Foi uma das últimas retrospectivas da modernidade já histórica apresentadas pela Gulbenkian. (1)
Expresso Revista 3-2-96
"A condição humana"
Em meados do século, Georges Rouault (1871-1958) era universalmente
saudado como um dos mestres incontestados da arte moderna, mas,
entretanto, tornou-se mínimo o destaque que lhe atribuem as mais
recentes sínteses históricas e é certamente escassa a memória da sua
obra.
Artista de longo percurso solitário, desvinculado dos movimentos do seu
tempo mas partilhando com as vanguardas a afirmação de novas direcções
artísticas, e também o escândalo público, Rouault era, no final da
segunda guerra, admirado como o expoente da nova arte sagrada. O autor
das apaziguadas representações bíblicas dos anos 40 e 50, que pareciam
reconciliar a arte religiosa e a modernidade, tinha sido antes, porém,
o crítico profundamente pessimista da miséria da condição humana, de um
mundo de injustiça e degradação moral, que condenava com a «lama
sangrenta das suas pinturas», como escreveu Elie Faure.
Esse isolamento do itinerário criativo face aos optimismos vanguardistas, o sentido expressionista que a tradição francesa procurou extirpar como uma marca nórdica, alheia à elegância da racionalidade parisiense, e ainda a religiosidade intrínseca que impregna toda a pintura de Rouault parecem não lhe ter assegurado uma tranquila visibilidade futura.
É essa obra só aparentemente contraditória, que vai da veemência do escândalo vivido como necessidade interior até à expressão mais tardia de uma espiritualidade de funda inspiração medieval, esta obra sucessivamente rejeitada, consagrada e quase esquecida, que a Gulbenkian apresenta numa retrospectiva vinda da Fundação Juan March, de Madrid. E esta é, aliás, uma colaboração que se desejaria ver intensificada, já que a fundação espanhola, lugar de peregrinação anual de muitos portugueses, durante o Arco, tem cumprido um papel essencial na circulação peninsular de grandes nomes da arte internacional — como Malevitch, Jawlensky, Redon, Hopper, Bonnard, Matisse ou Leger, para citar apenas alguns artistas cronologicamente próximos de Rouault que em Portugal não se viram.
REVOLTA
Cinco dezenas de pinturas, incluindo aguarelas e guaches sobre papel, e uma dúzia de gravuras oferecem uma visão sumária mas genericamente correcta de uma obra produzida ao longo de mais de cinco décadas, que para além da pintura se prolongou por uma intensa prática decorativa, nos domínios da cerâmica, da tapeçaria, do vitral e do esmalte, da cenografia, para Diaghilev em 1929, e também, com particular importância, pela dedicação à gravura e à renovação do livro de arte.
No grande salão da Gulbenkian, a retrospectiva começa por seguir a ordenação cronológica da obra, destacando através de dois primeiros trabalhos a solidez de uma formação académica que fez de Rouault o aluno preferido do simbolista Gustave Moreau. Mas logo na montagem desse espaço inicial a serenidade melancólica do auto-retrato de 1895 desintegra-se na ferocidade raivosa e convulsiva das pinturas dedicadas à gente do circo e das feiras, aos saltimbancos, bailarinas e prostitutas, de um primeiro período da obra de Rouault em que a mostra justamente se demora.
Mais do que motivos plásticos herdados de uma extensa tradição realista, nomeadamente de Daumier, Degas e Toulouse-Lautrec, é da expressão da fealdade do mundo visto como um carnaval trágico que se trata nesses trabalhos, contemporâneos do miserabilismo do Picasso do período azul, mas certamente menos literários e sentimentais na sua visível urgência moral. A primeira apresentação pública destas obras de Rouault precedeu de pouco e depois acompanhou a afirmação dos artistas «fauve», no Salão de Outono de 1905, e com ela foi episodicamente confundida, sem se atender na essencial diferença entre duas revoltas de sentido estético diferente, onde a cor enegrecida e agitada imediatamente se distingue do colorismo hedonista de Matisse e dos seus companheiros.
Também as referências biográficas distanciam Rouault dos artistas do tempo: a sua origem operária é única entre os pintores contemporâneos e a ela se acrescenta uma formação literária inspirada por Pascal e Baudelaire, e depois a vivência de uma exacerbada religiosidade.
Rouault nasceu nos miseráveis arredores proletários de Paris, numa cave de Belleville, na última noite da derrota da Comuna, era filho de um marceneiro de pianos e iniciou-se aos 14 anos como aprendiz de restaurador de vitrais, antes de entrar na Escola de Belas Artes. Depois da morte de Gustave Moreau, que o designou como primeiro conservador do museu que legara ao Estado, Rouault chegou a procurar o recolhimento monástico proposto pelo catolicismo decadentista e panfletário de um Huysmans recém-convertido e descobriu nos escritos de Léon Bloy as virtudes de um pauperismo evangélico e anarquizante. Mais tarde aproximar-se-á de Jacques Maritain e de André Suarès.
