Picasso exposto em Cascais, em 1997, e o Centro Cultural iria em seguida apresentar as outras grandes séries de gravuras, cedidas pela Fundação Bancaja:
a "Suite 156", de 1968-1972, exposta em Cascais em Abril de 1998
a "Suite 347", de 1968
e "El contemplador activo", de 1966-68.
#
Expresso Cartaz de 11 Outubro 1997, pp 16-17
"Da luz às trevas"
A "Suite Vollard", a monumental série de gravuras que Picasso realizou entre 1930 e 1937, apresenta-se pela primeira vez em Portugal. Obra prima
A FALTA de conhecimento directo da obra de Picasso é certamente uma das marcas distintivas da cultura visual portuguesa — corrija-se para incultura... Não pode deixar de ter consequências (porque um cromo não é o mesmo que uma pintura) que a primeira exposição monográfica dedicada a Picasso de que há memória tenha decorrido apenas em 1993, dedicada à colaboração com a Companhia de Serge Diaghilev e promovida pelos Encontros Acarte (*).
Este mês, porém, a Câmara de Cascais traz-nos a série de cem gravuras, de 1930-37, que ficou conhecida como «Suite Vollard» e o Museu do Chiado anuncia para dia 28 uma outra exposição sobre obras mais tardias («Picasso e o Mosqueteiro, 1967-72»). Serão preciosas contribuições para que um artista que marcou incontornavelmente três quartos do século XX e tem sido objecto de constantes abordagens temáticas originais — que, com a sua obra desmesurada, é toda uma outra história da arte do século — deixe de ser um pintor «conhecido» mas não visto.
Apresentada pela Fundação D. Luís, ligada à Câmara de Cascais, a exposição é uma das primeiras iniciativas do novo Centro Cultural da Gandarinha, ainda em construção. Numa pequena publicação que a acompanha, Rui Mário Gonçalves, Salvato Teles de Menezes, José Jorge Letria e José Luís Judas, seus responsáveis a diversos níveis, propõem-na como indicação do nível de intenções da sua actividade futura, e resta-nos esperar que o propósito sobreviva à circunstância eleitoral.
As gravuras da «Suite Vollard» têm um lugar central na extensa obra gravada de Picasso (mais de 2200 números de inventário) e incluem algumas das suas mais belas produções. O seu título associa-as a Ambroise Vollard (1868-1939), o «marchand de tableaux» que apresentou a sua primeira exposição em Paris, em 1901. Editor de obra gráfica de Gauguin, Redon e Bonnard, e depois de Rouault e Chagal, entre muitos outros, Vollard lançara em 1913 a série «Os Saltimbancos», gravada por Picasso em 1904-05, e encomendou-lhe em 1927 as ilustrações para Chef-d'Oeuvre Inconnu de Balzac. Pouco depois propôs a realização de uma centena de gravuras sem tema preciso, que viriam a ser editadas já a seguir à sua morte e só foram postas em circulação no final da Segunda Guerra.
A «série Vollard» é habitualmente dividida em conjuntos temáticos: cinco gravuras da «Batalha do Amor», o Minotauro (11) e o Minotauro Cego (quatro), retratos de Rembrandt (quatro) e Vollard (as três finais), mais um conjunto inicial de 27 trabalhos de temas diversos, realizados entre 1930 e 36, por vezes associados aos tópicos anteriores, e um mais extenso corpo central dedicado ao «Estúdio do Escultor», com 46 números. É essa a organização da mais conhecida das suas edições impressas, realizada por Hans Bolliger em 1956. Entretanto, a exposição é acompanhada por uma edição muito cuidada produzida pela fundação Bancaja, de Valência, de onde vêm as obras expostas, que segue uma outra ordenação, estritamente cronológica — deve notar-se, porém, que algumas datações são problemáticas e que os títulos não foram atribuidos pelo autor e são sempre meramente descritivos, variando conforme as edições (de «Abraço» a «Violação», por exemplo).
