Expresso Actual de 27/4/2002
"Refundar a arte moderna"
Uma exposição no Palácio Grassi de Veneza revê o lugar histórico do pintor Puvis de Chavannes
Uma grande exposição em Veneza propõe-se reescrever a história da arte
moderna, trocando a genealogia consagrada, que parte de Manet e dos
impressionistas, por um pintor isolado e durante muitas décadas
relegado para as reservas dos museus: Puvis de Chavannes (Lyon, 1824 -
Paris, 1898).
Artista oficial da segunda metade do século XIX, autor
das grandes decorações murais do Panteão e da Câmara de Paris, do
anfiteatro da Sorbonne e dos Museus de Amiens, Lyon e Marselha,
admirado em vida pelos artistas mais novos mas esquecido na primeiras
décadas do novo século.
Pierre Puvis de Chavannes, Le rêve, 1883
Huile sur toile, 82 x 102 cm
Paris, musée d'Orsay (© photo RMN, Hervé Lewandowski)
A tese é defendida na mostra que o Palácio Grassi apresenta até 16 de Junho sob o elucidativo título «Da Puvis de Chavannes a Matisse e Picasso. Verso l'Arte Moderna». Cerca de 200 pinturas e esculturas estabelecem um mapa de influências estilísticas e semelhanças iconográficas que, após três dezenas de obras de Puvis, vai de Rodin, Gauguin, Seurat e Cézanne até aos Baigneurs sur la Plage à Garoupe (1957), de Picasso, passando por Maurice Denis e Bonnard, Segantini, Munch, Hodler, Malevitch, Derain, Maillol, Torres García e Mario Sironi, entre muitos outros menos conhecidos, germânicos, eslavos e nórdicos. Um enorme catálogo de 568 páginas, com tradução francesa na Flammarion (€80), sustenta a argumentação com ilustrações e numerosos ensaios.
Quem assim põe em causa as sínteses históricas correntes e a própria ideia de ruptura entre a arte do passado e a modernidade é a voz inesperada de Serge Lemoine, conhecido pela sua dedicação à abstracção geométrica. Ex-director do Museu de Grenoble e professor na Sorbonne, dirige desde Dezembro o Museu d'Orsay, para o qual já organizou a exposição «Mondrian de 1892 à 1914. Les Chemins de l'Abstraction» (até 14 de Julho).
Serge Lemoine contesta a visão linear da história que começava com o impressionismo, a que se associam, sem as necessárias distinções individuais, Manet, Monet, Renoir e Degas, ao qual sucedia o pós-impressionismo com Seurat, Van Gogh, Gauguin e Cézanne, seguindo-se os «Fauves» e Matisse, depois Picasso e o cubismo, até à abstracção com Kandinsky. A esta sequência unívoca, que a revalorização dos simbolistas do final do século XIX já pusera em causa, substitui a leitura de uma situação histórica complexa em que Puvis tem um lugar solitário e independente, embora reconhecido pelos seus pares e pelos poderes públicos, situado à margem dos impressionistas (Lemoine afirma que «a arte dos impressionistas se revelou sem consequências», propondo o abandono da expressão pós-impressionismo) e também da arte académica e eclética, a chamada «art pompier», em que por vezes foi incluído. Num gráfico que abre o catálogo surgem na sua descendência o neo-impressionismo de Seurat e Signac, as figuras singulares de Van Gogh, Gauguin e a galáxia do simbolismo, os «Nabis» (Denis, Sérusier, Maillol, Vuillard) e o «Noucentismo» catalão, estabelecendo-se depois uma rede de influências cruzadas onde cabem fauvismo, cubismo, expressionismo e o «Novecento» italiano. António Carneiro (referido como A. Teixeiro-Carneiro) surge nesse mapa de influências de Puvis, embora não na exposição.
No âmbito da reacção simbolista ao naturalismo (ou seja, à tradição da procura de objectividade na recriação do visível, em que o impressionismo se inclui), os nomes de Gustave Moreau e Odilon Redon, admirados pelos surrealistas, foram mais valorizados pelos historiadores devido ao carácter fantasista ou onírico das suas obras visionárias, enquanto as composições decorativas de Puvis apareciam como prolongamento académico da tradição clássica, com as suas alegorias intemporais em cenários paradisíacos. No entanto, se as suas figuras nuas ou de roupagens antigas vistas em paisagens idealizadas se reencontram nas composições de banhistas de Cézanne e Picasso, ou nas alegorias do «Bonheur de Vivre» de Matisse, como persistência de temas clássicos que atravessam a modernidade, é também pelo seu tratamento formal que Puvis de Chavannes foi influente: graças à simplificação dos elementos picturais, ao desenho sintético e às cores lisas que afirmam a planeidade espacial contra a profundidade ilusionista. Embora discutíveis quanto a algumas atribuições de influências directas, as teses de Serge Lemoine e dos seus colaboradores são um contributo para a revisão necessária da história da arte que chegou até aos nossos dias.
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