De modo algo paradoxal, foi esse itinerário espiritual que lhe afastou a pintura dos temas sagrados para mergulhar num aparente mundo sem Deus, interessado na expressão patética e satírica da miséria, do pecado e da humilhação terrena. Se na «fealdade infernal» das suas figuras se cumpriam os apelos à cólera e à piedade de Léon Bloy, o escritor nelas veria apenas «atrozes e vingativas caricaturas»: «Em vão tento compreender como um artista que é exactamente o contrário de um ignorante e de um abjecto, o único que faz ainda pensar um pouco em Rembrandt, se entregou a esta caricatura abominável em que se degrada mortalmente a mais viril pintura do tempo» (1906).
Appolinaire, ainda em 1910, interrogava-se sobre qual seria o «sentimento inumano a que obedece o artista que concebe esses quadros sinistros».
Mais tarde, outro escritor católico, Suarès, diria que Rouault «vinga-se do mal pela fealdade e da fealdade pela irrisão (...) coloca a riqueza da matéria ao serviço de um furor que mutila as formas, que as resume com um traço quase assassino» (1940).
ILUMINAÇÃO
Dessa pintura que se distancia dos estudos propriamente formais para ser expressão exacerbada de sentimentos (mas com confessado «horror dos pretensos 'estados de alma'»), de uma intensa materialidade plástica com que a vontade de denúncia se destingue da ilustração, o percurso da exposição avança para o estabelecimento, na sua zona central, de um aparente lugar de demarcação entre o período percorrido de 1903 a 1920 e a produção posterior, dominada pelos temas religiosos.
Aí se colocam frente a frente os rostos patéticos dos Pierrots pintados nos anos 30 e 40 e dois Ecce Homo, já de 1948 e 1952, num processo de sublimação e ascese que nunca se separa do olhar sobre a condição humana: é uma síntese possível de um percurso espiritual que parte da visão amargurada sobre a sorte da humanidade para uma transcendência piedosa encarnada no mundo.
Mas a diferente serenidade do fazer pictural, da agitação furiosa ao empastamento do óleo, e à paleta mais aberta, com renovado sentido simbolista, não significa, apesar da revisitação assumida da tradição do ícone bizantino e da pintura românica, um retorno a uma anterior ordem naturalista.
Se o expressionismo específico de Rouaut não acompanhara o percurso para a abstracção seguido pelo misticismo teosófico de Kandinski e Mondrian, como via para uma nova «era da espiritualidade e da alma», é porque é outro o sentido da sua espiritualidade cristã, que acede aos mistérios da alma pelos caminhos da matéria em acto, numa iluminação que passa pelo homem e pela natureza.
O materialismo pictural de Rouault, o seu sentido e gosto da matéria plástica, só aparentemente contraditório com os valores espirituais, como sublinhava Jean Cassou nos anos 50, significa também a conquista de uma luminosidade intrínseca à substância da cor, nunca meramente cenográfica, e a adopção de um espaço que não é realista nem abstracto, nem plano nem profundo, antes insituável e indefinível, por vezes prolongando-se em jogos de duplicação interna da moldura ou de invasão desta.
A seguir a esse núcleo que passa da máscara do palhaço ao rosto de Cristo, a sucessão cronológica é logo desmentida pela aproximação de uma vista de Versailles, de 1905, e de uma paisagem simbólica (Nocturno Cristão) de 1952, associando o sombrio furor dos primeiros anos e a intensidade da cor luminosa e matérica da última pintura. Depois, em dois espaços simétricos situam-se, num deles, a produção continuada de cenas e personagens bíblicos, e, no outro, um conjunto variado de obras que apontam abreviadamente outras vertentes temáticas como as paisagens e tipos da Bretanha, as cenas de arrabalde parisiense, os desenhos caricaturais do Pedagogo, do Juiz e do militar (o alemão Von X), bem como as composições florais. Uma última natureza morta de 1953, já dos 82 anos do pintor, demonstra a sensível inteligência com que se continuava a lição de Cézanne que, logo no início da exposição, se afirmara nas Banhistas de 1903. Mesmo nas mais agitadas das suas pinturas, há uma clareza e solidez estrural da figura de que Rouault nunca abdica para experimentar a dissociação entre a cor e a forma.
Na sequência antológica da obra de Rouault, deverá, entretanto, notar-se a ausência dos temas do burguês e do juiz (este apenas presente no desenho citado), emblemas ubuescos de um poder corrupto que se contrapõe às paralelas figuras da humilhação, das prostitutas e palhaços, numa mesma procura dos arquétipos da decadência humana. Na figura do juiz, longamente trabalhada desde 1907, Rouault interrogava a presença grotesca da ordem que sustenta a desigualdade do mundo, prolongando o tema na sua fase posterior, quando a vertente crítica dá lugar crescente à meditação sobre a ideia de justiça, humana e divina.
