Expresso Revista 29 Outubro 94
«Inesgotável Poussin»
As grandes exposições dos artistas do passado, geralmente associadas à
comemoração de alguma efeméride, parecem cerimónias rituais de uma
cultura do espectáculo voltada para a ultrapassagem de records, em
números de obras e de visitantes. O caso de Poussin, agora apresentado
em Paris, no Grand Palais, a pretexto do quarto centenário do
nascimento (1594-1665), mostra que essa dinâmica institucional pode
esconder uma outra dimensão mais subterrânea de investigação e de
interpretação das obras, servindo também como oportunidade excepcional
de reconsideração de um artista que foi quase sempre referência
essencial para outros pintores, mas também, sob uma máscara de
severidade e sapiência, mais respeitado do que visto. Um pintor cuja
vida e carreira continua a manter grandes zonas enigmáticas que
permitem a existência de quase tantos Poussin quantos os seus biógrafos
ou exegetas.
É, aliás, do início de um verdadeiro «ano Poussin» que se trata, a
prosseguir nos próximos meses por uma actividade editorial intensa, por
vários colóquios internacionais e por uma sucessão interminável de
exposições tão eruditas como o prestígio do «pintor-filósofo», embora
empenhadas, em alguns casos, em alterar a imagem de um artista
erradamente identificado com o significado pejorativo da palavra
académico.
Organizada pelo Louvre e dirigida por Pierre Rosenberg, que já depois da inauguração ascendeu ao lugar de director do Museu parisiense, a exposição do Grand Palais — com 110 quadros de um pintor que não terá pintado mais de 300 ao longo da vida, além de 145 desenhos — é apenas o pólo mais visível de todo este movimento.
De facto, ela é completada pela apresentação simultânea de dois outros importantes núcleos de obras nos Museus de Bayonne e de Chantilly, que por disposições testamentárias dos coleccionadores que as doaram não podem ser emprestadas: é no segundo que se exibe o extraordinário Massacre dos Inocentes, tantas vezes citado por outros pintores e agora acabado de restaurar. Entretanto, no Louvre, as salas reservadas a Poussin na ala Richelieu acolhem uma «exposição-dossier» com sete dos seus quadros na companhia de mais 25 de autores franceses que lhe foram próximos e que por vezes estiveram antes atribuídos ao próprio Poussin.
A exposição central (aberta até 2 de Janeiro) passará depois para a Royal Academy de Londres (de 19 Janeiro a 9 de Abril), sem os desenhos e com alguma rotação das pinturas, acompanhada por um diferente catálogo a cargo de Richard Verdi, sendo também completada por exposições paralelas de obras impedidas de viajar, enquanto outros projectos independentes se anunciam para os Estados Unidos e a Itália.
A multiplicação das publicações, iniciada por quatro catálogos parisienses e o lançamento em estreia, pelo Laboratório de Pesquisa dos Museus de França (LRMF), de um CD ROM onde se documentam os exames científicos realizados sobre 38 pinturas e de uma revista intitulada «Techne», é continuada por novos catálogos «raisonnés» da pintura (Jacques Thuillier) e do desenho (P. Rosenberg e L.-A. Prat) e pela edição ou reedição de ensaios de Alain Merot, Marc Fumaroli, Oskar Batschmann, Yves Bonnefoy, Louis Marin, da correspondência integral, etc.
Por outro lado ainda, um colóquio reuniu na passada semana os maiores especialistas internacionais do pintor, e dele se esperavam algumas novidades. Como por exemplo, através da descoberta recente das suas contas bancárias, a constatação de que o estóico Poussin não desprezava as aplicações nos jogos da Bolsa e morreu rico.
A multiplicação exponencial dos estudos sobre o pintor, depois do colóquio que se realizou em 1958, justificava um vivo enfrentamento entre as teses antagónicas, tanto mais que a exposição parisiense reivindica a prioridade das confrontações visuais contra o primado tradicional da especulação mais abstracta. Rosenberg propõe a necessidade de um «regresso a Poussin», e J. Thuillier, o seu principal biógrafo, fala de «limpar a estátua» (ou «décaper le peintre», segundo o título do «Le Monde»).
Tal preocupação, que é também a de reforçar a acessibilidade de Poussin para o espectador comum, passou, na exposição do Grand Palais, pela decisão de acompanhar cada quadro com uma tabela em que se explica o respectivo tema, atendendo à distância a que estão hoje os textos mitológicos ou bíblicos — levando à letra o preceito do pintor de «ler a história e o quadro, a fim de conhecer se cada coisa é apropriada ao assunto», sem com isso, no entanto, voltar a aceitar o primado do literário sobre a percepção estética.
