Expresso/Cartaz de 01 Fev. 2003
"Com a escala do Universo"
Jorge Calado reuniu em Évora 85 obras-primas da fotografia
Depois de «À Prova de Água» (CCB-Expo-98), «Pedras e Rochas» parece uma exposição de câmara. De facto, se é menor o número das fotografias expostas (85) nas galerias da Fundação Eugénio de Almeida, em Évora, a ambição e a escala do projecto de Jorge Calado são as mesmas, também com a dimensão do Universo.
Viaja-se pela história geológica da Terra e por quase toda a história da fotografia, de 1857, 20 anos depois dos primórdios, na era das grandes viagens topográficas pelos vários continentes, até ao presente já do séc. XXI. Percorre-se o Globo, da Muralha da China aos areais de Point Lobos (Edward Weston), dando um salto à Lua com a Missão Apolo (NASA, 1969), e atravessa-se igualmente todo o mapa das civilizações, por megalitos pré-históricos (Stonehenge, o mais emblemático dos santuários do neolítico, visto por Paul Caponigro e Richard Misrach), pirâmides egípcias (Félix Bonfils em 1870, Nozolino em 1992), o México pré-hispânico e barroco, paisagens contemporâneas.
O tema presta-se a leituras didácticas que distingam formações geológicas (montanhas, canyons, desertos), cristalizações, pedras roladas e rochas informes, estratificações sedimentares ou lavas basálticas (a Calçada do Gigante na Irlanda, de Peter Cattrell, 1990), mas a perspectiva da ciência não é contrária à contemplação estética da natureza (o sublime romântico das paisagens montanhosas, reencontrado num Inverno do Central Park de Nova Iorque, em A Serpente de Gelo, de Adolph Fassbender, c. 1933).
Também se podem percorrer as evoluções dos processos fotográficos, identificando os papéis albuminados dos anos 50-80 do séc. XIX, com ou sem viragens tonais, um cartão estereoscópico em albumina (e usar o respectivo visor, um Perfecscope de 1904, da colecção do Arquivo de Lisboa, que colaborou na logística do projecto e o acolherá mais tarde), um cianotipo de 1890, com o azul característico, as provas em papel salgado e encerado de grande formato, positivo e negativo, de John Murray (Índia, 1858), as magníficas provas recentes em platina-paládio de Kenro Izu, as impressões «dye transfer» (Dungeon Canyon, de Eliot Porter, irmão do grande pintor Farfield Porter, de 1961) e as mais recentes técnicas da cor. Cedidas por fotógrafos e coleccionadores e por galerias de Nova Iorque, Santa Fé, Toronto, Londres e Sydney, são quase sempre obras-primas e provas «vintage», tiragens da época em que as fotografias foram captadas (mesmo se de anos recentes), às vezes envelhecidas mas com as tonalidades e os brilhos próprios, sem a uniformidade das ampliações tardias. A questão não é ociosa nem da ordem do fetichismo, como podem comprovar, abrindo os olhos para ver, os neófitos da reprodutibilidade mecânica.
É de um enorme e admirável «puzzle» de muitas variáveis que se trata, e outra das condições foi a escolha de fotografias pouco vistas e de autores menos banalizados, evitando-se a preferência usual pelo reconhecimento fácil de nomes e estilos em voga. Não faltam os pioneiros conhecidos, como John K. Hillers ou Francis Frith e Félix Bonfils, ambos com estúdios que cedo se especializaram no turismo fotográfico, os indispensáveis anónimos, e depois Frederick Monsen, explorador do Sudoeste norte-americano, Giorgio Sommer, que fotografou a erupção do Vesúvio, o peruano Martin Chambi (Machu Picchu, c. 1930) e o mexicano-alemão Hugo Brehme. Nem os clássicos modernos como Edward Weston, Imogen Cunningham, Walker Evans, Minor White, Aaron Siskind e Bill Brandt, ou os grandes contemporâneos Sarah Moon, Paul Caponigro, Richard Misrach e outros autores de larga projecção como Michael Kenna e Max Pam. Mas não é menos essencial a saída dos trilhos frequentados e a oportunidade de dar a descobrir outros autores mais desconhecidos, como Laura Gilpin, Guilhermo Kahlo (pai de Frida), Fay Godwin ou Ellen Auerbach, e muitos criadores contemporâneos menos festejados.
Exposição universal, onde o Sudoeste americano e o México têm presença insistente, conta com quatro portugueses (Nozolino, José M. Rodrigues, Augusto Alves da Silva e Valter Vinagre, este com a inesperada encomenda de fotografar o bolo «rocha»), reproduzindo-se no catálogo a emblemática e muito exposta pedra flutuante de Gérard Castello Lopes. Há também fotografias feitas em Portugal, por Neal Slavin, que aqui trabalhou em 1968 com uma bolsa Fulbright e teve uma antologia no Fotoporto de 1990 (Conímbriga, com mosaicos e cogumelos); George Krause, um dos fundadores da Photo League, há anos apresentado pelos Encontros de Coimbra (Ovelhas, Portugal, 1970, incluída na secção «Ninhos de Pedra»); Sarah Moon, com Natal em Portugal, 1999, onde uma ilha-rochedo da costa vicentina e as ondas que vão e vêm até à praia, contempladas em primeiro plano por um minúsculo homem de fato e mãos atrás das costas, à beira-mar, são vistas de uma falésia com a altura do rochedo, numa excelente prova de médio formato realizada a partir de negativo polaroid.
Outros fotógrafos ainda têm sido chamados a trabalhar em Portugal, como Mark Power, incluído na exposição «Trilogia» que Jorge Calado organizou em 2000 para a mesma Fundação de Évora, ou Leo Rubinfien (Chicago, 1953), Laurent Millet (Rouanne, França, 1968), participantes no projecto «Grândola À Vista», de 2001, ainda por completar e expor.
