"O céu e a terra"
Expresso Actual de 25-03-2000
TERRA BENDITA (Farm Security Administration)
e TRÍPTICO (José M. Rodrigues, Mark Power e Paulo Catrica)
Museu de Évora (Até 30 de Abril)
A PRIMEIRA das duas exposições dá conta de uma das mais admiráveis sagas da história da fotografia e de um dos grandes episódios político-sociais do século. «Terra Bendita» conta o que foi a intervenção dos fotógrafos da Farm Security Administration (FSA) - e de outros autores afins - no tempo da Depressão e do «New Deal» de Roosevelt, quando as crises climáticas e económicas arrastaram para a miséria centenas de milhares de trabalhadores rurais americanos, que então se deslocaram para as cidades em busca de subsistência.
Tem um sentido particularmente impressivo evocar essa epopeia em terra alentejana, acompanhando o trabalho actual de três fotógrafos num projecto sediado em Évora, a pretexto do património e das actividades da Fundação Eugénio de Almeida. O programa da segunda mostra - «Tríptico», com a participação de José M. Rodrigues, Mark Power e Paulo Catrica - é, naturalmente, bem diferente, como são diferentes os tempos, os ideais políticos e as convicções ou estratégias da fotografia, mas as imagens de «Terra Bendita» estabelecem um contexto de referências que também evoca a história dramática dos camponeses alentejanos e refere o presente ameaçado pela seca e a desertificação dos solos.
Sob o título comum «O Sagrado e o Profano» - a dura realidade e a força dos ideais, a terra e o céu, diferentemente interpretável - as duas exposições fazem parte de um projecto único dirigido por Jorge Calado, que constitui uma primeira intervenção marcante daquela Fundação de Évora no campo do mecenato cultural, depois de acções nas áreas do ensino, do património e da assistência social sustentadas por uma actividade empresarial agrária mais conhecida pela qualidade dos vinhos «Cartuxa».
O Arquivo Fotográfico de Lisboa associou-se à iniciativa e acolherá depois as exposições inauguradas no Museu de Évora (mas com a variação das condições espaciais de montagem tratar-se-á então de diferentes exposições). Outros apoios vieram dos seguros Mundial-Confiança e do Centro Português de Fotografia, conjugando-se numa produção que se poderia dizer de uma qualidade sem paralelo, se Jorge Calado não tivesse dirigido antes a Colecção Nacional de Fotografia e as exposições «À Prova de Água», no CCB, e «Ofertório», de José M. Rodrigues, na Culturgest. Os dois livros agora publicados, com longos prefácios e uma sequenciação das imagens que é sempre uma outra forma de comentário e uma lição de ver, prolongam a excelência do projecto. E outro já se anuncia para Novembro, no Arquivo de Lisboa: a retrospectiva do australiano Wolfgang Sievers, que em meados dos anos 30, fugido ao nazismo, fotografou algum tempo em Portugal.
«Terra Bendita» ocupa uma sala do piso térreo do Museu, ao som das canções de Woody Guthrie dos anos 30-40. Sobre um painel corrido que foi encurvado nos lados menores da sala, pintado de vermelho sangue, as imagens organizam-se em núcleos irregulares e sobrepostas, formando os sucessivos capítulos de uma história que um texto final de parede identifica como a simplificação de «um conto de fadas». A narração é ao mesmo tempo histórica e mítica: as casas isoladas na paisagem, os campos devastados; as mulheres, imagens de pobreza e heroicidade; objectos e instrumentos; cortejos de desempregados; interiores domésticos; o trabalho agrícola, os silos, a acumulação e o comércio; famílias reunidas, as refeições; do esforço colectivo ao bem-estar e à retaguarda da II Guerra. É já o tempo da intervenção contra as potências do Eixo, e a fotografia, que denunciara aos olhos dos americanos as condições de pobreza em que vivia a população rural e divulgou as iniciativas do governo federal a seu favor, envolvia-se então com a propaganda do esforço militar.
Nas duas extremidades da sala estão as imagens emblemáticas de Walker Evans da casa dos emigrantes portugueses (Truro, Massachussets, 1930) e a «Mãe Migrante» (Nipomo, Califórnia, 1936) de Dorothea Lange, ao lado do final feliz que é a fotografia da mesma mulher, Florence Thompson, com as três filhas, reencontradas em 1979 por Bill Ganzel. De Walker Evans mostra-se uma versão em «close up» que é a própria prova exposta no MoMA em 1938 (e que será agora comprada pelo Arquivo de Lisboa). A fotografia de Dorothea Lange é vista numa magnífica tiragem de época impressa pela autora para exposição - uma outra prova, impressa por Arthur Rothstein em 1981, fora adquirida para a Colecção Nacional, em que Jorge Calado integrou, em 1989-90, um número significativo de imagens da FSA.