Da aglomeração dos espectadores-leitores resultam outros problemas mais físicos de acesso às obras, que são agravados ainda por uma opção de montagem que usa a iluminação natural em algumas áreas do percurso, valorizando as intensidades cromáticas da pintura de Poussin, mas também criando zonas de reflexo que impõem uma dupla visita à exposição.
Uma ocasião como esta é também a oportunidade para multiplicar as operações de restauro das pinturas e, em especial, para proceder quer à revisão intensiva das atribuições, redefinindo o «corpus» de uma obra por vezes confundida com as suas próprias cópias, quer à proposta de uma nova cronologia da produção de Poussin, afinando a leitura da evolução criativa através da relação directa com as pinturas, e menos segundo as fontes escritas. O ano Poussin, aliás, segundo refere o comissário, tinha começado em Washington, com o confronto factual de duas versões do quadro La Sainte Famille à l'Escalier sucessivamente reconhecidas por originais; a unanimidade foi então imediata, a favor do quadro conservado em Clevelend. Rosenberg conseguiu ainda apresentar dois «inéditos» e o efeito daquele reexame de autorias não foi demolidor, como no caso de Rembrandt.
FALSAS PISTAS
Esquecido em Itália e respeitado em França como distante fundador da tradição nacional, Poussin começou a sair de um prolongado «purgatório» apenas em 1960, por ocasião da primeira exposição monográfica organizada pelo Louvre, que teve o significado de uma espécie de renaturalização do pintor. De facto, Poussin viveu praticamente toda a sua vida criativa em Roma, com o breve intervalo de uma chamada a Paris em 1640-42 para intervir, como «primeiro pintor do rei», Luís XIII, nas decorações da grande galeria do Louvre — um episódio infeliz que para sempre o afastaria das grandes decorações e do papel de pintor cortesão, optando por um isolamento voluntário e orgulhoso no centro da vida artística do tempo. Por outro lado, o pintor tem em Inglaterra uma parte muito substancial da sua obra, aí gozou de uma admiração menos variável com a oscilação dos gostos e aí conta ainda com muitos dos seus principais estudiosos.
Jogam-se, por isso, graves questões de prestígio nacional em torno da revalorização de Poussin como o maior de todos os pintores franceses, ao mesmo tempo que se procura construir uma nova abordagem da sua obra. Alain Mérot já tinha procurado contrariar os preconceitos que envolviam a respectiva recepção ao valorizar o que na sua pintura é, ao mesmo tempo, inspiração e disciplina, sensualidade e rigor. J. Thuillier considera-o agora «um dos pintores mais eróticos de toda a pintura francesa» e associa a sua muito rápida fama romana à importação da tradição do nú da Escola de Fontanebleau, em plena Contra-Reforma.
O catálogo editado por Pierre Rosenberg contempla, como é de regra, o estudo minucioso de todas as obras expostas, sintetizando as leituras iconográficas e argumentando sobre opções cronológicas e evoluções estilísticas. Entretanto, o prefácio e a ordem dos 14 ensaios que inclui não ocultam um ponto de vista global apostado em fazer desta retrospectiva a oportunidade prática de ver em Poussin não tanto o suposto filósofo como o pintor, contrariando a versão dominadora de «um artista encerrado desde há mais de 300 anos no papel de grande intelectual da tradição europeia», como escreve Neil MacGregor, director da National Gallery de Londres e co-comissário para a pintura na exposição do Grand Palais.
Em causa está Poussin como erudito e teórico, e P. Rosenberg é bem claro: «Poussin não é um homem de doutrina, ou pelo menos não é o homem de doutrina que quiseram fazer dele». Enquanto teórico, à leitura da sua correspondência, «parece mais provável que a teoria tenha sucedido à pintura», para justificar os quadros já terminados, e o exame atento comprova que essa teoria «não tem nada de original e é mais uma compilação de fontes diferentes por vezes imperfeitamente compreendidas» («Connaissance das Arts»).
