1. Expresso Cartaz de 24/11/2001, pp. 32-33
"A cidade de Júlio Resende"
Da retrospectiva em Matosinhos à Fundação do pintor em Valongo (à margem da capital cultural)
JÚLIO RESENDE, Paços do Concelho de Matosinhos (até 20 Dez.)
FRANCISCO BRENNAND, «No Acerto com o Mundo» (Fundação Júlio Resende, Valbom, Gondomar, até 2 Dez.)
O panorama do Porto, como qualquer panorama, é feito de diferentes e desencontrados círculos, meios ou nichos do pequeno mundo da arte, mas é alargando os itinerários até à periferia que a cidade de Manuel de Oliveira, de Eugénio de Andrade, de Agustina e de Siza Vieira se reencontra com outro dos seus nomes, Júlio Resende. Esta área alimenta-se mais facilmente (mais oficialmente) de esquecimentos ou exclusões do que outras.
É em Matosinhos, por iniciativa da sua Câmara, que se pode ver, neste ano de particular significado para o Porto, a obra do principal dos seus pintores. A homenagem necessária tomou a forma de uma ampla retrospectiva da pintura de Resende, embora na sua muito extensa produção, material e cronologicamente, tenham também relevância o desenho e a aguarela e, em especial, a grande decoração instalada em lugares públicos, com largo recurso à cerâmica (objecto de uma mostra do Museu do Azulejo em 1998).
Comissariada por Armando Alves, que colaborara na retrospectiva apresentada em 1989 na Fundação Gulbenkian, contando então com a retaguarda da Galeria Nasoni, a mostra apresenta o maior número de obras de Resende desde sempre reunido, incluindo, no seu início, muitos trabalhos datados dos anos de formação do pintor, em Portugal e em Paris, e nunca mais expostos ou mesmo reproduzidos.
No amplo piso subterrâneo dos Paços do Concelho projectados por Alcino Soutinho - um espaço de garagem que será substituído pelo edifício da biblioteca e galeria já em construção ao seu lado -, a montagem ocupa uma área folgadamente labiríntica, onde a sequenciação cronológica adopta, com êxito, o critério de fazer algumas aproximações e cruzamentos entre obras de períodos diversos, tornando visíveis ao mesmo tempo núcleos coerentes e, sem compartimentos estanques, a diversidade de orientações seguidas ao longo do tempo, sob a essencial continuidade de uma dedicação à figura humana que foi sendo abordada com diferentes humores expressivos e uma mesma ambição humanista. Da grave monumentalidade das obras da primeira maturidade dos anos 50, marcada pelo rigor construtivo das formas e pelas tonalidades sombrias ou frias de uma paleta concisa, até à explosão ora trágica ora lírica das décadas mais recentes, onde a instabilidade das manchas de cor se alia à livre espontaneidade do desenho descritivo.
É o espectáculo visual, intenso e ágil apesar da sua extensão, e sempre fortemente impressivo, que predomina nas presentes condições de montagem, adequadas à intenção da homenagem, mesmo se se poderia ambicionar uma produção mais norteada pela abordagem historiográfica, que possivelmente não houve tempo de fazer. A ausência de numerosas obras pertencentes à Faculdade de Belas-Artes (dos Fantoches, de 45, tese de licenciatura, ao Douro, Faina Fluvial, de 62, concurso de agregação) e à Gulbenkian (quadros marcantes, como Figuras à Mesa, Pescadores, Pintura nº 2, de 56, 57 e 59), bem como de outras telas antologiadas em publicações anteriores (citem-se Ribeira, de 52, Cabeças de Mendigos, de 54, Grupo da Beira Mar, de 56), não deixa de revelar alguma precaridade organizativa, mesmo se se teve acesso a um enorme número de telas, além de não projectar com toda a sua importância a representação da década decisiva da obra de Resende, os anos 50, que, no seu todo, não têm paralelo na produção nacional e ombreiam à época com a melhor pintura europeia.