A sequência da montagem apresentada em Cascais diverge destas duas edições e opta, de um modo muito estimulante, por uma outra ordenação por temas (embora estes não constituam núcleos diferenciados), que é parcialmente coincidente com a sucessão cronológica. Dos primeiros nus isolados, «couples» e modelos adormecidos ou cenas tranquilas do «repouso do escultor» até às irrupções terminais das tauromaquias, à monstrificação dos corpos e ao tema do Minotauro, segue-se um percurso em se acrescentam sucessivamente novos motivos e se adensam as referências simbólicas, num crescendo de carga dramática que é coincidente com as circunstâncias da vida pessoal de Picasso (até à tentativa de divórcio de Olga, em 1935) e com o agravamento da situação política europeia (da subida de Hitler ao poder, em 33, até ao início da guerra de Espanha, em 36). Passo a passo, a atracção sexual torna-se ferocidade, a inocência do sono dá lugar à violência da luta, a posse é ritual de morte e surge o Minotauro como incarnação da bestialidade primitiva, parceiro ou personificação de Picasso.
É habitual invocar a respeito da «Suite Vollard» a condição de um quase diário onde se registariam as alterações da vida e do humor de Picasso, ao longo dos sete anos da sua produção. Esse é o tempo em que a relação com Marie-Thérèse Walter domina a obra do pintor — a amante tomada como uma referência figurativa constante e o modelo de uma plasticidade ideal, o corpo juvenil e escultural que se reconhece, em paralelo, nas mais extremas metamorfoses físicas que acompanharam os anos de contacto com o surrealismo e nas cenas neo-clássicas que dominam a maioria das gravuras da série. À evolução por períodos estilísticos sucedera, para Picasso, a possibilidade da circulação constante pelas diferentes linguagens formais antes experimentadas, como na «Suite» se comprova.
Para Picasso, o início dos anos 30 fora um tempo de renovado interesse pela escultura, com a aprendizagem das técnicas do ferro soldado junto de Julio Gonzalez e depois com a modelação em relevo. Adquire então o «chateau» de Boisgeloup, perto de Gisors, a 80 Km de Paris, e aí instala um estúdio de escultura: datam de 31-32 as cabeças esculpidas de Marie-Théràse que estão presentes em inúmeras gravuras.
Tema dominante da «Suite», o estúdio do escultor está directamente associado a um dos tópicos mais persistente na obra de Picasso, o pintor e o seu modelo, surgido pela primeira vez em 1914, a interromper o período cubista, num retrato de Éva Gouel. Indissociável do tema do par ou do casal, que atravessa toda a sua obra da maturidade, o tema do pintor/escultor e do modelo pode entender-se como uma profunda meditação sobre a relação do artista com o seu trabalho, como metáfora da criação artística, demiúrgica, e é permanente referência mais ou menos explícita à sua própria vida emocional. Sabe-se desde os anos 60, e em especial desde a recente exposição «Picasso e o Retrato», em Nova Iorque e Paris, em 1996 (EXPRESSO, 1-9-96), que essa dimensão autobiográfica é essencial na obra de Picasso, sendo a representação da figura humana quase sempre referida aos seus amores, encontros e estados emocionais, assim ligando plenamente a arte e a vida.
(*) 1993 PICASSO, Centro de Arte Moderna. Expresso Cartaz de 18-09-93 (nota)
«O Chapéu de Três Bicos»: estudos de cenografia e figurinos para os Ballets Russes de Diaghilev realizados em 1919, num momento de distanciamento de Picasso em relação ao experimentalismo cubista e de interesse pelo neo-classicismo, em que se afirma também um interesse folclorista que é, para além de uma das vertentes ocasionais do modernismo, o efeito conjugado de uma profunda atracção pelo imaginário espanhol e de uma episódica deriva mundana do pintor. Sem ser uma aproximação à obra de Picasso, aliás sempre mal vista em Portugal, esta é a oportunidade de assistir ao desenrolar de uma prática de oficina (com todas as suas pesquisas, hesitações e achados, patentes nas dezenas de pequenos desenhos aguarelados) e de acompanhar um grande pintor na sua procura de eficácia numa actividade que se dirá da ordem das artes aplicadas ou decorativas.
Comments