Expresso Actual 11/5/2002
A beleza inacessível
Rui Chafes instala em Paris o seu caminho das sombras
"Leçons de Ténèbres", Galerie Cent8, Paris
No fim do itinerário pelas salas da galeria, perfilam-se oito colunas-torres de escala humana, com alturas variáveis, blocos erguidos de ferro liso apenas interrompido por pequenas perfurações regularmente alinhadas. Contornando-os, as suas formas arquitectónicas fechadas descobrem-se como invólucros humanos, sarcófagos verticais, figuras em recolhimento, vultos hieráticos cingidos por pesadas vestes monásticas. O seu interior vazio, recoberto pela mesma pintura em cinzento-metalizado, é às vezes parcialmente velado por redes de ferro e recortado por placas que definem a prisão de um corpo ausente, atravessado por pontos de luz. Rigidamente simétricos, são presenças espectrais que avançam numa imobilidade dramaticamente suspensa.
Fazem parte de uma série de 24 peças idênticas, de que se tinham mostrado outras oito em Madrid, numa exposição da Galeria Juana de Aizpuru («El Alma, Prision del Cuerpo»), em Janeiro, e de que se poderão ver em breve mais cinco no Porto, por ocasião da apresentação da colecção da Fundação Luso-Americana no Museu de Serralves. Rui Chafes espera que um dia possam ser mostradas todas num mesmo espaço e refere-se-lhes, acentuando a energia colectiva e a presença mortal que se desprende do conjunto, como uma cidade, um cemitério.
É o seu título, Leçons de Ténèbres, que dá nome à mostra que apresenta, até dia 25, na Galerie Cent8, em Paris, onde já expusera em 1999 («La Face Intérieur»). Na sua configuração formal, relacionam-se com as peças Extinção e Hospital presentes na exposição de Lisboa, e todas elas se associam a uma mesma meditação sobre a morte e as aparências da vida material que atravessa as obras recentes do escultor.
Uma idêntica invocação explícita da religiosidade medieval está presente nos títulos de duas outras esculturas maiores da mostra: De la Vie Monastique. São emblemas ou brasões de enigmática vocação simbólica, e as suas formas suspensas, em que não se diferenciará uma qualquer referencialidade vegetal, humana ou «abstracta», associam-se a anteriores trabalhos onde se quiseram adivinhar figuras de insectos, casulos, fetos, flores ou couraças, como uma sucessão de intrigantes realizações onde o impossível desenho dos corpos se abre sobre um vazio inatingível, como um obscuro apelo de transcendência.
Nessa continuidade entre sucessivas obras, mais do que uma produção seriada de variações sobre uma mesma proposta formal (que comprovariam a dimensão profissional de um trabalho do ferro tecnicamente excelente e uma produtividade artesanal indiferente à ideia moderna de obra única) encarna-se fugazmente a inacessibilidade da beleza que o escultor persegue. «O vazio é absoluto e só pode ser preenchido pela verdade (beleza)», disse Chafes, numa declaração romântica que se poderá entender também como uma radical procura do sentido face aos preceitos do formalismo e da banalização dos objectos, vivida na gravidade de um isolamento (monástico?) face às derivas contemporâneas.
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