No catálogo publica-se um extenso texto de Laura Castro onde se retoma o essencial da monografia que já dedicara ao pintor (Imprensa Nacional, 1999) e que constitui o mais atento estudo sobre a formação e evolução da obra de Resende, acompanhada por observações sobre a respectiva circulação pública e fortuna crítica. Produzido no contexto universitário como dissertação de mestrado, esse é um contributo importante para uma historiografia a que tem faltado a investigação objectiva em contacto com as obras e as fontes directas. Haveria agora que desenvolver, em especial para as obras dos anos 50, todo um trabalho de restituição de títulos esquecidos (abundam os «sem título», que não corresponderão às nomeações originais), confirmação de datas e recuperação de informações sobre locais de exposição, tanto mais que as obras de Resende tiveram uma visibilidade central nessa década, das Exposições de Arte Moderna do SNI (Prémio Amadeo Sousa Cardoso em 49 e 52) à retrospectiva, então sem precedentes para um artista de 44 anos, no Palácio Foz e na ESBAP, em 61, passando pelos repetidos envios à Bienal de São Paulo (premiados em 51 e 59), pelo Salão dos Artistas de Hoje, em 56, na SNBA (premiado), e pelas exposições da Gulbenkian (2º prémio de pintura em 57).
Só restituindo a Resende o lugar central que ocupou ao longo dos anos 50, sem que tal implique dar credibilidade à habitual periodização por décadas, é que será possível rever a história desse tempo, corrigindo a sobrevivência das dicotomias fáceis de que se alimentou a crítica entre neo-realismo e abstracção, figuração e não-figuração, ou mesmo, por extensão política, entre Situação e Oposição, outra zona de equívocos que já não pode ter caução militante - também o surrealismo inicial se vulgarizou nos Salões do SNI.
Pintura academicamente aprendida, bem informada pelas estadas no estrangeiro como bolseiro, a obra de Resende escapava então às categorizações preguiçosas, mesmo à de expressionista, e desenvolveu-se como uma amadurecida pesquisa própria sobre valores da construção plástica, onde a recusa da abstracção não referencial já não deve ver-se como posição indecisa ou dúbia. Às arquitecturas hieráticas solidamente definidas das suas figuras sucederam, na passagem da década, densidades matéricas, dissoluções de formas e intenções retóricas com fortuna variável e, posteriormente, novos rumos, em que se incluem o ciclo temático das «Ribeiras Negras», as impressões de viagem e alguns luminosos interiores, passando da sombra à cor, da investigação formal à mancha despreocupada, do drama ao humor. É um longo percurso ainda em aberto.
FRANCISCO BRENNAND
Entretanto, circunde-se o Porto ribeirinho para ir de Matosinhos a Valongo, onde a Fundação criada por Resende se eleva frente ao Douro. É todo um caminho de renovação da paisagem urbana, no qual se adivinha a futura entrada do mar no Parque da Cidade e se percorre a via marginal já redesenhada, sob os arcos das antigas e novas pontes, com passagem pelo painel cerâmico Ribeira Negra (1984-87). No seu Lugar do Desenho, o pintor apresenta o escultor e ceramista Francisco Brennand, que é certamente, com os seus 74 anos, o mais surpreendente artista brasileiro vivo, ao mesmo tempo desconhecido e consagrado, conforme os círculos de informação frequentados
A sua obra maior está encerrada e em constante crescimento no museu-templo-oficina em Várzea, próximo do Recife, onde desde 1971 acumula milhares de peças monumentais que erguem um mundo fantasmagórico com reinventadas figuras da mitologia e da história, um bestiário pessoal e totens carregados de dor e erotismo, obras simultaneamente populares e eruditas (sem nenhum exotismo brasileiro), ao mesmo tempo de todos os tempos e de hoje, mais do que muitas actualidades circulantes. Mas a exposição de umas duas dezenas de peças cerâmicas - as «Graças Cretenses», as pequenas «Homenagens a Morandi», as figuras de Inês de Castro («La Victime») ou Joana d'Arc, entre outras - e uma larga antologia do seu desenho a cores, onírico e solidamente observado (as séries «Grotesco» e «A Casa das Pernas», já deste ano), com algumas grandes fotografias da Várzea, não deixa de ser uma aproximação bastante ao trabalho original e inclassificável de Brennand, ficando como um dos grandes acontecimentos do Porto 2001, fora do seu programa.
