Expresso Revista de 09-03-96, pp. 78-84
"As cores do silêncio"
Nunca tantos quadros de Vermeer foram reunidos numa exposição, já quase esgotada e tão saturada de visitantes que não garante a visibilidade mais conveniente. Todos os enigmas do pintor e da obra persistem, mas alguns quadros foram restaurados
DESDE há perto de um ano, quando se iniciou a promoção da exposição Vermeer, vêem-se por toda a parte as reproduções dos seus quadros e os magazines e revistas de arte foram sucessivamente publicando a pequena obra completa do pintor. Em Haia, a entrada no Mauritshuis, o Gabinete Real de Pinturas que ocupa um pequeno palácio do século XVII, junto à sede do governo da Holanda, faz-se por um corredor decorado com «posters», numa grande tenda instalada sobre um pontão que flutua no Lago da Corte. Torna-se assim mais flagrante que a atracção que exerce esta exposição — para além do desejo de participar num acontecimento que o «Paris Match», por exemplo, classifica como «o maior momento da história da arte do fim do século XX» — reside na expectativa de uma diferença irredutível entre o encontro com a obra original e todas as reproduções multiplicadas até ao infinito.
Quando a circulação das imagens e conhecimentos ganha os novos canais da rede informática, como um fluxo ininterrupto à escala do globo, parece ser mais importante que nunca o efeito da aura do objecto autêntico e único, e mais poderoso o encontro com a insubstituível realidade material da pintura. Mesmo que esse encontro só seja possível através dos vidros de protecção das telas e de uma muralha de espectadores quase impenetrável, uma vez que a máquina promocional das super-exposições internacionais conduz à fatal deterioração das condições de visibilidade.
Depois de vista em Washington por 327 mil pessoas, apesar dos encerramentos dos serviços públicos e da dureza do inverno, a mostra de Vermeer em Haia encontrava-se já quase esgotada no momento da sua inauguração, no primeiro dia de Março. Com perto de 300 mil bilhetes previamente comprados, num total calculado de 350 mil visitantes durante três meses (400 pessoas por hora diante de minúsculas pinturas distribuidas por quatro salas, até 2 de Junho), os responsáveis do Mauritshuis estudam agora a possibilidade de prolongar os horários do fim de semana até à meia-noite para tentar responder à pressão desencadeada.
RARO E MISTERIOSO
VERMEER é o pintor de todos os consensos e os enigmas que envolvem a sua obra e a sua vida asseguram os restantes ingredientes da admiração e curiosidade universais. Não foi preciso nenhum centenário para garantir a projecção do acontecimento; basta tratar-se da maior reunião de sempre de obras do pintor, tornada possível por oito anos de complexas negociações com dez museus e duas coleccões privadas, incluindo a casa real britânica.
Ao longo da sua curta vida (morreu aos 43 anos) terá pintado apenas 45 quadros. Dos 35 que hoje se conhecem foi possível juntar em Haia um total de 22 (ou 23, contando com uma obra de atribuição duvidosa). O único precedente aproximável data de há exactamente três séculos, por ocasião do leilão de 21 quadros que pertenceram ao impressor Jacob Dissius, de Amsterdão, e mesmo esse «record» foi agora ultrapassado. No entanto, ao contrário do que se tem escrito, esta não é exactamente a primeira retrospectiva de Vermeer, a qual teve lugar em Roterdão, em 1935. Mas seis dos 15 quadros então expostos eram-lhe incorrectamente atribuídos, o que dá bem a medida da atribulada constituição do «corpus» da sua obra.
Inversamente proporcional à escassez da produção é, desde há pouco mais de um século, a admiração imensa que envolve a redescoberta internacional de Vermeer, assente em paixões absolutas (para Proust, a Vista de Delft era a melhor de todas as obras primas), vários mitos (o do génio incompreendido no seu tempo, por exemplo), infindáveis especulações sobre o significado dos quadros, polémicas entre investigadores a respeito da legitimidade das atribuições e ainda múltiplos episódios mediáticos, como os do falsário Han van Meegeren, nos anos 30, alguns roubos famosos (o último, em 1990, foi O Concerto, de Boston, que continua desaparecido) e as apropriações exibicionistas de Dali nos anos 50.
