Centenário
Amadeo: ida e volta
Expresso Actual de 11-11-2006
Cem anos depois da partida para Paris, a Gulbenkian vai mostrar a obra de Amadeo de Souza-Cardoso em diálogo com os contemporâneos e dar a conhecer inéditos e novas pistas sobre a sua breve carreira
«Antes da Corrida» de 1912, comprado na América durante o «Armory Show» (1913)
Amadeo partiu para Paris há exactamente um século - cumpre-se no dia 14, e a data é assinalada com a inauguração da exposição que na Fundação Gulbenkian o mostrará inserido no «Diálogo de Vanguardas» do seu tempo. Mas, de facto, é da América que ele agora chega, com três importantes pinturas nunca vistas em Portugal, duas delas perdidas durante muitas décadas, e, principalmente, com um itinerário mais bem conhecido depois das investigações norte-americanas sobre o êxito da sua participação na exposição do «Armory Show» que em 1913 apresentou a arte moderna europeia em Nova Iorque, Chicago e Boston. Foi aí que se mostraram os quadros Chateau Fort (Fortaleza), mais tarde doado pelo crítico Arthur Jerome Eddy ao Art Institute of Chicago, Return from the Chasse (Regresso da Caça), localizado em 2000 no Museu de Michigan, e Avant la Corrida(Antes da Corrida), descoberto este ano e adquirido para a colecção do Centro de Arte Moderna.
Falecido aos 30 anos no isolamento português do fim da I Guerra Mundial, deixando interrompida uma obra aceleradamente instável e avessa a rígidas classificações de estilo, Amadeo foi sempre visto como a maior das promessas mas também como dificilmente integrável nas ortodoxias parisienses que por muito tempo balizaram a história da arte; as aproximações aos cubismos, que foram diferentes entre si, levavam-no a ocupar uma posição dependente e por isso menor, enquanto aos rasgos de originalidade faltava a maturação de um percurso mais longo. Uma forma muito nacional de inferioridade foi menorizando o que se apresentava como mais pessoal e interpretando como influências sofridas (de Modigliani, de Brancusi, por exemplo) o que era cumplicidade e concorrência criativa, ou mesmo influência exercida sobre outros.
Amadeo tivera uma presença notada entre os mais de 300 participantes, com mais de 1.600 obras, na «International Exhibition of Modern Art» que em 1913 começou por se apresentar em Nova Iorque, com mais de 75 mil visitantes, no arsenal («armory») desocupado do 69.º Regimento de Infantaria - daí a designação «Armory Show» por que ficou conhecida. Das oito obras que mostrou, sempre bem colocadas em excelentes companhias, sete (seis telas e uma aguarela) foram vendidas até ao fim da itinerância que continuou em Chicago e Boston, adaptada em menores formatos. O nome do pintor português figurava em 30.º lugar na lista de 36 artistas que o cartaz de Nova Iorque anunciava - depois de Ingres, Delacroix, Manet, Degas, Cézanne, Renoir, etc, e antes (sem ordem inteligível) de Gauguin, Archipenko e Bourdelle. Parte da projecção dada a Amadeo (que incluiu a reprodução em postal de Antes da Corrida, e também de Pêcheur ou Fisherman/Pescador, este nunca mais localizado) resultava da admiração que lhe votava o pintor e crítico norte-americano Walter Pach, agente na Europa dos organizadores da mostra. A correspondência depois trocada com Amadeo (até 1917) veio revelar novos projectos de exposição em Nova Iorque, que a sua viúva, Lúcia, tentou concretizar ainda em 1921.