Desta dádiva do pintor à sua cidade ainda podia, há uma semana, passar-se a esse nicho sobrevivente do Porto romântico que é a Casa Tait, onde se apresentou um pouco da história desconhecida do cartoonista e autor de banda desenhada que também foi Resende. Enquanto se aguarda para o próximo Salão Lisboa a recuperação das histórias que nos anos 30 e 40 publicou em «O Papagaio», em «O Sr. Doutor» e no «Jornal de Notícias», aí se recordaram as figuras de Matulinho e Matulão que desenhou para «O Primeiro de Janeiro». São testemunhos de uma carreira oculta com lugar na história da BD nacional, também quase ocultada pelo próprio artista, enquanto deverão ficar perdidas para sempre as suas «instalações» publicitárias e anónimas que ocupavam semanalmente, nos anos 50-60 (?), a montra do segundo desses diários do Porto, de que parece não restarem sequer testemunhos fotográficos.
2.
Júlio Resende
Gal. Valbom
08-05-2004
Uma vasta selecção de pinturas sobre papel de Júlio Resende essencialmente centrada em anotações de motivos encontrados em deslocações ao Brasil e a Cabo Verde, Goa e Moçambique, ao longo de numerosas viagens realizadas desde os anos 70 - precedidas de algumas mais antigas aguarelas, reveladoras da particular mestria há muito alcançada no uso desta técnica já rara. São essas viagens oportunidades decisivas para o estímulo de um olhar desperto para o mundo exterior, as paisagens, mas principalmente os grupos humanos, o colorido vibrante dos mercados tropicais, o diálogo dos corpos com o espaço da natureza. Usando pastel, aguarela e marcador, ou processos mistos, J.R. funde o desenho rápido diante do motivo com a intensidade da cor, num exercício de observação que se distancia sempre do exotismo superficial por uma calorosa curiosidade face ao mundo e às suas diferenças. Estes apontamentos e estudos do natural reencontram-se depois na pintura de Resende dos últimos anos, tendo aqui a frescura e a graça do ensaio despreocupado de uma mão sábia e de um olhar atento. A mostra é acompanhada por um catálogo-álbum antológico, para o qual escreveram Júlio Pomar e Rocha de Sousa, além do artista.
(Até 15)
Júlio Resende
SNBA
14-04-2006
Não é nem pretende ser uma antologia da carreira de J.R., apenas (?) a apresentação de peças da colecção do Millennium bcp. O conjunto é, porém, representativo de uma obra importante, individualizada face à preferência dominante pela arrumação da criação em movimentos ou fórmulas colectivas. Mostram-se 27 trabalhos, que vão de uma melancólica aguarela de 1946 a uma festiva Luz de Atelier com vista aberta para o jardim (1997-2000), incluindo sucessivos passos do percurso, como as notáveis quase-abstracções de 57-62, onde a figura humana se desrealiza sem deixar de ser o centro do quadro e do mundo, os diferentes expressionismos dos anos 70-80 e ainda as últimas libertações do gesto, da cor e do humor de um Adeus Tristeza (91). Com passagem pelo grande painel decorativo A Evolução do Dinheiro (62), a sinalizar a extensa e excelente obra pública do pintor, num curioso diálogo de intenções significantes com A Ribeira Negra (84), gigantesco painel a p/b oferecido ao Porto, que ocupa um lado da SNBA, como uma síntese das ambições humanistas do artista em homenagem ao trabalho e ao povo portuense e da vocação mural da sua pintura.(Até 29)
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