Vermeer é ainda a «Esfinge de Delft» e cada um dos seus melhores quadros parece transportar um enigma idêntico ao do sorriso da Gioconda.
As mesmas interrogações são invariavelmente repetidas — o que torna a obra de Vermeer tão fascinante? qual é o segredo da sua atracção? — e as respostas, quando existem, andam sempre à volta da palavras mistério e milagre.
Como escrevia em 1932 o historiador John Huizinga, «todas as suas figuras parecem ter sido transplantadas da existência quotidiana para um cenário claro e harmonioso onde as palavras não têm som e os pensamentos não têm forma. As suas acções estão envoltas em mistério, como as das figuras que vemos em sonho.»
Ou, noutro passo, «estas mulheres com vestes amarelas, azuis ou verdes, que se adornam com pérolas, que recebem uma carta ou que tocam um instrumento musical, parecem pertencer a um semimundo desconhecido (...). Vermeer criou um mundo que é por metade imaginário, um ideal modesto de alegria de viver e de luxo, e transfigurou este mundo com a claridade e a harmonia inacreditáveis das suas cores, bem como com a simplicidade da sua alma ingénua. Em tudo o que pinta Vermeer flutua ao mesmo tempo uma atmosfera de recordações de infância, uma calma de sonho, uma imobilidade completa e uma claridade elegíaca, que é demasiado delicada para ser chamada melancólica. Realismo? Vermeer leva-nos para muito longe da tosca e nua realidade quotidiana».
Inúmeros outros comentários, repetidos até se transformarem em lugares comuns, sublinharam a estranheza absoluta das telas de Vermeer, ainda que estas se inscrevam por inteiro (e se destingam como excepções geniais) numa extensa tradição da pintura holandesa, que a interdição protestante das temáticas religiosas orientou para o mercado privado e para as representações da vida burguesa e as cenas domésticas: a «pintura de género» onde o gosto da descrição realista se conjuga com a anedota, a alegoria ou o pretexto moralista.
Vezes sem conta, às mesmas figuras dos quadros de Vermeer se reconheceu tanto a mais próxima intimidade familiar como uma distanciada impressão de eternidade que transcende o realismo do momento e do lugar, a serena tranquilidade dos gestos e uma surda tensão dramática à beira do paroxismo, a ausência de história e a presença de um desígnio moralizador, a exactidão fotográfica das cenas do quotidiano e uma abstracta depuração das composições aos elementos essenciais.
E se as obras resistem a todas as tentativas de «explicação», a vida de Vermeer não é menos insondável, como reafirma agora no catálogo Artur K. Wheelock, conservador de pintura barroca setentrional na National Gallery of Art de Washington e principal comissário da exposição:
«Ignoramos tudo a respeito dos seus mestres, da sua formação, da duração da sua aprendizagem, e também quanto à cidade, ou cidades, onde adquiriu o seu ofício. Nenhuma fonte escrita nos revela se era versado em teoria da arte ou se se interessava pela filosofia. Alguma vez deixou os Países Baixos para se dirigir a Itália, a França ou à Flandres e familiarizar-se com outras tradições artísticas? Talvez, mas não dispomos de nenhum indício sobre tudo isso.»
Também nenhum desenho, nenhuma obra gráfica, nenhum estudo ou obra inacabada chegaram até aos nossos dias. Nenhuma carta pessoal ou alheia nos ilucida sobre as relações com outros artistas ou com os coleccionadores das suas obras, nem qualquer documento conserva o mínimo pensamento do pintor a respeito da sua pintura. Não consta que Vermeer tenha aceite discípulos e nenhum biógrafo ou comentador contemporâneo se ocupou da sua carreira.
No entanto, Vermeer não foi um artista desconhecido no seu tempo e são até numerosos os registos de vários episódios biográficos. Foi tratado em vida como «o célebre pintor Vermeer» e conhecem-se os assentos do casamento, dos enterros de quatro dos seus quinze filhos, dos empréstimos que foi contraíndo e de algumas heranças, o inventários dos bens que deixou e os testamentos dos familiares. O suficiente para que o homem mantenha o pintor envolto em mistério.
