1.
Picasso, «Suite 347»
(Centro Cultural de Cascais, Setembro - até 4 de Novembro)
Expresso Cartaz de 8/9/2001 (nota)
Exposta
pela primeira vez na Galerie Louise Leiris a 19 de Dezembro de 1968, em
Paris, é uma gigantesca série de gravuras que Picasso realizou no seu
atelier de Notre-Dame-de-Vie (Mougins) entre 16 de Março e 5 de Outubro
desse mesmo ano, em mais um ciclo de extraordinária energia ou
compulsão criadora, já cinco anos antes da sua morte mas com plena
posse dos seus meios.
Através de uma grande diversidade de formatos e continuando a explorar
todos os recursos técnicos da gravura, o velho artista regressa ao tema
espanhol da Celestina, parodia os pícaros e os mosqueteiros do Siglo de
Oro, dedica-se às cenas do circo e aos temas da mitologia
mediterrânica, para concluir com Rafael e a Fornarina, uma sequência de
21 gravuras que tomou lugar destacado na recente mostra parisiense
«Picasso Erótico» (a partir de 15 de Outubro, em Barcelona), mas que em
1968-69 só podia ver-se numa sala privada da galeria.
Nessa série, Picasso inspira-se em dois quadros de Ingres para evocar
mais uma vez, mas com uma veemência ou ousadia inédita, através do
famoso episódio amoroso da vida de Rafael, o tema do pintor e o
modelo-amante, na presença de um «voyeur», que é em geral o próprio
papa, mas pode ser também Miguel Ângelo ou o gravador Piero
Crommelynck. Pertencente à Fundação Bancaixa, de Valência, a
apresentação desta série de gravuras segue-se, em Cascais, às da "Suite
Vollard", datada dos anos 30, e «156», de 1970-72. (Até 4 Nov.)
2.
Expresso Cartaz de 15/9/2001
"Picasso inesgotável"
As gravuras completas da «Suite 347» expostas em Cascais. Uma explosão criativa de 1968
Ao longo das salas do Centro da Gandarinha, as gravuras de Picasso cobrem as paredes em filas compactas de duas ou três estampas sobrepostas. Alinhadas por ordem cronológica, muito diversas nas suas dimensões, técnicas e temas, são um espectáculo inesperado que não se poderá esgotar numa única visita. Aproveitando o facto de a entrada ser gratuita, há que dividir o percurso em etapas e voltar à exposição uma vez e outra.
São as páginas de um longo diário pessoal que se expõem, uma imensa banda desenhada sem fio narrativo reconhecível, uma torrente de imagens fantasistas feitas numa só explosão de humor (de bom humor) durante a qual Picasso revisita muitos dos temas da sua obra, percorre as suas memórias imaginárias de Espanha e dialoga com todos os maiores pintores que o precederam, num exercício de criação que se diria totalmente despreocupado, de tal forma é rápido e livre o traço inscrito nas pranchas de cobre.
O nome da «Suite 347» refere o número das gravuras realizadas num jacto de sete meses, entre 16 de Março e 5 de Outubro, e a data não é indiferente. Não existe uma sintonização directa com os acontecimentos desse ano, que se anunciaram em Fevereiro em Espanha e a partir de Março se agravaram em Paris, até à paralisação geral da França, mas as circunstâncias foram propícias à febre criativa em o velho pintor de 86 anos mergulhou.
Instalado no que foi o seu último atelier, com o nome profético de Notre-Dame-de-Vie, em Mougin, Picasso estava recuperado da operação que fizera no final de 1965 e o retiro em que vivia, controlado por Jacqueline, torna-se com a crise política uma clausura total, apenas furada pelo uso constante da televisão e do telefone. A gasolina falta e interrompem-se as visitas dos amigos e galeristas. A única presença é a de Aldo Crommelynck, o gravador inteiramente disponível ao seu serviço, com um oficina montada nas imediações, que todos os dias lhe traz as chapas preparadas e volta com as provas impressas.
De Gaulle aparece numa das gravuras (21-22 de Abril), caricaturado de calças em baixo e armadura do tempo dos Filipes, com ar de não compreender o que lhe estava a acontecer. Picasso também não entenderia o curso dos acontecimentos e não é de política que se ocupa, ainda que se possa associar aos ventos da contestação da época o carácter irreverente e paródico das gravuras. No excelente catálogo que também vem da Fundação Bancaja, de Valência, um texto de Brigitte Baer, autora do catálogo «raisonné» da sua obra gráfica, busca algumas referências factuais (filmes exibidos na televisão, o assassínio de Robert Kennedy, por exemplo), mas as pistas são escassas para decifrar as charadas que o pintor nos oferece.
É o universo autobiográfico da sua obra (não da sua vida) que Picasso desenha, inteiramente entregue às fantasias sexuais e à revisão livre de uma memória muito pessoal da história da Arte. «Picasso, a sua obra e o seu público» é o título da primeira estampa, onde se auto-retrata de perfil, e a sua imagem mais ou menos reconhecível surge noutros desenhos, na figura de um velho que, de lado, no lugar do «voyeur», contempla uma cena erótica. Há, por vezes, algo de pungente nessa distância, mas mais do que a melancolia é a expressão do desejo e um humor libertário que orienta toda a «suite», até à sequência quase final dedicada aos amores de Rafael e Fornarina, nova variação, raramente exposta, sobre o tema predilecto do pintor e o modelo.
O circo, com saltimbancos e palhaços, a mitologia clássica, com raptos de sabinas, carros de combate gregos, bacantes e faunos, os espadachins e mosqueteiros do «Siglo de Oro», a figura da Celestina (a alcoviteira do século XV que retratara já durante o período azul) servem de temas a uma produção que tem a figura da mulher, o corpo feminino, como pólo inesgotável. Citando, de Velázquez a Monet, todos os grandes antepassados directos, Picasso procede a uma esfusiante dessacralização da arte.
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