Expresso Actual de 2/6/2001, pp. 40-41
"Antes e depois de 1947"
"Fases, rupturas, gerações e divergências na cronologia do surrealismo português" / "Duas anteriores revisões do surrealismo seguiram diferentes cronologias do movimento"
«Surrealismo em Portugal, 1934-1952»
Museu do Chiado
24 Maio 2001 / 23 Set.
O surrealismo português não se deixa converter facilmente em objecto de estudo «científico» e a exposição do Museu do Chiado é mais um testemunho das divergências e tensões que o movimento continua a suscitar. Apesar do recurso aos espólios pessoais dos intervenientes desavindos em 1948, que permite apresentar, pela primeira vez, um panorama «unitário» do período organizado do surrealismo (1947-50), permanece actuante a oposição entre as teses historiográficas sustentadas por José-Augusto França, grandemente centradas no seu activo papel de crítico, e, por outro lado, a recusa protagonizada por Mário Cesariny, também antólogo e historiador militante do movimento, de deixar interpretar como mais um estilo numa sucessão «progressiva» de estilos o que para alguns continuou a ser uma inspiração viva e libertadora.
Basta observar a diversidade dos horizontes cronológicos seguidos nas duas vertentes da mostra, artes plásticas e literatura, para reconhecer que o título «Surrealismo em Portugal, 1934-1952» recobre abordagens que não se conciliaram no seu duplo comissariado. 1952 foi a data adoptada por França para encerrar a retrospectiva dos Anos 40, em 1982. A actual reincidência volta a ter em conta a exposição de Fernando Azevedo, Fernando Lemos e Vespeira na Casa Jalco, mas não corresponde, de facto, à data da dispersão dos colectivos, que ocorre em 49 quanto ao Grupo Surrealista de Lisboa (aquele em que, aliás, Azevedo e Vespeira intervieram) e durante 51, mas muito mais informalmente, quanto a Os Surrealistas.
Para além das individuais sucessivas de Cruzeiro Seixas e Cesariny, outras exposições de Eurico Gonçalves e Dante Júlio, em 54 (Galeria de Março), António Areal, Carlos Calvet e Jorge Vieira, em 56 (Gal. Pórtico), permitiriam não estabelecer qualquer fronteira naquele ano, e o mesmo acontece face às edições de poesia e de textos de intervenção que continuaram a ocorrer. Mais exactamente, a data de 52 é conveniente para os que entenderam abandonar ou superar o movimento (ou o estilo) surrealista, mas improcedente para os que permaneceram fiéis ao «propósito inicial» ou que por ele se interessaram ainda ao longo das décadas de 50 e 60 (até Mário Botas, possivelmente).
A propósito, até para observar como a história foi sendo reconstruída, é curioso recordar a crítica que França publicou em 52 na «Seara Nova» sobre a exposição da Casa Jalco, desviando-a de qualquer justificação surrealista para a apontar como abertura a novas orientações genericamente «não figurativas», que pouco depois terão sequência na sua defesa da abstracção geometrista, como um novo capítulo de informação parisiense. Falta às revisões produzidas por novos autores o contacto sistemático com as fontes do tempo, trocando-se a informação em primeira mão por sínteses que nunca foram sujeitas a qualquer reexame.
Não sendo esta a primeira retrospectiva que se quis distanciar das polémicas entre os anteriores protagonistas, é indispensável confrontá-la com os critérios seguidos pelos dois anteriores ensaios. Ambos divergem da actual mostra quanto aos prolegómenos do surrealismo nacional, antes da fase que vai de 1939 a 47, graças à inclusão de obras de Júlio (Reis Pereira), e também quanto à continuidade da inspiração surrealista.
Em 83, Luís de Moura Sobral apresentou em Montréal «Le Surréalisme Portugais», propondo-se sumariar um período de 1934 a 1960, com a representação adicional de Eurico, António Quadros, Areal e Gonçalo Duarte. Em 99, «Desenhos dos Surrealistas em Portugal. 1940-1966», promovida pelo Instituto de Arte Contemporânea no Museu Soares dos Reis, com organização de Paulo Henriques, incluiu também Areal e Eurico, apesar da sua abordagem muito concisa.
Encontram-se nos textos introdutórios ao presente catálogo, e em especial no longo ensaio de María de Jesús Ávila, argumentos em defesa das opções agora praticadas, mas é improvável que estas façam escola. Ao tomar por limite a data de 52, a pretexto do desmembramento dos grupos assumidos como tais, usa-se uma lógica vanguardista sustentada por um sentido finalista da sucessão dos estilos artísticos que desentende o que pretendeu ser a ruptura surrealista. Este critério restritivo tem, no entanto, a vantagem prática de permitir uma muito alargada exibição do período organizado do movimento, de 47 a 50 (levado até 52), pondo em relação, mais do que em confronto, os dois grupos referidos.
