Expresso Actual de 13-09-2003
"Escrever em ferro"
Um Sopro, ed. Galeria Graça Brandão (304 pág.; 40 €)
Mais ainda do que acontece com a pintura, não é em livro que se vê uma obra de escultura. A configuração tridimensional, a importância da luz que recorta diferenciadamente as formas, a inserção no espaço arquitectónico em que os objectos se instalam, quando não é em plena natureza que se mostram (ou escondem), a escala, a relação física com o espectador, frontal ou em movimento, não se comunicam pela fotografia, senão de um modo aproximativo. E no entanto, os livros em que Rui Chafes tem vindo a publicar a sua obra de escultor são mais do que um catálogo tradicional.
Um Sopro, o último volume editado pela Galeria Graça Brandão (304 pág.; 40 €), reúne as obras realizadas de 1998 até 2002 e sucede a três outros saídos desde 95: Würzburg Bolton Landing, com peças de 1987 a 94 (sem as instalações em madeira e plástico das três exposições iniciais, de 1986-88) e uma antologia de textos escolhidos pelo artista; Harmonia, esculturas de 1995 a 98; Durante o Fim, a acompanhar a exposição realizada em Sintra, no Parque da Pena e no Museu da Colecção Berardo, em 2000.
Na sua sequência, constituem uma espécie de catálogo «raisonné» da obra
de Chafes desde que adoptou o ferro como material de eleição, no
sentido habitual de inventário do trabalho dum artista, desvendando a
continuidade da produção com as oscilações de pesquisas e resultados,
repetições e recuos, sem o recurso confortável à antologia das peças
mais conseguidas (distinções neste caso problemáticas face à
regularidade exemplar da obra). Não se cumprem, no entanto, outras
condições desse tipo de volumes, que em geral os destinam a uma
circulação restrita e especializada: a informação sobre os lugares de
exposição de cada obra, a lista das reproduções e referências críticas,
a exaustiva documentação biográfica e bibliográfica.
É mais a
forma do livro de artista que Rui Chafes tem seguido ao publicar as
suas esculturas, sublinhando a dimensão livro (de leitura, mesmo se se
trata aqui de ler imagens) sobre as características do catálogo ou da
monografia. Em Um Sopro surgem também, num diálogo que atravessa todo o
volume, fotogramas de filmes de Robert Bresson e obras de Tilman
Riemenschneider, escultor alemão do gótico tardío (c. 1460-1531) que
Chafes aponta como o artista preferido. Ele já surgira no estranho
título do primeiro volume através do nome da cidade onde trabalhou e
morreu (Würzburg), numa aliança aparentemente insólita com a cidade
norte-americana de Bolton Landing onde em 1940 se instalou David Smith,
referência maior (depois de Picasso e Julio Gonzalez) da escultura
desenhada em ferro soldado. Em Harmonia, eram imagens de Bergman,
Dreyer e Tarkovsky, todas de rostos aproximados, que tinham pontuado a
edição estabelecendo outras afinidades formais e simbólicas.
Mais
nítida ainda de uma opção que contraria a aridez dum catálogo, a
reclamar outra atenção na «leitura» de uma escultura escrita em metal
(como referem Jan Hoet/Frank Maes no texto introdutório), é a
transferência das legendas para o índice final e o emprego de uma
sequenciação numérica que acompanha as imagens sem distinguir as peças
individualmente. Os 290 números não correspondem ao total de obras
realizadas, mesmo se a produção de Chafes é intensa, mas ao de
fotografias, incluindo-se por vezes duas, três ou mesmo cinco imagens
da mesma obra, além de vistas gerais ou parciais de exposições.
Dificultando a contagem das esculturas, será também a sua desconfiança
face à noção de objecto que o escultor põe em prática, conforme afirma
num passo, a vários títulos significativo, da «conversa» com Doris von
Drathen incluída no volume: «Não acredito no objecto, nem que ele é
importante, nem sequer que ele exista, de todo. Para mim o objecto é
apenas uma possibilidade. O que procuro no meu trabalho são formas que
funcionem como caracteres de escrita.»
Adiante, outra declaração
comenta a importância das séries no seu trabalho, como variações de uma
mesma proposição formal e significante: «Nenhuma das minhas esculturas
é a decisão final. Para mim, o importante é a radiação, a energia que
um objecto possui, é aí que reside o meu trabalho. Por isso não faço
múltiplos. Interessa-me a alma de um objecto. Considero a arte uma
transmissão de energias.»
Com uma circulação tão internacional como
é hoje a de Rui Chafes, o livro é indispensável para acompanhar uma
obra decisiva entre a escultura do presente. Além de numerosos
trabalhos realizados para lugares específicos, como Unborn, em Arnhem,
Holanda, duas séries se destacam como direcções polares do trabalhos
dos últimos anos. A bola de ferro sustida como um sol negro sobre fitas
também de ferro, sem peso aparente, que aparece sob diferentes títulos
- Amanhecer, Sol, Suave Medo Escuro, Um Sopro, A Tua Sombra, Entre o
Dia e o Sonho, Respiração, Perder a Sombra, Durante o Sono - até A
Alma, Prisão do Corpo, já numa diferente lógica espacial, elevando-se
numa esquina do tecto, mais leve que o ar. E as «Lições de Trevas», 25
peças com a aparência de vultos monásticos, em contiguidade com a série
«Da Vida Monástica», onde o mesmo nome se aplica a objectos de
diferente aparência formal.
Novos trabalhos vão ver-se numa próxima
exposição individual, no Porto, e uma primeira retrospectiva circulará
pelo final do ano entre dois museus dinamarqueses. Mas os livros de Rui
Chafes são também obras de arte.
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