O intuito polémico é mais evidente ainda no texto do director da National Gallery, crítica explícita de uma situação em que «as árvores universitárias vieram muitas vezes esconder a floresta artística», onde se defende «um outro olhar sobre Poussin» que não permita que as suas pinturas continuem a «passar para o segundo plano, para trás das teorias que supostamente deveriam encarnar».\
MacGregor serve-se do prestígio de um dos mais importantes investigadores, Denis Mahon, e concretamente de um pouco conhecido artigo de 1965 intitulado «Plea for Poussin as a Painter», repetindo-lhe o título no catálogo, para contestar as «duas falsas pistas» por que seguiu o entendimento do pintor: «a importância excessiva atribuida ao lado intelectual ou cerebral de Poussin» e «a demasiada insistência sobre os dados históricos e as ideias em detrimento das pinturas».
Já segundo Mahon, «Poussin não era evidentemente um filósofo que empregava a pintura como meio de expressão, mas um pintor de primeiríssima ordem cuja arte revela, sobretudo em relação à maior parte dos outros pintores, uma componente que se pode qualificar vagamente como 'filosófica'».
MacGregor opõe-se agora a uma «geração encorajada a confundir a história da arte com a história das ideias», que se «lançou com entusiasmo na exploração das filosofias abstrusas do século XVI» e que «acha normal interessar-se mais pelo pensamento do pintor que pelo suporte artístico utilizado para o veicular», defendendo no catálogo «a utilidade de examinar os quadros» e a necessidade de «elaborar uma biografia visual do pintor a partir das suas obras». Porque «a composição, a factura, a cor, o vocabulário plástico são muito mais convincentes, em ultima análise, do que as preocupações filosóficas e as fontes históricas».
Contrariando a tese dominante do «pintor-filósofo» (a que Rosenberg prefere a de «pintor-poeta», na linha de Gide), o autor inglês sublinha que o que sobressai da consideração da obra «não é um grande intelectual, mas um pintor sem paralelo», cuja obra «é empalidecida ainda em muitos casos pela etiqueta de filósofo ou pelas alegações dos seus admiradores universitários, quando ele foi em especial e antes de tudo um colorista tão subtil e sensual como qualquer veneziano, dotado de um instinto muito seguro da iluminação».
ATEU OU RELIGIOSO
Entretanto, é o próprio confronto entre as teses dos principais estudiosos de Poussin, e em especial das suas contra-argumentações, que conduz à revelação da fragilidade dos suportes documentais e literários que alimentam a investigação erudita desencarnada das obras, ao mesmo tempo que é escasso o estudo de aspectos decisivos nos domínios da iconografia, da biografia, dos processos técnicos de trabalho ou, até, da identidade dos seus coleccionadores.
É particularmente curiosa a oposição entre Jacques Thuillier, que vem agora, no catálogo, defender o ateismo do pintor, prolongando a tese do estoicismo e do racionalismo pré-iluminista que Anthony Blunt propusera, e, por outro lado, a intervenção de um Marc Fumaroli que faz de Poussin um pintor mais religioso que filósofo.
J. Thuillier sustenta a defesa do ateismo do pintor de um modo que não é particularmente favorável à tese da vasta erudição, destacando a importância de uma prática da pintura que «escapa ao conceito e se anima com a inesgotável complexidade do vivido», como «lugar de uma experiência» que não pode «confundir-se com a 'ilustração'» das ideias.
Argumentando contra Blunt, Fumaroli considera o neo-estoicismo apenas o resultado da adopção de máximas de sabedoria prática que eram comuns aos letrados desde o séc. XVI, e chega a invocar contra o investigador inglês a sua condição de espião ao serviço dos soviéticos, acusando-o de fabricar uma identificação entre ele próprio e o seu tema de estudo:
«Blunt foi tentado a atribuir a Poussin a personalidade dupla de um espião, por um lado perfeitamente adaptado ao meio ambiente, mas no fundo traindo-o por uma causa só conhecida por ele próprio e alguns cúmplices», como se fosse «um espião das Luzes cuidadosamente mascarado pela sua prudência estoica na Roma dos papas.» Recorde-se que Blunt, especialista incontestado do pintor, conselheiro artístico e ainda parente da rainha de Inglaterra, falecido em 1983, fez parte com Guy Burgess do célebre grupo dos cinco espiões de Cambridge, passando à condição de agente duplo em 1964, até ser denunciado por Margaret Tatcher em 1979, em pleno Parlamento.
