Expresso Revista de 17 - 09 – 94
R.B. Kitaj na Tate Gallery, Londres
«Alguns quadros têm livros»
«Se há livros ilustrados com pinturas, também pode haver quadros ilustrados por livros», diz Kitaj. Ele começou por colar extensos textos manuscritos nos seus quadros-puzzles do início da arte Pop, há cerca de 35 anos, justificando a heresia, que podia ser também um gesto neo-dadaista, com o precedente das notas de roda-pé que T.S. Eliot associara ao seu poema mais famoso,The Waste Land. Depois tomou o gosto de fazer «prefácios» para muitas das suas obras, publicados nos catálogos («Pictures with commentary. Pictures without commentary», logo na primeira exposição de 1963, na Marlborough) ou expostos em tabelas anexas, tal como se vêem hoje nos melhores museus.
A escrita não é a explicação da pintura, mas pode referir as motivações com que o pintor abordou o seu tema, pode fornecer pistas sobre as referências feitas a obras de outros artistas, identificar os personagens das suas ambiciosas composições alegóricas, ou tomar o carácter de «short stories» que se juntam, com a independência de narrações paralelas, às suas últimas pinturas declaradamente autobiográficas. Os quadros têm «vidas secretas» e o pintor, que costuma apresentar-se como um «velho simbolista», apenas abre algumas das suas infindáveis portas.
Como nenhum outro artista moderno, Kitaj assumiu a forte componente literária e erudita da sua formação intelectual e o carácter temático da sua obra, infringindo um dos mais persistentes interditos prescritos pela vontade de autonomia que marcou o modernismo formalista (o «assunto» é a própria pintura, apenas o jogo formal dos espaços e cores, a afirmação do carácter plano do quadro; a obra «fala» por si própria, ou pela boca do crítico...). Mas também muito poucos conseguiram realizar uma pintura visualmente mais luxuriante, mais hábil e mais emocional, do que este exacto contemporâneo de Judd e Stella.
Kitaj é um pintor figurativo, e, depois da morte de Bacon, um dos nomes cimeiros de uma tradição que reivindica na actualidade a linhagem de Picasso e Matisse, de Manet, Dégas e Cézanne (o modernismo heróico antes do maneirismo modernista), procurando-lhes as lições para fazer uma pintura de hoje sobre temas de hoje, «centrada nas relações humanas, na arte do passado, na vida das ideias e na revelação de si próprio», como o apresenta Nicholas Serota, o director da Tate.
Ele reclama a possibilidade de trabalhar, enquanto pintor, como um romancista ou um cineasta, criando personagens que circulam de quadro em quadro e ficções onde se condensam as grandes esperanças e os desastres deste século. A política, o sexo, a condição humana, são os seus temas, e também os livros, os amigos, o baseball ou o cinema. Declara-se um humanista, à falta de melhor expressão, e Robert Hughes já lhe chamou «o melhor pintor de história do nosso tempo». Mas é o mesmo humanismo que o leva a apreciar também a pintura abstracta e a defender essa outra tradição modernista como um poderoso «inimigo do fascismo».
A COMÉDIA HUMANA
Uma retrospectiva apresentada na Tate Gallery, organizada por Richard Morphet, propôs, este verão, a revisão sistemática da obra de Ronald B. Kitaj, prosseguindo depois a sua carreira em Los Angeles (County Museum of Art, 22 Out.-8 Jan.) e em Nova Iorque (Metropolitan, 15 Fev.-15 Maio). É o mesmo itinerário de máxima consagração que fez a exposição de Hockney de 88-89 e são muitas as relações entre os dois pintores, ambos solitários irreverentes em relação ao «mainstream» continental, que dominam o desenho e a cor como mais ninguém o faz no presente.
Os catálogos das suas retrospectivas abrem com os retratos recíprocos, numa deliberada simetria que também corresponde aos destinos cruzados deste americano intranquilo instalado há 35 anos em Londres e do inglês fixado desde 1964 nas felizes colinas de Los Angeles. Conheceram-se em 1959, no primeiro dia da sua entrada no Royal College of Art, e Hockney ainda o apresenta como «my closest collegue in painting». São também compadres: Kitaj pintou entre 89 e 93 o retrato do seu segundo casamento, na sinagoga sefardita de Londres, sendo Hockney o padrinho e Kossoff e Auerbach duas das testemunhas.