Esse efeito atenuar-se-ia provavelmente com uma selecção mais alargada no tempo e nos critérios de admissão - onde também deveriam caber, para as mesmas datas, a produção surrealista ou surrealizante de Nadir Afonso e Jorge de Oliveira, mais o pouco que sobreviveu de Manuel d'Assumpção. Assim estruturada, a exposição documenta de forma consistente o que, para além de configurar um movimento surrealista mais ou menos incipiente (note-se a coincidência temporal com o movimento Cobra, de herança surrealista), foi parte de uma importante afirmação geracional, das mais fortes que o século XX conheceu em Portugal, contando com as orientações não surrealistas.
Por outro lado, reconhece-se que a actual mostra é muito marcada pela sequência (discutível mas coerente) da programação do Museu, que passou pelas iniciativas dedicadas a Jorge Vieira, António Pedro, Vespeira e Fernando Lemos, sem esquecer a colecção do próprio J.-A. França, orientação essa que tem proporcionado o alargamento do acervo com aquisições e doações. É essa lógica que justificará, sem servir de legitimação, a inclusão de Jorge Vieira, que nunca se pretendeu surrealista, relacionando-se com o movimento num convívio pessoal e estético aberto a outras inspirações. Mesmo se é forte a articulação poética e plástica com outras obras expostas, a sua presença é problemática dadas as implicações doutrinárias do movimento e contradiz o perfil de independência que a sua retrospectiva de 1995 lhe reconheceu.
Entretanto, através da organização espacial da exposição fica bem patente que não há movimento surrealista em Portugal até 1947, embora houvesse pintores surrealistas ou praticantes de pintura surrealista, em conformidade com informações internacionalmente disponíveis desde os anos 30. O subtítulo do catálogo «Consolidação. 1940-47» é inadequado porque, mais do que de continuidade, importa falar em ruptura entre diferentes fases. Não é a pintura de Pedro e de Cândido Costa Pinto (nem o fulgor breve de Dacosta entre 1939 e 42), que conduz à movimentação de 47, nascendo esta com uma nova geração que mais ou menos informalmente se buscava desde 42-43, se interessou pelo neo-realismo em 1945 (jornal «A Tarde») e em 47 foi colher inspiração directa a Paris no regresso de Breton.
A investigação sobre os antecedentes surrealizantes teria que alargar-se às poéticas do imaginário e às expressões do sonho e da loucura em Dominguez Alvarez (Figuras de um Sonho, os «homens tortos», etc.), Mário Eloy e Júlio, levando também em conta a afirmação de Cesariny de que Arpad Szenes e Vieira da Silva foram os «introdutores do surrealismo na pintura portuguesa da década de 30».
Quanto à primeira fase do surrealismo nacional, o carácter de ruptura atribuído à exposição de Pedro e Dacosta na Casa Repe (1940) tem de ser prudentemente compatibilizado com a aparição regular da sua pintura nos salões do SPN, desde 39, depois no SNI, em 45, e na SNBA em 46 e 47 (1ª e 2ª EGAP), associada entretanto à confusa produção de Cândido Costa Pinto. Por outro lado, é indispensável que ao vanguardismo de Pedro em 34 se associe a sua militância fascista (é então comissário da propaganda de Nacional Sindicalismo e a ida para Paris é um «semi-exílio» solidário com Rolão Preto, como França ensinou), tal como importa referenciar na extrema direita as figuras de Dutra Faria e Ramiro Valadão, co-autores dos primeiros «cadavre-exquis» ditos surrealistas.
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Publicado em simultâneo com artigos de Celso Martins e António Guerreiro.
A exposição inaugurou-se antes em Badajoz, no MEIAC, e foi depois levada a Vila Nova de Famalicão, onde acabou por ser prematuramente encerrada.
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NOTAS
Surrealismo em Portugal
MEIAC, Badajoz
17/3/2001
Uma primeira retrospectiva «unitária» do movimento foi organizada em 1984 [aliás 1983] em Montreal, por Luís de Moura Sobral, mas em Portugal as muitas susceptibilidades dos participantes (ou proprietários?) foram impedindo uma séria abordagem histórica dos acontecimentos. J.-A.França fez na exposição sobre os anos 40 (Gulbenkian, 1982) uma reconstituição facciosa, e Mário Cesariny preferiu sempre à história académica a acção directa, ou poética.
Por iniciativa espanhola, que evoluiu para uma co-produção com o Museu do Chiado (onde se apresentará a partir de 24 de Maio), chega-se agora a um balanço alargado com duplo comissariado de Perfecto Quadrado (literatura) e María Jesús Ávila (artes plásticas), o qual terá como limites cronológicos os anos de 1934 e 52 — em Montreal continuara-se até 1960, incluindo justamente novas aparições que do surrealismo se reclamaram, em especial os trânsitos pelo Café Gelo (Eurico, Calvet, Areal, etc., etc.).