Seis secções ou núcleos, que se distribuem com fronteiras comunicantes, estruturam a exposição, com início nas «Pedras Sagradas» e sequência pelas «Geometrias», passando-se das montanhas e rochas veneradas à perfeição ou estranheza das formas encontradas na natureza (ou recriadas pelo homem, no estúdio de Brancusi), continuando pelos «Ninhos de Pedra», abrigos naturais procurados por homens e animais. Adiante, «Metáforas e Metamorfoses», onde há menires e grutas fálicas, um nu feminino de Bill Brandt, transformações da pedra e da paisagem em arte (as estátuas da ilha da Páscoa, por M. Kenna; as mãos de um oleiro mexicano, de Anton Bruehl, 1933; uma Máscara de e por Henry Moore, 1928; o pontão em espiral de Robert Smithson, de 1970, por Mark Ruwedel, 1993) e mesmo Mick Jagger fotografado por Graham Wood durante a tournée dos Rolling Stones de 1976.
Percorre-se depois o «Turismo da Pedra» e tudo termina em areia e pó com «A Morte da Pedra», num círculo perfeito com a imagem inicial da mais venerável das montanhas, Kailash, no Tibete, fotografada pelo japonês Kenro Izu, em 2000, onde o pico gelado e geométrico de uma brancura irradiante aureolada pelas nuvens «nasce» pelo intervalo de duas elevações simétricas obscurecidas pela noite.
Uluru ou Ayers Rock, na Austrália, e Shiprock, no coração do território dos índios Navajos, são as outras duas grandes montanhas sagradas, a que se seguem lugares e pedras da Índia. Ayers Rock, o maior monólito à superfície da Terra, com 340 metros de altura e nove quilómetros e meio de perímetro, vermelho-alaranjado (só o veremos a preto e branco), antigo lugar sagrado dos povos aborígenes Anangu «descoberto» em 1873, é hoje um ícone australiano (como a Ópera de Sydney, lembra Jorge Calado). Jeff Carter desenhou-lhe o contorno, em 1965, elevando-o entre as flores do deserto, e surpreendeu com a teleobjectiva a escalada dos turistas. Em frente, uma fotografia de Harry Nankin (o autor de A Onda, em «À Prova de Água») mostra-nos prováveis vestígios de algum ritual em pinturas rupestres (figuras de braços alongados e mãos espalmadas, em negativo) encontradas num abrigo rochoso do sudoeste australiano - a imagem está incluída no núcleo «Ninhos de Pedra» e dialoga directamente com outras silhuetas visíveis sobre uma parede de pedra numa fotografia de Imogen Cunningham (1925), cuja legenda nos faz adivinhar uma encenação com sombras projectadas de crianças.
A montagem é uma permanente distribuição de pistas informativas e embriões de histórias, cruzadas com a sinalização de tópicos formais. E tudo se prolonga ainda no catálogo, nos prefácios onde se põem em diálogo informações científicas, históricas e fotográficas, e também no completo dicionário de autores que conclui o volume. Houve, porém, um acidente imprevisto na impressão das reproduções, que faz com que o catálogo atraiçoe sem remissão a qualidade excepcional das provas expostas e a projecção externa possível de uma exposição de nível incomparável entre as produções nacionais (grandes museus incluídos). O simples confronto com as anteriores edições produzidas pela Fundação Eugénio de Almeida com organização de Jorge Calado (Trilogia e Terra Bendita, em 2000), ou a que aliou João Cutileiro e José M. Rodrigues já em 2002, na inauguração do Fórum com o mesmo nome, não deixa margem para dúvidas sobre a perda fatal de qualidade das imagens, onde desaparecem definições e os negros profundos, se infiltram tonalidades erradas e alteram cores. Sabe-se que diversos empréstimos de fotografias só foram possíveis na perspectiva da edição de um volume de grande qualidade, destinado à circulação internacional, e o que fica em causa é a possibilidade de futuras iniciativas com a mesma ambição. A correcção do desastre é possível, e o comissário, esta exposição e até o bom nome do país merecem-na.
Pedras e Rochas
Fórum Eugénio de Almeida, Évora, até 30 de Março
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E depois, Expresso/Cartaz de 18-04-2003 (nota)
Pedras e Rochas
Arquivo Fotográfico Municipal, Lisboa
Após a inauguração em Évora (Fórum Eugénio de Almeida, Jan.-Mar.), as
fotografias passaram de 85 a 104, publicou-se um novo e admirável
catálogo-livro (IST Press; impressão Guide; €29,5) e a montagem
adequou-se ao novo espaço, numa exposição de câmara que constitui uma
oportunidade raríssima de atravessar, sempre com excelentes provas,
quase sempre «vintage», a história da fotografia desde os anos 50 do
séc. XIX até uma larga representação das décadas mais recentes (Mark
Klett, Richard Misrach, Michael Kenna, Kenzo Izu, etc.), numa selecção
que tem ainda a qualidade de evitar a repetição preguiçosa de imagens e
nomes banalizados.
O tema desdobra-se em múltiplas direcções, da
geologia à geografia, da religião (pedras e montanhas sagradas) à arte
(os templos, a escultura), da exploração do mundo ao turismo
fotográfico, prolongando-se num sem fim de pistas e comentários
(«Metáforas e Metamorfoses»...) sobre a vida e a morte, através de um
percurso que é um imenso «puzzle» e nos confronta com toda a realidade
da fotografia como documento, descoberta e criação artística. A ver
repetidamente, inventando percursos pessoais através dos múltiplos
sentidos da montagem proposta por Jorge Calado.
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