Em 1976, estiveram ambos associados numa defesa polémica da pintura figurativa contra a aridez do conceptualismo e chegaram a aparecer nús na capa de «The New Review» defendendo que continuava a ser necessário (e possível) «keep ordinary people in mind», pintar os dramas e sonhos da comédia humana.
Kitaj tinha então organizado uma exposição para o Arts Council intitulada «The Human Clay» (Hayworth Gallery, 1976) onde reuniu 35 pintores figurativos britânicos, e só um outro americamo, Jim Dine, relançando a designação de Escola de Londres, em que associou as várias gerações de pintores que fazem a solidez do actual panorama britânico, desde Bacon (1909-1993), Freud (Berlim, 1922), Kossoff (1926), Auerbach (Berlim, 1931), até às promoções mais recentes — e entre elas se viria a integrar Paula Rego.
R. B. Kitaj nasceu em Cleveland, Ohio, em 1932, numa família de judeus liberais e não praticantes, e chegou a Londres repetindo os passos da diáspora intelectual americana, seguindo Eliot, Hemingway, Fitzgerald. O espírito de aventura e a erudição coexistiram desde muito cedo neste eterno desenraizado, que antes dos vinte anos dividia a vida entre as viagens como marinheiro e os estudos de arte, em Nova Iorque e em Viena, onde foi discípulo de um colega de Schiele. Mobilizado durante a Guerra da Coreia, veio para a Europa com as tropas de ocupação e foi com as regalias de ex-G.I. que frequentou Oxford (a Ruskin School) e fez a pós-graduação no Royal College, já aos 27 anos.
NA MARGEM DA POP
Quando surge a público entre os «Young Contemporaries» que faziam a Pop inglesa, em 1960, e exercendo sobre eles uma reconhecida influência, as referências que reciclava não vinham do mundo do consumo e da publicidade, mas do material iconográfico visto em publicações da escola de Aby Warburg. À apropriação geral das imagens reproduzidas pelos media correspondia nas suas obras a citação de garatujas de Erasmo nas margens de um manuscrito, bestiários helénicos ou pictogramas índios, «escondendo» uma segura aprendizagem do desenho de modelo.
Nos anos 50, o jovem americano já tinha Bacon e Balthus como os pintores favoritos do pós-guerra («e ainda penso o mesmo», diz), mas as suas obras dos primeiros anos 60 alinhavam com as condições do momento: eram então fragmentadas, dispersando-se as imagens sobre a tela como um puzzle, produzidas pela colagem de uma total diversidade de estilos. O que podia ser, para outros, a redescoberta hesitante da figura humana e dos lugares quotidianos, depois da abstracção expressionista, era para Kitaj a continuidade de um processo surrealista que permitia recolher na tela, com uma imaginação livre de censuras, as fantasias que vinham à consciência e à mão (Certain Forms of Association Neglected Before é um título de 61, tomado do Segundo Manifesto de Breton), numa tradição surrealista não ortodoxa. Os seus temas políticos também não revelavam a corrente indiferença perante a nova sociedade da abundância, mas um empenhamento claramente de esquerda (o assassínio de Rosa Luxemburgo, a guerra de Espanha, a violência urbana — The Ohio Gang).
Os saltos estilísticos e a justaposição ilógica dos fragmentos iriam depois estruturar-se em grandes narrativas visuais sobre a história recente (a oposição a Hitler, a guerra do Vietname) e a diversidade da cultura moderna (Walter Benjamin), em construções declaradamente alegóricas. A unificação das imagens, em termos de composição e de estilo, adensa-se, entretanto, por uma rede complexa de referências à história da pintura e à literatura — If Not, Not. Seguem-se, em novas mutações ou fases, os retratos literários, reais ou imaginários, estes fixando tipos e criando personagens, na tradição «fin de siècle» do retrato simbólico ou interpelando mitos modernos (o Orientalista, Batman, etc).
