MOMA
"Moderno plural"
Expresso Revista de 03-06-2000 (3)
A revisão do século XX com que o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque assinala a passagem do milénio prossegue com «Making Choices»: 24 exposições sobre os anos 1920-1960 exploram os confrontos vanguardistas e a oposição antimodernista
Em 1935, Hitler atacou violentamente a arte moderna no congresso do Partido Nacional-Socialista. Judeus ou não, cada vez mais artistas tomavam o caminho do exílio, quase sempre americano. A «limpeza» dos museus começa em 36; no ano seguinte abre a exposição de arte alemã defendida pelo regime nazi, contraposta à de «arte degenerada», que percorrerá a Alemanha até 41. Muitas obras que escapam à fogueira irão ter a colecções norte-americanas - ao MoMA, por exemplo. Na URSS, o comité central institui em 36 o controle sobre as artes. As vanguardas são acusadas de esquerdismo e formalismo, ou, segundo Estaline, de «sabotagem, diversão e espionagem». O realismo socialista impõe-se com purgas e deportações.
Igualmente em 1936, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque apresentou duas grandes exposições que fizeram história. «Cubismo e Arte Abstracta» e «Arte Fantástica, Dadá, Surrealismo» defendiam a arte europeia contra o isolamento cultural norte-americano e tomavam o partido da liberdade artística contra os totalitarismos. O propósito de Alfred Barr, o seu director-fundador, de ilustrar «alguns dos principais movimentos da arte moderna de um modo global, objectivo e histórico» iria orientar o programa modernista do museu e torná-lo um paradigma a seguir, quando, passada a II Guerra, a Europa começa a reconstruir-se.
Em Paris, a Exposição Internacional das Artes e das Técnicas de 1937, com 31 milhões de visitantes, associava na mesma celebração da «vida moderna» as novas tecnologias e a «arte independente», mas o clima vanguardista das primeiras décadas do século desvanecera-se e «Guernica» indicava o curso dos acontecimentos. A arte moderna que se refugiou e floresceu em Nova Iorque iria constituir, com o nome de expressionismo abstracto e sob a égide do modernismo formalista do crítico Clement Greenberg (depois da despolitização forçada pela «caça às bruxas»), uma das armas culturais da Guerra Fria, a par da miragem da «american way of life». Já na era da Pop, o prémio da Bienal de Veneza para Rauschenberg, em 1964, levou Paris a tomar consciência de que não voltara a ser o centro do mundo artístico.
«Making Choices» é o segundo capítulo (1920-1960) de um imenso projecto que o MoMA está a levar a cabo por ocasião da viragem do milénio, fazendo ao longo de 18 meses uma revisão do curso da arte desde 1880 até ao presente, que também é em grande parte a da sua própria história e influência. Do mesmo passo, o museu reexamina o seu imenso acervo e os modos que usou ao longo do tempo para o apresentar, com vista a preparar a montagem das suas futuras instalações, que reabrirão muito ampliadas em 2004. «MoMA 2000» tem sido reconhecido (e discutido) como o seu mais ambicioso projecto de sempre.
Construído como uma constelação de 24 exposições com diferentes programas, temas e dimensões, reúne às obras emblemáticas habitualmente expostas muitas outras retiradas das reservas e raramente ou nunca mostradas. Não visa estabelecer uma síntese definitiva e põe mesmo em causa a ideia de que exista «um modo global, objectivo e histórico» de apresentar a arte moderna. A ideia central é a de que nenhuma panorâmica unificada e linear poderia abarcar a arte deste período histórico tão conturbado sem esconder a sua essencial diversidade.
A primeira secção do programa «MoMA 2000» chamou-se «ModernStarts» (1880-1920) e estruturava-se em três conjuntos temáticos - «Things», «People» e «Places», em conformidade com os géneros tradicionais da natureza-morta, do retrato e da paisagem -, através dos quais se avaliavam mudanças e continuidades características das primeiras décadas da arte moderna. Pondo de parte o discurso cronológico linear do modernismo determinista e a arrumação por movimentos ou tendências, a extraordinária montagem dirigida por John Elderfield explorava justaposições de obras (e cruzamentos com obras recentes) que iluminavam quer a definição de novas problemáticas artísticas colectivas quer a individualidade irredutível dos artistas maiores.
