Expresso 29-01-2000
Picasso e Dominguín
Museu Arpad Szenes – Vieira da Silva (Até 26 Mar.)
PICASSO foi visto recentemente em exposições de grande qualidade, como a que o Museu do Chiado dedicou às suas últimas pinturas, ou as das gravuras das «Suites» Vollard e 156, em Cascais. Continuam a faltar oportunidades de ver, em sequência sintética ou em outras antologias temáticas, uma obra que marcou o século XX sem paralelo (ou talvez com Matisse a igual altura, a questão continua em aberto). Esta mostra não tem esse nível de ambição. É uma pequena exposição íntima em que se apresentam peças reunidas ao sabor de uma convivência e mútua admiração, entre Picasso e o toureiro Luis Miguel Dominguín, e a actriz Lucia Bosé, sua mulher. É uma exposição bonita e despretensiosa, onde as peças mostradas não passam por obras-primas, mesmo que nelas se reconheçam a mão, o humor e a vida de um artista genial.
Picasso e Dominguín conheceram-se em 1958, em Arles, numa época em que o pintor, que faria 80 anos em 1961, costumava percorrer todo o sul da França, aos domingos, no seu Hispano Suiza conduzido por Paulo e repleto de amigos, para assistir às corridas de touros, fazendo da festa o último encontro possível com as raízes espanholas. Helène Parmelin descreve em Picasso sur la Place o encontro com Dominguín: «Vemo-lo entrar e encostar-se à barreira. Dedica o seu touro a Picasso. Faz um discurso em que fala de pintura. É Arles de Van Gogh à hora espanhola. Olham-se nos olhos durante todo o tempo que dura a homenagem de Dominguín. A praça aplaude. Picasso está de pé com o chapéu na mão. Senta-se, com o de Dominguín entre as mãos.» No fim de outra tarde de corrida, jantam em Aix e conversam apaixonadamente sobre literatura e política.
O toureiro mítico torna-se um amigo. Seguir-se-iam as visitas a Vauvenargues, onde Picasso sonha instalar uma praça de touros e desenha um traje de luces para Dominguín, ou a la Californie e Notre-Dame-de-Vie. No livro Toros y Toreros, agora exposto (embora fechado), Dominguín escreveu: «España siente por Picasso esa nostalgia que todo español deja percibir en forma de 'morriña' por todo lo que es ausencia... España tiene terrible nostalgia de Picasso, una morriña análoga a la él siente por España... y se percibe en su obra». O franquismo sobreviveria.
As peças da exposição são o eco caloroso e divertido desses encontros com o casal Dominguín-Bosé e os filhos, que decorreram até 65, segundo as datas reconhecíveis. Não são uma colecção canonicamente definida, mas uma memória afectiva, e muito menos são uma abordagem metódica sobre o lugar do touro e do toureiro na criação de Picasso ou o «hispanismo» da obra desses anos. Emblema da vida e da morte, o touro foi sempre uma das presenças mais constantes na sua obra, um elemento chave da simbologia pessoal, e a tourada tanto podia ser uma cena dramática (o cavalo esventrado, a mulher toureira, etc), como o motivo de reportagens gráficas ou episódio formal despreocupadamente decorativo. O touro foi símbolo de violência bruta e barbárie em alguns contextos políticos (em Guernica é uma presença nobre face à tragédia), era a encarnação da força e da energia vital, ou podia surgir, humanizado ou figura de referência mítica, em corpo do Minotauro.
A exposição mostra um retrato desenhado de Jacqueline, de 56, admirável na sua escrita escultural. Mais três linóleos, onde às figuras de toureiros se junta uma cena com faunos, e uma água-forte sobre outro tema constante, o pintor e o modelo. E também desenhos recortados e colagens feitos para os pequenos Miguel Bosé e Lucia, onde o velho pintor que nunca terá desenhado como uma criança encontra a graça dos desenhos infantis. Por exemplo, num tourinho desenhado com quatro orelhas, tantas quantas Dominguín cortara nessa tarde.
E peças de cerâmica decoradas com faunos e cenas de tourada, ou outro retrato linear de Jacqueline, que não são mais do que exercícios de humor e de prazer, de despreocupada destreza gráfica e de encontro feliz da arte com a vida.
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