VIDA SEM HISTÓRIA
COM 20 anos, a 29 de Dezembro 1653 (Johannes Vermeer fora baptizado em 1632), foi aceite como mestre pintor na Guilda de São Lucas de Delft, que ao tempo controlava a actividade dos pintores, escultores e negociantes de arte, e também dos artesãos do vidro e da olaria, impressores e bordadores — noutros centros mais evoluidos, em Itália e França, os artistas-artesãos já se tinham libertado dos grémios medievais e reuniam-se em academias sob protecção régia. Sabe-se que Vermeer não dispunha de meios para pagar a jóia requerida, que só foi saldada por inteiro dois anos e meio depois, mas ignora-se onde e com quem cumpriu os seis anos de aprendizagem obrigatória, eventualmente abreviados pelo facto do pai ter sido negociante de quadros inscrito na mesma corporação, actividade que Vermeer, aliás, acumulou com a pintura.
Delft era então uma pequena cidade que gozava da notoriedade histórica de ter sido a primeira capital das Sete Províncias protestantes revoltadas contra o domínio espanhol, mas perdera importância a favor de Haia e estava prestes a entrar em decadência. Nos meados do século, embora apenas por uma década, foi um dos centros do florescimento da pintura holandesa e aí trabalharam Carel Fabritius (um famoso discípulo de Rembrandt, morto em 1654) e também Gerard Ter Borch, Pieter de Hooch e Jan Steen, três dos mais notáveis pintores de cenas do quotidiano.
A influência destes artistas terá sido determinante para que Vermeer passasse de um primeiro período de pinturas de temas religiosos e mitológicos, de inspiração italiana, do qual se expõem as três obras conhecidas, para os mais caracteríticos quadros com personagens situados num interior doméstico. Por volta de 1660, porém, aqueles pintores procuraram outras cidades de mais favorável mercado — um exposição paralela que se apresenta em Delft é uma excepcional oportunidade para situar Vermeer no seu meio e encontrar alguns outros grandes mestres menores.
Por duas vezes Vermeer foi eleito síndico da sua guilda, em 62-63 e 70-71, e sabe-se também que a fama que grangeara fez com que viajassem até Delft um diplomata francês, em 1663, que se surpreendeu com o custo elevado dos seus quadros, e, em 1669, um jovem e rico amador, o qual deixou anotado no seu diário que «a parte mais extraordinária e mais curiosa da sua arte consiste na perspectiva». Em 1667, Vermeer fora elogiado num poema de Arnold Bon publicado por Dirck van Bleyswijck na sua Descrição da Cidade de Delft, como o digno sucessor do já referido Carel Fabritius. Um outro documento, de 1672, cita uma deslocação a Haia para julgar a qualidade de 12 pinturas tidas por italianas: tratava-se, disse, de «objectos sem nenhum valor, quadros de execrável qualidade».
A presença de obras de Vermeer em inventários contemporâneos de colecções e de vendas encontrados em Haia, Amsterdão e Antuérpia são outros dados que confirmam a notoriedade do pintor, desmentindo o mito romântico do génio solitário e incompreendido. Mas o século XVIII iria ser fatal para a memória póstuma do pintor de Delft: o principal livro de referência sobre o «Século de Ouro», a Vida dos Pintores Holandeses de Arnold Houbraken, de 1718, apenas o nomeia sem fazer qualquer comentário; em seguida, os seus quadros, embora sempre presentes com destaque nos catálogos dos leilões, vão sendo cada vez mais confundidos com os de outros artistas.
A redescoberta de Vermeer data de meados do século XIX e deve-se ao francês Théophile Thoré, um republicano radical exilado depois da Revolução de 1848, partidário da «arte pelo homem» contra «a arte pela arte» e autor de uma primeira monografia (1866) onde se defendia o pintor como expoente máximo da «pintura democrática» holandesa, aplicada na descrição dos ambientes e da vida dos cidadãos comuns. Thoré identificava nada menos de 73 obras de Vermeer no seu inventário, abrindo assim um vasto campo para as investigações que se iriam suceder.