No fecho da retrospectiva, as doze gravuras da série «Miserere», iniciada em 1917 mas só editada em 1948, são ainda uma súmula da linguagem expressiva e da temática de Rouault, demonstrativa da continuidade de uma obra que, na diferença entre o seu começo e o período final, evoluiu sem sobressaltos nem contradições. Se a cor aí não está presente, voltando-se à negrura dominante nas primeiras décadas, notar-se-á a densidade saturada de um suporte lentamente trabalhado por acumulação de processos, tal como nas primeiras pinturas se somavam a aguarela, o guache, o pastel e a tinta da China.
Na pintura, a densidade crescente da matéria sobreposta em pastas de cor tornara-se entretanto uma construção de luminosidades e fosforescências, que, se lembram a antiga aprendizagem das técnicas do vitral, também se impõem como a invenção de uma matéria sumptuosa e mineralizada. Jean Paulhan foi o primeiro a associar essa «matéria extremamente trabalhada e triturada a um recomeço da pintura a partir do material», a propósito de Dubuffet.
Entre as gravuras da série «Miserere» descobre-se um último rosto em que se actualiza o primeiro auto-retrato, agora com chapéu de palhaço e olhar halucinado, identificando-se o pintor com o emblema da condição humana que é a máscara, a vida própria com a obra — Quem se não mascara? pergunta o título.
A continuidade de Rouault no pós-guerra francês poderia ser vista na directa ligação a um novo miserabilismo, de intenção política em Francis Gruber ou rapidamente degradado no formulário convencional de Bernard Buffet, que retoma e encerra o tema do palhaço. Mais profundamente, a inquietação existencial de Rouault pode ser reconhecida, despida do seu explícito sentido religioso, na interrogação sobre o rosto humano levada a cabo por Giacometti e Artaud.
De um modo menos evidente, é a dimensão matérica da pintura de Rouault, a densificação das pastas até à mineralização luminosa, que parece estabelecer relações mais produtivas com a criação inovadora dos anos 40, através da obra de Fautrier e Dubuffet, e depois com a pintura de outro francês, mais tardiamente consagrado, Eugène Leroy, onde os géneros tradicionais se prolongam num «aparecer» da pintura que não é eliminação da imagem, mas transfiguração da «lama do mundo» (E.L.).
De um ponto de vista mais global, a visibilidade da obra de Rouault está associada ao destino de um expressionismo que não deve ser apenas entendido como passagem para a abstracção ou como tradição geograficamente confinada ao norte germânico. Fechando-se sobre uma «tradição de medida e de razão», opondo a interrogação formalista dos valores plásticos à intensidade expressiva, o lirismo à inquietação, a história francesa manteria Rouault como um pintor mal-amado, homenageado mas esquecido. Ele pertence, no entanto, a uma tradição tão alargada como independente das declarações de princípios e dos programas, tão inactual como indomável, que passaria depois por Bacon e De Kooning, Guston e Morley, Freud, Bazelitz e Kitaj.
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Gulbenkian, dd 1962
Numa lista manuscrita que o arq. Sommer Ribeiro me deu, quando se reformou, figuram, numa cronologia mais alargada, da história ao presente, além de Vieira e Arpad: Naum Gabo e Paul Klee (1972), Rodin, Turner e Manessier (1973), gráfica de Miró e Hajdu (74), Soulages (75), Burri, desenhos de Hockney e tb de Dix (77), gravuras de Munch e tb de Morandi (78), gravuras de Goya e Pollock (79), Vasarely e Bourdelle (80), Gargallo e Henry Moore (81), os Delaunay e gravuras de Picasso (82), Hockney fotógrafo e Bissier (85), Ben Nicholson (87), Zao Wou-ki (91), Tàpies e Hélio Oiticica (92). Uma lista pequena e muito focada sobre Paris e os seus trânsitos.
A que se acrescentam na lista de SR,
principais exp. colect. estrangeiras, que foram assegurando algumas
visões mais panorâmicas de origem inglesa e francesa, depois dos EUA e
do Brasil:
Arte Britânica no século XX (1962)
Um Século de Pintura Francesa, 1850-1950 (1965)
100 obras de Arte Britânica Contemporânea (1971)
Arte Francesa depois de 1950 (1971)
Movimento Dada, 1916-1966 (1972)
Sonia e Robert Delaunay e os seus amigos portugueses (1972)
100 desenhos europeus do MoMA (1974)
Suport-Surface (1975)
De Bonnard a Miró, Homenagem a Tériade (1977)
2ª Bienal de Tapeçaria de Lausanne (1978)
Panorama da Arte Francesa Contemporânea (1978)
Artistas Americanos do MoMA (1979)
Escultura e Vida (1979) (?)
Escola de Paris (1979)
Arte Belga de Hoje (1980)
Arte Espanhola Contemporânea (1981)
Pintura Americana dos Anos 80 (1982)
Realismo Norte-americano contemporâneo (1982)
Brasil - 60 anos de Arte Moderna, col. Assis Chateaubriand (1982)
Arte do Séc. XX do Museu de Endhoven (1984)
Diálogo (1985)
Colecção Weisman (1986)
Col. Roberto Marinho, Brasil (1989)
Encontros Luso-Americanos (1989
Arte de Berlim, 1900 até hoje (1989)
Papagaios, Pinturas para o céu (1991)
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