Aliás, outra das marcas de excepção desta mostra é o facto de só se apresentarem (com uma ou duas excepções) provas «vintages» - impressas na época em que foram captadas -, que são oriundas da Howard Greenberg Gallery de Nova Iorque e também de colecções particulares. Neste caso, é particularmente fácil constatar que tal opção não decorre de qualquer fetichização do objecto fotográfico: aos formatos constantemente variáveis, soma-se aqui a diferença das tonalidades, dos brilhos e dos papéis utilizados (e usados, por vezes com as marcas deixadas pelo tempo), qualidades materiais indissociáveis da intensidade significante das imagens - e que a muito cuidadosa impressão do catálogo procurou traduzir na medida possível. Entre as 78 fotografias expostas notar-se-á a presença de algumas das mais emblemáticas imagens da FSA (do total de 70 mil provas e 170 mil negativos que a Biblioteca do Congresso conserva, e continua a reimprimir para venda), mas elas inserem-se numa escolha pessoal do comissário, guiada por um argumento original, diferente do de outras antologias editadas (consulte-se o acessível Amérique. Les Années Noires da colecção Photo Poche). É, em Portugal, a primeira visão global da obra colectiva que Roy Stryker dirigiu, em Washington, entre 1935 e 43 (uma outra exposição da FSA foi apresentada pelos Encontros de Braga, em 97, com provas recentes).
A acção da Secção Histórica do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, mais tarde conhecida como FSA, foi muitas vezes contada pelas histórias da fotografia (a mais recente será Seizing the Light. A History of Photography, de Robert Hirsch, ed. Mc Graw Hill, 530 pág., já de 2000) e Jorge Calado volta a lembrá-la demoradamente no seu prefácio.
Para a enquadrar no tempo seria preciso referir Jacob A. Ris (1849-1914), emigrante dinamarquês e autor de How the Other Half Lives (1890), que foi um pioneiro no uso da fotografia em defesa das reformas sociais, orientação mais tarde retomada por Lewis W. Hine (1874-1940), sociólogo e «fotógrafo social» que trabalhou para a National Child Labor Commitee na denúncia da exploração do trabalho infantil e veio depois a publicar Men at Work (1932). E também a acção dos Grupos Documentais da Photo League, associação de fotógrafos criada no início dos anos 30 em NY e extinta pelo maccartysmo, de que Berenice Abbott, regressada de Paris em 1929 (onde fora assistente de Man Ray e salvou o espólio de Atget) foi um elemento preponderante. Entretanto, essa história da «documentação social» de orientação humanista, que não deve confundir-se com fotojornalismo, cruzava-se com a expansão dos «picture magazines» de invenção alemã, com a criação da «Fortune» em 1930 e da «Life» em 36, sem esquecer a vulgarização das câmaras de pequeno formato (a Leica) e, em 1933, a exposição de Cartier-Bresson na galeria Julien Levy de NY, empenhada na divulgação do surrealismo (aí voltou a expor em 35 com Walker Evans e Alvarez Bravo)...
Essencial é também o contexto político progressista da época, marcado por outros projectos federais criados no quadro da crise económica, como a Works Progress Administration, instituída em 1935 para assegurar a inserção dos artistas na sociedade americana e a repercussão social do seu trabalho - em 36 empregava cerca de 5 mil artistas e atribui-se-lhe, até 43, a produção de 2500 frescos, 108 mil pinturas, 200 mil cartazes, etc (Pollock será o mais famoso dos artistas empregados pelo WPA).
À frente da Secção Histórica da FSA (a Administração para a Protecção da Lavoura, do Departamento de Agricultura), que em 1942, com a entrada dos EUA na II Guerra, transitou para o Office of War Information, esteve a figura ímpar de Roy Stryker, que não era fotógrafo mas orientou o trabalho destes com determinação e bastante autoritarismo - conhecem-se os argumentos e as instruções precisas que enviava aos fotógrafos -, embora a FSA não moldasse num estilo único o trabalho dos grandes fotógrafos que nela trabalharam.
capa com foto de Mark Power - Márcio Galante (Herdade dos Pinheiros)
Jorge Calado, ao conceber e produzir o projecto «Tríptico», foi também um comissário interveniente, que, se assegurou aos três fotógrafos convidados total liberdade de trabalho (tal como acontecera com a Fundação), conseguiu fazer da selecção final e da apresentação pública do seu trabalho, algo mais do que a soma das partes, como ele próprio refere no catálogo.
Mark Power é um excelente fotógrafo inglês (n. 1959), a quem foi
confiado o documentário sobre a construção do Millennium Dome, e que já
se pôde ver nos Encontros de Coimbra de 97 («Europa», com imagens de
«The Shipping Forecast»). O seu uso da cor é admirável e o olhar
estrangeiro dá-nos um panorama atento e cheio de frescura sobre os
lugares ou a gente de Évora.
Paulo Catrica é o mais jovem da equipe (n.
1965), cujo trabalho conhece aqui um importante passo em frente; fiel
ao preto e branco, experimentou neste projecto a formação de dípticos e
trípticos, que não são um recurso formal arbitrário mas uma exploração
acrescida da visibilidade da paisagem e das coisas. Com José M.
Rodrigues, a jogar em casa, assiste-se ao início de uma adopção
produtiva da cor e a um trabalho original sobre o retrato. Do
recolhimento do Convento da Cartuxa às casas dos trabalhadores rurais,
da paisagem ao labor dos campos, os mesmos lugares desdobram-se, lado a
lado, em visões diferenciadas, mostrando como se continua e renova a
grande tradição do documentarismo fotográfico.
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