Expresso Actual de 13-12-2003
Da vida e da morte
Formas de inquietação e transcendência
Galeria Graça Brandão, Porto
À esquerda, um alinhamento de esculturas de parede, formas alongadas e em queda, transparentes na sua estrutura quase tubular, terminando numa espécie de concha recortada por uma absoluta simetria. Diversas na sua configuração física, todas elas parecem decorrer de um mesmo modelo ideal, para o qual não se encontrará um referente identificável, furtando-se à interpretação mas colocando como decisiva a questão do seu sentido.
A par do objecto, negro e de ferro, tornado instável pela presença das suas variações sequenciais, único e diverso, como se nenhuma das suas aparições se pudesse reconhecer como definitiva ou perfeita (como uma coisificação incompleta), existe a sua sombra projectada na parede. Lembram arcos e pináculos de arquitecturas de um gótico flamejante, mas a respectiva elegância elevada aos céus inverte-se agora numa descida aos abismos.
Objecto e sombra prolongam-se ainda num nome, o título da série e de cada peça, «Devastação», terceira presença com que o espectador se confronta: mais do que uma identificação ou chave de leitura, incerta pista sem tradução figurativa, é um outro elemento constitutivo, ainda mais imaterial que a sombra, da relação que estabelecemos com a obra oferecida ao olhar.
Um outro alinhamento paralelo de quatro esculturas suspensas do tecto, de formas mais volumetricamente densas, tem uma presença algo mais inquietante. Obstáculos no espaço, objectos pendentes, terminados com a aparência de um casulo entreaberto, uma semente ou flor que se rasga, ou carapaça de animal mutante (uma configuração presente em muitas obras anteriores de Chafes), são como que o contrário de monumentos, ou o negativo (embora maciço) de marcos totémicos - parecem manifestar uma queda ou uma perda, mas também e ainda uma hipótese de redenção, e parecem afirmar uma actual impossibilidade de celebrar, sem abdicarem de uma necessidade de transcendência. Os títulos referem qualificações humanas e dimensões éticas que podem ter ou não um sentido religioso (Pudor que Parece Arrogância, Nudez que Parece Pobreza, Pureza que Parece Obsessão, Riqueza que Parece Insolência), mas eles não descrevem nem aquelas se deixam reconhecer ilustradas na aparência individualizada das peças - associam formas instáveis e indefiníveis a conteúdos de pensamento por sua vez inesgotáveis.
As esculturas de Rui Chafes têm uma presença enigmática enquanto objectos que não se deixam definir ou nomear, e convocam uma relação reflexiva, espiritual e ética, que não pode ser vista como a expressão de uma subjectividade pessoal: «Acredito que a arte trata sempre da possibilidade de despertar no homem o pressentimento de um outro mundo», diz o artista.
O seu trabalho recente, reunido no livro Um Sopro, foi marcado por dois decisivos capítulos ou conjuntos de obras: o sol negro ou a bola de ferro com as suas fitas metálicas, que o escultor apontou como uma suma de longos anos de trabalho, e a extensa série «Lições de Trevas», aproximação extrema à figura humana (vultos monásticos) através de uma ascética ausência corporal. As peças actuais podem ver-se como a reconsideração de formas e ideias anteriores, mantendo Chafes uma produção que constantemente reexamina e desenvolve propostas que já balizaram o seu caminho, não sendo o novo um objectivo em si mesmo. Há, contudo, pistas que se abrem e diferentes direcções que se adicionam.
Agora, o recorte das formas pendentes na série «Devastação», onde a
ideia ou consciência da morte está fortemente presente, acentua uma
frequente disposição para que a linha desenhada sugira ou lembre
imagens orgânicas, de flores, embriões ou órgãos sexuais humanos, mais
como uma escrita simbólica da natureza e da vida do que como
representação. Em muitas das peças, são formas femininas nitidamente
recortadas, meios corpos inferiores, do ventre e do sexo aos pés, que
se reconhecem num desenho de grande elegância, primeiro invisíveis e
depois absorventes do olhar, num jogo óptico de verdade e ilusão em que
a interpretação novamente se suspende, mas que transporta uma evidente
erotização das formas. Esta aproximação à figura humana, ao mesmo tempo
explícita e secreta, lembra a presença fotográfica das esculturas de
Tilman Riemenschneider naquele livro (outra vez o gótico tardio, como
referência decisiva na obra de Chafes) e deixa em aberto novas e
intrigantes possibilidades de trabalho.
Rui Chafes
Galeria. Graça Brandão, Porto, até dia 16
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