Em 1870, A Rendeira foi adquirida pelo Louvre e fazia crescer rapidamente a celebridade internacional de Vermeer, promovido do total desconhecimento para o primeiro plano ocupado por Rembrandt e Franz Hals. Não por acaso, a sua fama era contemporânea da difusão da fotografia (os Goncourt falariam de «daguerreótipo animado pelo espírito» a propósito de A Ruela) e também da afirmação do impressionismo, ao qual o podiam associar o interesse pelos efeitos plásticos da luz e os temas banais do quotidiano. Vermeer revelava-se então, como hoje, surpreendentemente moderno.
Entretanto, no mesmo ano de 1653 em que se estabelecera como pintor, Vermeer casou-se com Catharina Bolnes, oriunda de uma família mais abastada e católica, o que o levou certamente a desligar-se da formação calvinista da sua família. Sabe-se que passou a viver pouco depois em casa da sogra e que por diversas vezes teve de recorrer a empréstimos, acabando por morrer na penúria, em 1675 — o mesmo acontecera com Rembrandt e Hals.
Dois anos mais tarde, cercada pelos credores, a viúva faria do relato da morte de Vermeer o mais extenso dos seus documentos biográficos: «Durante a larga e ruinosa guerra com a França, não somente não pôde vender a sua arte como também, para seu grande prejuízo, lhe ficaram nos braços os quadros de outros mestres com que fazia comércio. Em consequência, e por causa da grande carga dos seus filhos, não tendo nenhum meio propriamente seu, caíra em tal frenesim e decadência que em um dia ou dia e meio passou de um estado de boa saúde para a morte».
São outros dados que apenas adensam o segredo à volta do pintor. Apesar da pobreza e da sua reconhecida mestria, Vermeer nunca terá pintado mais do que dois ou três quadros por ano, usava alguns dos pigmentos mais caros do seu tempo, o que os outros pintores só faziam em obras de encomenda, e nunca terá procurado trocar o meio fechado de Delft por outras cidades mais prósperas.
QUADROS RESTAURADOS
Que traz de novo esta retrospectiva? Uma revisão da cronologia da obra de Vermeer, que antecipa as datas de alguns quadros (A Ruela, A Leiteira, Rapariga com Copo de Vinho) e, no final, comprova um congelamento maneirista do estilo nas pinturas dos anos 70, a partir da Alegoria da Fé. A defesa da autoria de uma tela só atribuída em 1986, uma Santa Praxeda que é cópia de uma pintura italiana (e uma nova charada fica assim por resolver, uma vez que não há sinais de qualquer viagem de Vermeer e o original, entretanto, foi localizado em Ferrara) — datada de 1655 ficou a ser a sua obra mais antiga, relacionável com Cristo em Casa de Marta e Maria e Diana e as Companheiras, as duas outras obras conhecidas do período de formação. E a autenticidade da Rapariga com Chapéu Vermelho, escolhida para o cartaz oficial, foi reafirmada, em oposição ao parecer anterior de A. Blankert, embora se conceda a atribuição a um suposto «círculo de Vermeer» de um pequeno painel simétrico e dominado por outro chapéu exótico, a Rapariga com Flauta.
Entretanto, reavivou-se a polémica entre os especialistas americanos e holandeses a respeito dos processos usados por Vermeer para a construção da perspectiva, os primeiros insistindo no emprego da «camera oscura», os segundos defendendo a criação da ilusão espacial pela utilização de um sistema de triangulações entre um ponto de fuga marcado na superfície do quadro e dois pontos de distância situados no exterior deste, a igual distância e sobre uma mesma linha do horizonte. 15 pontos de fuga já foram fisicamente detectados nas telas de Vermeer, em orifícios resultantes da aplicação de um prego, do qual penderia um fio usado para definir a composição.
A querela parece algo bizantina, já que ambos os procedimentos eram correntes numa época em que as regras da perspectiva se tinham tornado há muito matéria regulada por tratados impressos e exercitada pelos pintores. Mais do que a perfeição ilusionista e o virtuosismo artificioso, em que outros pintores se consumiam, distingue-se em Vermeer o inefável equilíbrio de uma composição tão rigorosa como despida de todos os elementos não essenciais à eficácia plástica e emociona do quadro (por vezes, é já Mondrian que se adivinha). É no uso de efeitos de desfocagem dos planos mais aproximados — a luz difusa das cabeças de leão que ornamentam as cadeiras para serem motivos da pintura, a fluidez gestual dos fios que saiem do saco de costura da Rendeira —, bem como na intensidade da cor e na condensação do espaço em torno da presença escultural das figuras, com a diferenciação quase fotografica da profundidade de campo, que o uso da câmara escura parece ter sido indispensável.