A segunda etapa é ainda menos marcada por qualquer lógica globalizante, sublinhando que a maturação das propostas originais da arte moderna deu origem a direcções de expressão ou experimentação divergentes e a programas teóricos contemporâneos e contraditórios entre si (modernismos de diferentes convicções), ao mesmo tempo que os ímpetos inovadores e de ruptura com a tradição foram sempre acompanhados por rejeições do vanguardismo (classificadas como antimodernismos), que também integram a arte moderna. Se a primeira parte pôs em destaque os nomes fulcrais da modernidade clássica europeia, numa montagem fortemente selectiva (Cézanne, Rodin, Picasso, Matisse, Giorgio de Chirico, etc), o novo capítulo é mais disperso no número e na origem dos artistas, mais interessado em sinalizar direcções, conjunturas, interesses e oposições.
O menor recuo cronológico pode justificar esta estratégia, mas também estão presentes orientações que se pretendem anti-autoritárias e anti-elitistas, visando suster a procura de um possível cânon ou panteão com o pluralismo dos critérios valorativos, orientados por opções ligadas à apreciação da arte contemporânea e pela interrogação sobre se da idade moderna já se passou (quando?) à era pós-moderna. À sua frente está Peter Galassi, o director do Departamento de Fotografia do MoMA, sucessor de John Szarkowski.
O título proposto significa que em cada momento os artistas escolheram o seu caminho entre direcções diferentes e concorrentes entre si, identicamente válidas e integráveis sob a qualificação de modernas. Por um lado, existem programas renovadores e imperativos com orientações opostas - por exemplo, o rigor ideal da abstracção geométrica e, num pólo oposto, o surrealismo, com o apelo à expressão poética do irracional (é esse o duplo tema da exposição «O Sonho da Utopia/A Utopia do Sonho»); por outro lado, o radicalismo vanguardista é constantemente questionado ou negado por artistas, conjunturas e movimentos interessados em reatar com tradições postas em causa, ou recusando algumas rupturas formais como becos sem saída - essas tendências, apelidadas de conservadoras embora possam estar associadas a posições de esquerda, são o fulcro da mostra «Arte Moderna apesar do Modernismo».
Sem ter um sentido cronológico estrito, até porque vários núcleos incluem obras que vêm até ao presente, a distribuição das exposições ao longo dos três pisos do MoMA estabelece uma subtil orientação evolutiva que vai da abordagem de épocas passadas e movimentos datados, como o surrealismo e os construtivismos, no primeiro piso, a sectores temáticos menos historicamente situados, cujas problemáticas estão presentes na arte do fim do milénio.
No primeiro andar estão, por exemplo, o núcleo «Guerra» (denúncias e testemunhos, de 1914 até hoje) e a continuidade da pintura figurativa dita antimodernista, que predominou entre os dois conflitos mundiais. No piso acima, encontram-se montagens intituladas «A Retórica da Persuasão», sobre a arte de intenção política (revoluções mexicana e soviética, a Depressão americana dos anos 30, a Guerra de Espanha, etc.); e «Anatomicamente Incorrecto», investigando a deformação do corpo de inspiração surrealista, até ao presente de Cindy Sherman e Kiki Smith. No mesmo andar contrapõem-se o «Salão Paris» e «Salão Nova Iorque», traçando panoramas concorrentes após a II Guerra, questionando a lógica das escolas nacionais e a transferência do centro artístico para a América.
Ao lado, «Seeing Double» (visão dupla) é um dos núcleos essenciais do projecto e explora a importância das transparências e reflexos, sobreposições e justaposições de imagens, que explodem na moderna arquitectura do vidro, com Mies van der Rohe, e nas fotografias de Atget (um pólo racional, outro irracional). Peter Galassi identifica essas novas visões múltiplas, aceleradas e fragmentárias como uma invenção decisiva da arte do séc. XX, associada e paralela ao cubismo e à invenção da colagem mas não redutível a uma mesma lógica formal. Essa exposição tem uma forte presença da fotografia, através de Lee Friedlander, Ray Metzker, Harry Callahan (as múltiplas exposições sobrepostas), etc., e destaca a sequência da mesma problemática nas obras de Jasper Johns e Rauschenberg, no final dos anos 50, que transcendem a oposição entre representação e abstracção. Neste sector, é uma boa surpresa o encontro com uma monotipia de René Bertholo (1961).
No último piso, as exposições têm um carácter problematizador mais alargado, cronologicamente menos definido. «Ciência Inútil» (Useless Science) percorre os temas da pseudociência e do absurdo, desde as experiências ópticas de Duchamp (1925) até às recentes realizações fílmicas de Matthew Barney que associam práticas desportivas e mutantes sexuais, passando pelos objectos cinéticos de Calder, Tinguely e Pol Bury, as experiências literárias do Colégio de Patafísica, os veículos de Panamarenko, etc.
