelando com ela uma incompreensão do neo-realismo que tem sido comum à direita e à esquerda, por conveniências cúmplices e idêntica ligeireza.
A pergunta sobre a oportunidade de uma possível extensão do âmbito do Museu às "produções (culturais, artísticas) oriundas da extrema-esquerda" é uma pouco subtil afirmação de que o respectivo âmbito actual é apenas o da suposta ortodoxia cultural do PCP, ao tempo da sua hegemonia. Não é bem assim, mas não é isso que importa. O que a questão revela é a dificuldade de entender o NR como algo mais do que, ou algo de diferente de um mero braço artístico de uma ideologia política.
O problema está numa abordagem da produção neo-realista (e refiro em especial o que respeita às artes plásticas, mas poderá generalizar-se) que a encara apenas ou principalmente como efeito da militância partidária (a do PCP), ou seja, que a vê como aplicação de um predeterminado receituário ideológico de importação de que faz parte uma certa temática (e a prioridade à temática, aos assuntos, ao conteúdo sócio-político) e um código formal definido como "realista", e mais especificamente "realista socialista" de inspiração soviética. Essa é, de facto, a preguiçosa tradição universitária portuguesa que o prof. França construiu nos anos 50 sobre a base de duas oposições arcaizantes (então militantes... mas eram outras militâncias): uma oposição "conteúdista" entre neo-realistas e velhos e novos surrealistas, primeiro, e outra formalista, depois, entre figuração e abstracção, as quais trasmitiu a estudantes e dependentes e que servem ainda os vários interesses em presença, incluindo os do PCP.
Paula Rego, 1954, Under milk wood, 110 x 110 cm (Col. University College London, Londres). Exposto em Madrid até 30 de Dez.
Neo-realismo ou realismo social inglês?
Feitas aquelas identificações rápidas do tema e da forma (redutoras e em definitivo
erradas -- a suposta origem em Jdanov + Cunhal), 1 - já não é preciso ver as obras e procurar as suas efectivas referências
formais (que ultrapassam em muito ou rejeitam o por aqui pouco apreciado modelo
soviético, mesmo se por via francesa, a partir de 1947-48);
2 - dispensa-se a análise concreta dos itinerários artísticos pessoais e geracionais, bem com o estudo da circulação da informação artística e da mobilização dos artistas na década de 30 e no contexto da II Guerra (quando o frentismo progressista e antifascista transcende em muito e às vezes contraria a influência do comunismo soviético);
3 - prescinde-se da consulta das fontes da época, com a sua
muito intensa relação com a história que então se vivia (um texto de 45,
na sequência da vitória aliada; dois artigos de 47, antes ou depois da
prisão da direcção do MUD Juvenil; uma crítica de 49, quando o regime
se estabiliza no contexto da Guerra Fria; uma intervenção em 53 por ocasião do da polémica interna e do desvio de esquerda do PCP têm de ser entendidos de acordo com seu
específico contexto, que pode ser também, numa leitura fina, o da maior ou menor eficácia
controleirista de um aparelho partidário clandestino e debilitado).
Dá algum trabalho distinguir e situar uma obra ou um texto, e é legítimo pensar que é demasiado trabalho para tão escasso número de grandes artistas. Mas então fale-se de outra coisa...
Leia-se o PP:
"...deve o Museu do Neo-Realismo ignorar as produções oriundas da extrema-esquerda que são subsidiárias de uma estética e duma política que, num sentido largo, faz parte do mundo do comunismo do século XX? É verdade que essa produção é muito menor, por regra de má qualidade, mas também no museu se acolhem livros, revistas, quadros e filmes de muita má qualidade estética mas representativos da corrente que dá o nome ao museu. Quando falo dessas produções da extrema-esquerda, refiro-me às canções de Tino Flores, às peças de teatro na emigração por grupos de "teatro operário", e aos poemas, contos e peças apresentadas, por exemplo, nos Jogos Florais organizados pelo Salto em Paris, ou publicadas em efémeros jornais clandestinos. A mesma ilusão romântica revolucionária que Eduardo Lourenço descreveu como o âmago do neo-realismo português, os mesmos paradigmas estéticos, o mesmo tipo de heróis e vilões, a mesma visão social e política estão presentes nessa literatura, nesse grafismo, mesmo quando as imagens que ilustram os textos têm os olhos em bico, em imitação dos cartazes chineses da Revolução Cultural. O idílio com a literatura chinesa e albanesa não é muito diferente do enlevo pelo triângulo amoroso operário-kolkoziana-tractor dos nossos neo-realistas.