Num artigo onde sintetiza a sua tese, Fumaroli vem valorizar, primeiro, um Poussin seguidor do neo-platonismo, interessado na continuidade entre os mitos e a sabedoria do paganismo e os mistérios revelados por Cristo e a sua Igreja; mais do que um precursor do racionalismo das Luzes, o pintor seria afinal um dos últimos herdeiros do platonismo cristão do Renascimento, identificado com a erudição dos antiquários romanos e o enciclopedismo dos jesuitas, de quem sempre esteve próximo. Na fase final, acentuar-se-ia a via da contemplação e do mistério sobre a do sincretismo arqueológico, «procurando a energia simbólica do lado da concentração e da limpidez», enquanto o seu «génio religioso», sempre identificado com uma igreja militante que tinha Bernini como expoente paralelo, ao estilo italiano, ficaria patente na segunda série dos «Sacramentos» ou na Anunciação de 1657, que «mesmo o 'libertino erudito' mais estoico, no sentido de Blunt, não poderia mimar».
LONGA INFLUÊNCIA
Nascido numa família de notários da Normandia, Poussin fugiu de casa aos 18 anos para seguir uma vocação contrariada. A sua formação é praticamente ignorada, para além da passagem de apenas alguns meses em ateliers franceses, chegando a Roma aos 30 anos sem que tenham sobrevivido da sua produção anterior mais do que alguns desenhos maneiristas. Desconhecido em 1624, mas recomendado em Roma por uma «furia di diavolo» muito diversa da imagem que depois lhe foi associada, Poussin ascenderia a um reconhecimento meteórico logo em 1627, com A Morte de Germânicus, e seria já célebre três anos depois.
Glorificado ainda em vida como modelo de um ideal clássico que lhe sobreviveu por pouco tempo, mas que a segunda metade do século XVIII iria retomar, figura tutelar da Academia criada em Paris em 1648 (sem ter sido um dos seus proponentes nem acedido a cumprir funções oficiais), Poussin é desde logo o paradigma idealizado do pintor intelectual em oposição ao pintor artesão, num momento em que os artistas reivindicavam a libertação das condições regimentais das corporações e, num mesmo movimento, a entrada da pintura no plano das artes liberais, ainda muito antes da definição conceptual das Belas-Artes.
O perfil de «pintor filósofo», com a qualidade suplementar de não se ter submetido à dependência cortesã, que foi condição primeira dessa liberalização das cadeias corporativas, servia exemplarrmente a causa da transição Du Peintre à l'Artiste — título de uma notável obra de Nathalie Heinich (ed. Minuit, 1993). É a compreensão do preciso contexto histórico da defesa do primado do literário na pintura, e por isso da necessária nobreza dosseus assuntos, como momento prévio à emergência da percepção estética autonomizada (primeiro da imitação mecânica, e depois da literatura), que permite situar o processo de «intelectualização da relação com as imagens» (N.H.) patrocinado por Poussin e responsável pela sua assimilação da percepção da obra pictural a um acto de leitura.
Por outro lado, aquele desconhecimento das etapas da formação de Poussin permitiria que, muito mais tarde, Balzac o tomasse por modelo romântico do artista boémio, o «génio» indisciplinado do Chef-d'Oeuvre Inconnu. O isolamento da carreira de pintor, a recusa da decoração mural para se confinar às telas de formato médio, a independência conquistada face aos mecenas e encomendadores, o facto de não ter criado um atelier nem trabalhar com assistentes, a recusa da vida oficial para se consagrar inteiramente à sua obra são aspectos que antecipam o artista inovador do século XIX.
O ensaio de Richard Verdi sobre a influência exercida por Poussin na evolução da pintura europeia, também publicado no catálogo, abre uma pista particularmente fecunda para entender a contraditória riqueza da sua obra, ora modelo da prioridade atribuida ao desenho (e ao «disegno») sobre a cor, ora exaltada pelas componentes imaginativas e irracionais, ora tomada por paradigma da tradição antiga do sublime, ora valorizada pela «veracidade» do seu entendimento da natureza. É toda a história da devoção demonstrada por Ingres e do interesse de Delacroix, passando Poussin de modelo do neo-classicismo para precursor do romantismo, e logo a seguir reivindicado pelos que procuraram uma representação realista da paisagem («Eis a natureza», diria Corot diante de O Outono), para ser mais adiante modelo de Degas, Pissarro e, em especial, Cézanne, depois dos cubistas, de Balthus e de Lupertz.
Neste sentido, exprime-se também no «regresso a Poussin» pretendido por Rosenberg e outros, se se recordar que o pintor foi referência essencial do «regresso à ordem» dos anos 20, em especial para Picasso, a ideia de que não se esgotou ainda a influência possível desse pintor que amava «as coisas bem ordenadas, fugindo à confusão».
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