Também Rui Sanches, no Público de quinta-feira 29 de Novembro, veio levantar a questão dos não-museus que por aí se reproduzem. Poucos dias depois de aqui se ter referido a confusão que vai pelo CAM da Gulbenkian quanto ao destino do seu museu e/ou colecção, agora parcialmente substituído por uma exposição-instalação temporária que ainda não vi e parece não entusiasmar - mas não é isso que está em causa. Lá para traz ficou O fim de um museu , com data de 23.
Em "Da importância da memória" (página "Espaço Público"), Rui Sanches refere-se ao "Museu do Chiado, que, em 1994, tinha como vocação mostrar a produção entre 1850 e o princípio do século XX" - e que "deixou de cumprir esse desígnio, optando por se transformar num "centro" de arte contemporânea".
Todo um parágrafo lhe é dedicado, apontando as exposições que lá se apresentam e "que, para além dos seus méritos intrínsecos, deveriam estar noutro local". É manifestamente o caso da vídeo-mostra actual que caberia melhor num espaço de armazém (RS não se lhe refere).
"Não deixa de ser irónico que o Prado inaugure as suas novas instalações exactamente com uma mostra da arte espanhola do século XIX enquanto nós não temos o menor interesse em dar a ver a que temos" - escreve RS.
Sobre a colecção de arte do séc. XX do CAM, de que foi por um tempo subdirector, diz que a Fundação "tem o dever de esclarecer o público quanto às suas intenções para o CAM e a colecção que alberga. Irão as obras continuar guardadas?"
"O que me parece importante é que o que existe seja mostrado de forma permanente. (...) Para que haja a construção da memória, é importante a possibilidade de criar laços afectivos com obras que estão em exposição permanente. (...) Assim não é possível construir a memória que tem de estar na base de uma vida cívica culturalmente sustentada". RS
Acessível apenas a assinantes, este texto deveria estar disponível para um necessário debate público sobre a política museológica ou a falta dela que se instalou em espaços oficiais e oficiosos que tiveram antes outras responsabilidades cívicas e culturais.
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Rui Sanches introduz o tema com considerações sobre um monumento ao calceteiro há tempos inaugurado na Rua da Vitória. A observação da sua falta de qualidade - aponta o carácter anacrónico deste conceito de monumento e fala de uma "confrangedora incompetência" - é associada à "situação de falta de cultura visual que existe entre nós", e que teria "de ser construída ao longo do tempo através do convívio com bons exemplos das práticas artísticas de tempos anteriores". Daí os museus...
Valeria a pena, porém, questionar o hiato que se abriu entre a necessidade social que o monumento certamente cumpre (homenagear, recordar) e a declarada rejeição que o discurso preponderante sobre a arte contemporânea, de tradição modernista formalista, estabelece quanto a esse tipo de propósitos ou mesmo de possibilidades. Segundo a cartilha, pelo "fim dos anos 60, a escultura acede à escala monumental, e as condições desse acesso arrastam precisamente a dissolução do escultural em si mesmo" (en tant que tel) - Rosalind Krauss (Centre Beaubourg, 1986). É o fim obrigatório da estátua e do monumento representativo. Não é por acaso que os museus se encerram, mas porque por aí, mais entre nós que noutros espaços culturalmente mais sedimentados, se tem instalado uma versão oportunista da história das rupturas e do "progresso" das artes, uma história de rejeições e abandonos.
Se os escultores que se dizem contemporâneos não podem ou não sabem responder a uma necessidade social (tal como ocorre com a necessidade do retrato pintado), outros ocupam esse espaço. Com museus ou sem eles.
Como resolveria Rui Sanches a encomenda de um monumento ao calceteiro? Ou ao ardina, ao cauteleiro, ao atleta, ao poeta, ao político?
Alexandre,
o tal hiato de que falas entre "a necessidade social que o monumento certamente cumpre e a declarada rejeição que o discurso preponderante sobre a arte contemporânea, de tradição modernista formalista, estabelece quanto a esse tipo de propósito ou mesmo de possibilidades", existe mas penso que tem uma forma diferente. Não me parece que se possa caracterizar o "discurso preponderante" dessa maneira monolítica. E não é, com certeza, a facção modernista formalista que é, hoje, maioritária. Artistas que estão no top da mediatização e das vendas como D. Hirst, Jeff Koons, Maurizio Catellan ou R. Prince, são modernistas formalistas? A Rosalind Krauus escreveu os seus importantes ensaios sobre escultura no final dos anos 70. Depois disso muita coisa aconteceu. A situação é bem mais complexa.
O processo decisório que leva a que se coloquem aquelas aberrações na rua é que não é avaliado nem alterado. Continua a ser o mesmo que permitiu que se perdesse a oportunidade de sucesso da unica tentativa interessante de monumento em Portugal nos tempos recentes: o monumento ao 25 de Abril do João Cutileiro. Falhou o acompanhamento, a localização e o enquadramento.
A estatuária exige preparação académica, que já não existe, e mesmo que existisse, exige também anos de aprendizagem prática pós-escolar, que é hoje impossível. Tornou-se uma linguagem em extinção. As tentativas de a perpectuar são normalmente feitas por incompetentes opotunistas.
Há alguns exemplos interessantes de monumentos feitos no final do séc XX: o monumento aos mortos da guerra do Vietnam da Maia Lin e o monumento às vítimas do holocausto em Viena da Rachel Whiteread, são alguns exemplos.
Fazer hoje um monumento ao calceteiro não sei se corresponde, de facto, a uma necessidade social. Mas a ser feito, se calhar, deveria ser feito usando a técnica e arte do calceteiro em vez do mau exemplo de estatuária.
Abraços. Rui Sanches
Posted by: Rui Sanches | 12/11/2007 at 09:21