Contribuição maior desta retropectiva é, de facto, o restauro de sete das obras expostas, libertadas dos vernizes envelhecidos (ou deliberadamente enegrecidos), repintes póstumos e escamas deslocadas, tornando as cores mais claras e as luzes mais brilhantes, restabelecendo volumes e profundidades, deixando ver a imprecisão voluntária de alguns contornos, para além de acrescentarem dados significativos sobre os processos picturais de Vermeer. O uso da radiografia e da reflectografia revelou vestígios de importantes transformações das pinturas em curso de execução e, em especial, o apagamento de personagens, objectos e quadros dentro do quadro, confirmando a preocupação pela mais eficaz economia estrutural dos cenários. Essa depuração, certamente em resultado de uma muito lenta maturação de cada tela, sublinha que não é a representação realista dos ambientes e personagens que interessa ao pintor, mas o equilíbrio estrutural da construção, o domínio da luz e do espaço, e a recusa de todos os elementos anedóticos acessórios que abundam nas pinturas dos seus contemporâneos.
Por outro lado, tornou-se mais evidente que, se a produção é lenta, o pintor servia-se muitas vezes de escassos meios picturais e de processos que exigem rapidez de execução, como a frequente intervenção sobre a tinta ainda fluida. Os restauros confirmam a não utilização do desenho prévio, trocado pelo esboço com a cor, e tornam mais perceptível a variabilidade das texturas trabalhadas por empastamento ou por finas camadas transparentes, recriando os objectos com a matéria da pintura. São mais nítidas as passagens descontínuas do pincel, à distância do gosto comum pelos meticulosos acabamentos, as delicadas transparências que tiram partido da fusão da cor superficial com a «cor morta» subjacente, e também a técnica rara das pinceladas finais quase pontilhistas..
Restaurada, a Vista de Delft ganha uma outra claridade atmosférica, acentuando-se a sua sólida profundidade espacial pela variação da luminosidade que se estabelece entre as faixas banhadas pelo sol e a zona intermédia de luz coada pelas núvens escuras, em contrastes que fazem multiplicar as tonalidades das paredes e telhados da cidade, enquanto as sombras da muralha sobre o canal revelam novos tons azúis. Examinadas as superfícies da pintura, detectou-se o uso de areia misturada com os pigmentos, aplicada nas camadas finais para acentuar a rugosidade empastada das velhas paredes, enquanto brevíssimas pinceladas multiplicam reflexos e pontos de cor. São efeitos de uma surpreendente e intemporal modernidade que Elie Faure descrevera de modo inultrapassável, já em 1921, fazendo ancorar muito do mistério da obra de Vermeer na densidade única da sua matéria pictural:
«Nunca se penetrou tão fundo na intimidade da matéria. Cristalizando-a na sua pintura, deixando-lhe o seu grão, a sua espessura, a sua surda vida interior, Vermeer multiplicou-lhe a qualidade por todo o brilho límpido e a transparência quente que ela toma através do mais claro olhar de pintor que provavelmente algum dia existiu. O acordo é tão profundo entre ela e as harmonias que a acompanham, que estas parecem vir de dentro, parecem nascer espontaneamente da massa dos objectos, como um fruto que ganha cor à medida que amadurece lhe o sumo. A cor é moldada no tecido das coisas (...)»
Van Gogh rendera-se à estranheza de uma paleta em que dominava a combinação do amarelo limão com o azul pálido e o cinzento pérola. Para os que preferem a ficção à pintura, as cenas galantes que se mudam, mais tarde, em convívios musicais, os personagem suspensos de um gesto, ou de uma carta, que se lê ou escreve, os retratos idealizados, oferecem outros tantos pretextos de infinita divagação literária. Os códigos da iconologia e das moralidades fornecem as chaves interpretativas sobre os perigos da luxúria e os méritos da temperança — uma pérola pode sempre ser um emblema da vaidade ou da pureza. Mas a eloquência das cores de Vermeer convida ao silêncio.
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