«O Cru e o Cosido» (The Raw and the Cooked) conjuga obras de amadores, loucos ou ingénuos com as de artistas que se interessaram pela «outsider art», como Max Ernst e Paul Klee, Dubuffet, Louise Bougeois e outros. «O Casamento da Razão e do Sórdido» («squalor») reúne «interacções simbólicas de oposições imprevisíveis»: ordem e acaso, geométrico e visceral, contrastes de materiais, antagonismos culturais (a América Latina tem um espaço alargado num núcleo comissariado pelo brasileiro Paulo Herkenhoff).
Na constelação de exposições do MoMA cabem cinco individuais: fotografias de Man Ray (anos 20 e 30) e Cartier Bresson (do segundo pós-guerra); Hans Arp, artista dadá, depois associado tanto ao surrealismo como aos construtivismos com a mesma liberdade poética («Art Is Arp», uma fórmula de Duchamp); gravuras de Morandi, que passou rapidamente pelo cubismo, futurismo e pintura metafísica italiana, e seguiu uma carreira solitária de pintor de naturezas-mortas e paisagens de aparente tradicionalismo); os «monumentos modernos» do arquitecto norte-americano Louis I. Kahn (1901-74). Destacam-se, a partir de 1955, os projectos para grandes edifícios de formas maciças, inspirados no Coliseu de Roma ou em castelos medievais, que visavam defender-se da invasão do automóvel e assegurar aos centros urbanos uma monumentalidade humana e simbólica, opondo a primazia da expressão plástica ao funcionalismo dominante (em Portugal, Raul Hestnes Ferreira e Manuel Vicente foram seus discípulos).
A estes cinco núcleos que destacam obras singulares e percursos irredutíveis, acrescentam-se mais cinco nomes referidos nos títulos de outras exposições, todos fotógrafos. «Walker Evans & Company» é um dos capítulos mais importantes de «Making Choices» e merece adiante referência detalhada; uma outra orientação da fotografia é protagonizada, em torno da ideia de «Motivo Ideal», por Alfred Stieglitz, Edward Weston, Ansel Adams e Callahan. Representam a linha que integra a fotografia nas «belas-artes» (fine arts), passando do picturialismo à estética «straight» dos anos 20, depois ao paisagismo sublime de Adams e à abstracção de Callahan.
Entretanto, dois núcleos são dedicados ao design («Modern Living»). Um foca a ambição reformadora dos programas idealistas ou racionalistas que se manifestam com o construtivismo russo, o de Stijl holandês (de Mondrian e Theo van Doesburg) e a Bauhaus, nos anos 20-30; outro, mais pragmático e ligado à expansão consumista do pós-guerra, com os designers escandinavos e norte-americanos (Alvar Aalto e Charles e Ray Elmes, por exemplo). «Gráfico-fotográfico» é outro núcleo associado ao clima experimental e utopista dos anos 20-30 (Rodchenko, Moholy-Nagy, etc), referente à revolução das formas da comunicação visual na edição, propaganda ou publicidade. No piso acima, «Home Movies» dá conta da vulgarização das câmaras de 8 milímetros e da contaminação entre o seu uso doméstico e artístico.
O itinerário museológico tradicional através da representação dos grandes artistas e das suas obras-primas é sintetizado brevemente nos «Salões» Paris e Nova Iorque. «How Simple Can You Get?» é um percurso pela simplificação radical da pintura, com Barnett Newman, Jasper Johns, Kelly e Ryman, ou Klein e Manzoni, na Europa. As obras tardias de Picasso e Matisse são ignoradas, a importância dos mexicanos Rivera e Siqueiros é bem sublinhada, De Kooning está escassamente presente, Kokoschka ausente apesar da importância que Alfred Barr lhe atribuía. A exposição parece globalmente aspirada para o final do seu prazo cronológico, pelas mutações que se desenham ao longo dos anos 50, com Rauschenberg, Dubuffet e Louise Borgeois expostos em várias secções.
Em vez de um catálogo que sintetize e registe todo o projecto, três edições, mais livros que catálogos, com ensaios e antologias de imagens (muitas mais que as obras expostas), exploram aspectos sectoriais. «Making Choices: 1929, 1939, 1948, 1955» é a sequência de quatro panoramas demonstrativos da pluralidade de direcções seguidas pelos artistas nas quatro datas-chave referidas no título, associando cinema, arquitectura e design.