Quanto aos chamados primórdios, a antologia que se inaugurou ontem deverá confirmar alguns factos insólitos, que progressivas simplificações dos discursos históricos não têm sabido valorizar: 1) as primeiras obras apontadas como surrealistas são da autoria do então fascista António Pedro, militante (camisa azul) do movimento Nacional-Sindicalista de Rolão Preto, proibido por Salazar — por isso ele se exilou em 1934; 2) nos anos seguintes, o surrealismo manifestou-se regularmente nos salões do SNP/SNI (39, 42, 44, 45), no quadro das iniciativas modernizadoras patrocinadas por António Ferro, acrescentando-se então a Pedro as obras de António Dacosta (até 42; Prémio Souza-Cardoso desse ano) e Cândido Costa Pinto — a memória da exposição de 40 na Casa Repe não podia alterar o peso dessa marca de origem; 3) em 1947, Cândido começou a desenhar as capas surrealistas da colecção «Vampiro» e em 49 faz selos do Correio. Tornava-se necessária uma ruptura geracional, mas ela foi depressa prejudicada por diversas e duradoiras querelas. As questões relativas ao pioneirismo e à «introdução» do surrealismo devem ser reduzidas às justas proporções decorrentes de um grande atraso em relação ao início do movimento e de uma grande insuficiência/incoerência ideológica dos seus primeiros agentes (e de uma grande incipiência prática também, em vários casos). E importam sempre mais as obras do que as suas etiquetas. (Até 29 Abril) (Na ocasião, a 23 de Março, foi publicado no Expresso um texto crítico de J.L. Porfírio.)
Surrealismo
Museu do Chiado
19-05-2001 (Inaugura a 24 Maio)
A única revisão histórica do surrealismo português realizara-se em 1983, em Montreal, por iniciativa de Luís Moura Sobral; em 1999, o IAC dedicou uma antologia ao desenho surrealista, organizada por Paulo Henriques e Fernando Cabral Martins (ficou esquecida na cronologia do presente catálogo). A dificuldade, até agora, foi obter luz verde dos dois representantes dos grupos desavindos no final dos anos 40 e fazer aceitar a Cesariny uma abordagem histórico-académica do que ele pretende que seja uma inspiração ainda viva (o outro é o historiador e académico J.-A. França).
Em co-produção com o MEIAC de Badajoz, María Jesús Ávila e Perfecto E. Cuadrado dirigiram as vertentes de artes plásticas e literatura de uma retrospectiva de grande escala que reúne muitas obras esquecidas ou pouco vistas e que deu origem à publicação de um extenso volume. Ao reconhecimento dos méritos da iniciativa deverá associar-se a discussão sobre os critérios cronológicos seguidos (de António Pedro à Casa Jalco, 1934-52, embora a amostragem literária escape a tal espartilho), as exclusões de várias figuras singulares (Júlio, algum Arpad Szenes e o círculo de Vieira da Silva, Nadir Afonso e depois Eurico, entre outros), a ocultação de algumas originalidades ideológicas do surrealismo nacional (o compromisso fascista de António Pedro, em 34, e a oficialização do «estilo surrealista» nos salões do SNI ao longo da década de 40), a menorização da excepcional pintura dos primeiros anos de António Dacosta face às ambições escolares e inábeis do mesmo Pedro, etc., etc.
18/08/2001
Depois de duas antologias de muito menor escala, em 1983, em Montreal, e em 99, no Porto, esta apenas dedicada ao desenho, o Museu do Chiado, em colaboração com o MEIAC de Badajoz, conseguiu finalmente propor uma retrospectiva histórica do surrealismo português com propósitos de levantamento exaustivo, para o que era preciso contar com o acesso aos espólios pessoais de protagonistas desavindos.
María de Jesús Ávila encarregou-se da pesquisa das obras e da investigação na área das artes plásticas, enquanto Perfecto E. Quadrado assegurou a presença do domínio literário na exposição e no catálogo, sendo particularmente curioso que cada um dos comissários tenha adoptado diferentes programas cronológicos. Até à actualidade no segundo caso e delimitado pela data de 1952 no primeiro, adoptando-se, no entanto, essa data para o título genérico (1934-1952).
A ocupação do espaço do museu é propícia a uma separação nítida entre os dois momentos do surrealismo em Portugal. O primeiro não tem marcas de movimento nem produz doutrina: associado ao diletantismo de António Pedro e à fulgurante pintura inicial de Dacosta, estabelece uma das datas míticas da historiografia nacional (1940, exp. da Casa Repe) e esgota-se no folclorismo academizante de Cândido Costa Pinto. Por inventariar ficam outras aproximações à informação surrealista internacional, trazidas por Arpad Szenes, ou expressas por derivas oníricas de Júlio, Alvarez e Eloy.
O segundo momento tem um forte sentido de afirmação geracional e é para vários artistas um período de afirmação, com ou sem continuidade, embora o próprio limite temporal estabelecido privilegie aqueles que se desligam do movimento, na medida em que interrompe abruptamente a obra dos que, como Cesariny e Cruzeiro Seixas, a ele se mantiveram fiéis. Com as suas polémicas opções, fica de qualquer modo apresentado um panorama de referência sobre um dos momentos de vitalidade e renovação da arte portuguesa. (Até 23 Set.)
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