Todas estas produções não ocuparão mais do que uma pequena estante, mas deve essa estante ter lugar num museu que guarda a 90 por cento obras de autores para quem o PCP era a encarnação do destino manifesto? A resposta a esta pergunta pode ser a diferença entre um museu ideologicamente fechado ou historicamente aberto e este dilema acompanhou sempre o Museu do Neo-Realismo. A existência do museu não é isenta de polémica, mas este tem crescido e melhorado porque todas as ambiguidades têm sido sempre resolvidas a favor do tratamento histórico do movimento que lhe dá o nome, com distanciação científica e histórica. Isso significa que o Museu do Neo-Realismo é uma realização de mérito, útil para o conhecimento da nossa história literária, artística, social e política, e uma efectiva valorização identitária para a região de Vila Franca de Xira- Alhandra-Póvoa de Santa Iria, uma das zonas emblemáticas do neo-realismo."
Com o rodar do tempo, é provável que o Museu consiga beneficiar do melhor que já se produziu sobre o movimento NR nas suas direcções literária e "plástica", tomando a iniciativa de rectificar as versões simplistas que se manifestam em títulos como a "Batalha pelo conteúdo", e que PP interpreta em termos de conteúdo partidário. Este "conteúdismo" é totalmente anacrónico (na sua formulação abstracta), porque escritores e artistas não falavam então para dentro do gheto universitário (cf The Return to the real, dum tal Foster), ou para o interior do "mundo da arte", mas sim "para o povo e pelo povo", numa batalha pela liberdade e pelo progresso que se travava ao mesmo tempo como uma batalha por formas modernas e socialmente intervenientes. A banalidade obscura de um Eduardo Lourenço sobre a ilusão romântica revolucionária não nos serve para nada.
A partir daí entender-se-á que está menos em questão a extensão literária e artística de uma acção partidária (ortodoxa ou esquerdista, filo-soviética ou pró-chinesa...) do que a reconsideração, a atenção à actualização ou à invenção de programas realistas que se afirmavam como ambição de modernidade e como problema moderno (mas não "modernista"), por vezes como ideia de vanguarda, ao londo dos anos 20 e 30, e depois deles. Essa procura de novos realismos ou realismos modernos (e de um classicismo moderno como tem dito Tomàs Llorens - realismos modernos ), e também de realismos que prolonguem a grande tradição da pintura menos implicados com a ideia do novo, é um vasto campo que só em pequena parte (no segundo âmbito) se pode associar ao realismo socialista de Jdanov. Esse debaté é muito intenso, porque é plural, no quadro da "Querela do Realismo" de 1936 e da mobilização dos artistas em várias frentes internacionais contra a guerra e os fascismos (com escassa expressão em Portugal, como se compreende: a repressão e António Ferro - o pau e a cenoura).
O estudo da "batalha pelo realismo" que em Inglaterra decorre ao longo da década de 50 será também um contributo para arejar as abordagens ao neo-realismo em Portugal. O que aí acontece é a particular vitalidade de uma tradição realista que no princípio do século XX se afirma como herança de Walter Sickert e que se reconhece nos trânsitos que vão da Euston Road School de W. Townsend e W. Coldstream para a Slade, para aparecer tanto nas pinturas ainda escolares de Paula Rego como no realismo social dos pintores da Pia de Cozinha (Kitchen Sink). Não decorrem daí influências para o neo-realismo em Portugal, que foi pioneiro na sua aparição e também na sua morte, ou rápida recusa, mas o exemplo é importante para situar a vertente social do programa realista na sua tensão-oposição à dimensão existencial ou existencialista do "realismo modernista" que veio a reconhecer-se e a impor-se até ao presente como a face mais visível da Escola de Londres. Ver The Battle for realism, James Hyman, Yale University Press, 2001. Aí se refere e enquadra brevemente a formação inglesa de Paula Rego.
Tudo isto é muito mais rico e complexo do que uma mera história de PC's.
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