Em meados dos anos 70 Kitaj regressou ao desenho do modelo vivo e dedicou-se à aprendizagem das subtilezas do pastel no tratamento dos corpos, impressiondo por uma retrospectiva de Dégas — The Rise of Fascisme. Essa viragens, ou mesmo hesitações, da sua obra, sempre mais vista em mostras antológicas de museus do que em individuais de galeria, são outra das diferenças apreciáveis na carreira de Kitaj, quando as condições de circulação dominantes exigem, acima de tudo, a permanência de uma marca autoral que prolongue como estilo reconhecível e facilmente mediático uma qualquer pequena novidade formal.
É o que talvez explique a agressividade de alguma crítica londrina que perante a surpresa da sua obra mais recente lhe chegou a chamar «o pior dos pintores figurativos» e a tratar os seus quadros como «ilustrações que dão forma visual a ideias literárias». Outros pintores e escritores amigos sairam então em defesa de Kitaj. A sua obra, que sempre desencadeou paixões e ódios, tem uma presença ainda mais polémica num momento de grande tensão em torno do que é a arte contemporânea, e o próprio, em convergência com outro dos grandes pintores de hoje, Avigdor Arika, não tem poupado os ataques à vaga da "arte Pompier" com que o século se encerra.
O JUDEO ERRANTE
Das 110 obras mostradas na Tate, cobrindo os anos de 1958 a 94, metade é posterior a 1981, data da sua anterior retrospectiva (Washington, Cleveland e Dusseldorf) e também da abertura de um novo «período» da sua obra, o da «obsessão judaica». É uma pintura mais dramática, com uma maior crueza da pincelada visível, menos elaborada e perfeccionista, em correspondência com a exasperação da mensagem. A procura de uma possível identidade judaica, a memória do holocausto e a ideia de diáspora são o fulcro de uma visão romântica do judeu errante, que seria também o mais exacto emblema do desenraizamento cosmopolita do homem moderno. A projecção autobiográfica torna-se então mais explícita na sua pintura com essa valorização do judaismo, mas Kitaj, que é um fanático do baseball e um «movie junkie», persegue também as marcas americanas da interacção de identidades que o movem.
30 obras dos anos 90, produzidas durante os três anos de preparação da retrospectiva e depois de um ataque cardíaco («iludir a morte tornou-se uma estética»), ocupavam as últimas duas salas da Tate. Elas radicalizam mais ainda a direcção confessional, associada a uma tardia descoberta de Rousseau e à atracção pela pintura final de Van Gogh, revelando uma urgência antes ausente naquele que era o mais lento dos pintores (segundo Hockney, ainda), traduzida por uma muito maior liberdade gestual na pintura.
O carácter mais directo e explícito dos temas prolonga-se na fluência de uma pincelada solta e diluida, por vezes aplicada em largas superfícies de cor lisa e sempre intensa, em geral mais luminosas e claras. Esta última fase («mais livre e assente nas minhas neuroses») é também marcada por uma nova ênfase no desenho, cujo traçado prévio já não é ocultado pela pintura — numa intencional síntese «painting-drawing». Kitaj diz que confia a outros a pintura feita de matérias densas e explora agora a «liberdade de conservar o desenho vivo através da vida da pintura».
Entretanto, a relação com a arte é ainda uma direcção integrante do seu «estilo tardio», em constantes referências históricas: Whistler vs. Ruskin, figurando o próprio Kitaj como árbitro de um combate de boxe; Agains Slander, um manifesto contra a calúnia, onde se associa a hostilidade a Cézanne à história de um santo judeu, a partir de Donatello, ou, naquela que é a última obra da retrospectiva, o refazer dos banhistas de Cézanne em versão cinéfila e americana, Western Bathers.
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PS: A retrospectiva foi muito mal recebida pela crítica inglesa. A morte repentina da mulher foi associada por Kitaj a esse "assassínio" crítico. Kitaj regressou depois à América e julgo que a sua obra posterior se ressentiu de troda essa crise
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