«Walker Evans & Company», da autoria de Peter Galassi, prolonga uma das exposições mais fortes do conjunto, reconhecendo à fotografia uma participação decisiva no período em causa e afirmando que Walker Evans (1903-75) é certamente o artista americano mais importante e influente do século. À sua obra parece atribuir-se o papel que alguns associam a Duchamp, por uma recusa da artisticidade que é mais moderna e produtiva do que o silêncio «dandy» do segundo.
Com o seu inventário da arquitectura, iconografia e artefactos da tradição vernácula americana, bem como pela atenção austera aos símbolos do presente (publicidade, cultura do automóvel e do cinema), o estilo aparentemente impessoal de Evans tem um lugar central no alargamento das possibilidades da fotografia como arte, estabelecendo a eficácia da percepção inteligente e a descrição fotográfica como veículo da poesia visual. Associando-o a outros projectos cartográficos como os de Atget e August Sander, identificando-o como protagonista da tradição documental que se afirma nos anos da Depressão, Peter Galassi coloca-o no centro de uma longa sequência que inclui a Pop, muita fotografia actual e até alguma pintura de observação, como a de Rackstraw Downes.
«Modern Art despite Modernism», da autoria de Robert Storr, é dedicado às expressões alternativas que acompanharam e contestaram os modernismos programáticos, com a intenção de «atrasar o relógio» ou reorientar o suposto sentido do progresso. É um vasto panorama cronológico e geográfico que toma o estatuto da figuração como central no conflito entre modernistas e antimodernistas, embora, para além da abstracção e do formalismo, estejam também em causa apreciações relativas ao «metier», à competência ou qualidades da pintura dita convencional: Escola de Paris, surrealismo, pintura metafísica e «valores plásticos» (Itália), nova objectividade e figuração alemã, neo-romantismo, figurações britânica e latino-americana, realismo da era da Depressão e a «Cena Americana», figurações do pós-guerra europeu e nas Américas (Fairfield Porter, Pearlstein, Katz e Larry Rivers), ...pós-modernismo.
O panorama é valioso, mas sempre que se isolam os vectores realistas e a tradição da pintura torna-se óbvia a falta das direcções contrárias com que esses artistas dialogam, como se a um tabuleiro de xadrez faltassem as pedras brancas, ou pretas. Dois subnúcleos intitulados «Lição de Desenho» focam a permanência (a necessidade) do desenho de observação e de contorno linear.
De Picasso e Balthus, desde os anos 10-30, até Philip Guston e Gerhard Richter, nos anos 60-70, a que Storr já chama pós-modernos, por entre «verdadeiros reaccionários e excêntricos inesperados, a arte moderna antimodernista foi uma oposição heterogénea - não um estilo ou escola consistente, mas um impulso imprevisível e um desafio às opiniões estabelecidas e ao gosto consensual» (sempre que o «mainstream» é o vanguardismo).
O ensaio abre com Fernando Pessoa - «Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade/ Nem veio nem se foi: o Erro mudou», «Natal», 1922 - e a última palavra é dada a Picasso, «certamente o maior modernista do século e incontestavelmente o maior antimodernista»: «Para mim não há passado nem futuro em arte. Se uma obra de arte não pode viver sempre no presente, é inútil perder tempo com ela. A arte não evolui por si mesma, são as ideias das pessoas que mudam, e com elas os seus modos de expressão. Variação não significa evolução» (1923).
A conclusão é optimista: «O século XX chega ao fim numa explosão de caótica fecundidade», mas a passagem à idade pós-moderna fica por confirmar. A partir de Outubro, o MoMA apresenta o último capítulo, «Open Ends», dirigido por Kirk Vernadoe, o director do Departamento de Pintura e Escultura que sucedeu a William Rubin.
René Magritte, «O Falso Espelho», 1928
Marcel Duchamp, «Semiesfera Rotativa (Óptica de Precisão)», 1925
Mondrian, «Pintura I», 1926
Andrew Wyeth, «O Mundo de Cristina», 1948
Lucien Freud, «Rapariga com Folhas», 1948
George Grosz, «Explosão», 1917 (núcleo «Guerra»), e «O Poeta Max Hermann-Neisse», 1927 (em «Arte Moderna apesar do Modernismo»)
Robert Rauschenberg, «Primeiro Salto da Aterragem», 1961, «combine painting» (exposição «Walker Evans & Company»)
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