Só em 1999 essa ambição de voltar a expor na América viria a concretizar-se com «At the Edge. A Portuguese Futurist, Amadeo de Souza Cardoso» (No Alvo…), inaugurada em Washington na Carcoran Gallery of Art, e levada em 2000 ao Arts Club de Chicago e à AXA Gallery de Nova Iorque, com organização em Lisboa do Gabinete de Relações Internacionais do Ministério da Cultura. Essa foi certamente a mais importante das suas retrospectivas, pela projecção alcançada junto da crítica norte-americana, e também a mais decisiva, pela reorientação dos estudos sobre o período inicial da obra de Amadeo, que fora sempre o mais incompreendido e desvalorizado pela crítica nacional, embora tenha sido o que lhe assegurara o reconhecimento internacional. Responsável pela iniciativa, Jack Cowart, director do Museu Corcoran, e Laura Coyle levaram a cabo ou dinamizaram investigações modelares (também de Kenneth E. Silver e Rosemary O’Neill) sobre as relações artísticas de Amadeo, sobre as obras que expôs em vida e sobre a sua recepção pública e crítica. Para além de poderem ter acesso aos espólios documentais conservados por Paolo Ferreira e pela viúva do pintor, uma direcção de trabalho menos especulativa e mais sustentada em fontes materiais fez reorientar o conhecimento do pintor português. Internamente, a sua valorização muito tardia, a partir da década de 50, e a posterior investigação ficara sempre prejudicada pelo relacionamento difícil entre o pioneirismo crítico de José-Augusto França e a tutela do SNI, através de Paolo Ferreira, sobre a obra e a documentação de Amadeo.
Com a dominante informação parisiense dos anos 50, quando se julgava o abstraccionismo uma definitiva libertação ou fatalidade, os primeiros estudos sobre Amadeo diminuíam o trabalho decisivo dos anos 1911 e 12, que lhe granjeara notoriedade em Paris e no «Armory Show», como «um decorativismo fantasista e literário, com castelos e figuras quase heráldicas», ou um «bizantinismo estilístico, ligado a uma maneira do princípio do século». Falou-se demasiado em Arte Nova, cerâmica persa e preciosismo oriental, como se Amadeo tivesse voltado as costas às tendências e inovações do seu tempo. Muito pelo contrário, as obras desses anos velozes, de 1910 a 1912, com os desenhos publicados em álbum (XX Dessins, que continuaram a expor-se na Alemanha até 1913-14), o manuscrito iluminado de La Légende de Saint Julien L’Hospitalier, deixado inédito, os quadros que vão do Salto do Coelho e Os Galgos a O Príncipe e a Matilha, Antes da Corrida e Cavaleiro, articulam informação da maior actualidade e participam da inquieta busca de novos e diferentes caminhos, com uma muito marcada individualidade criativa.
Numa das paredes do gabinete de trabalho de Helena de Freitas, a responsável pela «operação» Amadeo, alinham-se fotografias que dão pela primeira vez um pleno sentido a uma passagem de uma carta ao tio Francisco Cardoso, em Manhufe, datável de 1910, de Bruxelas, onde passou três meses: «Passo os meus dias com alguns pintores primitivos que são os meus ídolos. A eles devo parte da grande evolução que tem atravessado o meu espírito (…) os góticos são a alma intensa de uma religião elevada. (…) Não se faz uma obra de arte sem uma grande emoção e ninguém como eles possui emoções mais intensas.»
São góticas as arquitecturas do Castelo (CAM) e da Fortaleza e Marina de Pont l’Abbé, de 1912 (Art Institut of Chicago), mas as suas fragmentações espaciais que multiplicam os pontos de vista, os ritmos angulares ou as torções esféricas dos volumes testemunham uma observação inteligente de processos cubistas. Bem diferentes dos interiores góticos da catedral de Saint Séverin que em 1909-10 tinham interessado a Robert Delaunay para analisar as relações entre luz e arquitectura com uma disciplina cezanniana, as obras de Amadeo distanciavam-se da modernização dos realismos (e em especial das superficiais geometrizações das formas) com uma muito livre imaginação ficcional que algo terá a ver com a conjunção dos mestres italianos (Benozzo Gozzoli, Uccello, etc.), por vezes apropriados literalmente, com a admiração por Henri Rousseau, celebrado postumamente no Salão dos Independentes de 1911 entre duas galerias de cubistas. Com as suas profundas diferenças, Antes da Corrida e Regresso da Caça definem outras direcções de trabalho, apontadas para a interrogação do movimento e da força emotiva da cor, sempre com a urgência que Amadeo imprime à sua pintura.
Nos mesmo anos, a ligação a Modigliani e Brancusi é uma pista importante do quadro das relações parisienses. Se em Portugal se falou da «influência de Brancusi através de Modigliani», como se escrevia ainda em 1987, outra seria a posição dos estudos sobre a obra do escultor romeno. No catálogo da sua retrospectiva no Centro Pompidou em 1995 (e no Museu de Filadélfia no mesmo ano), Friedrich Teja Bach veio propor a origem em desenhos de Amadeo de algumas esculturas de Brancusi, com ilustrações em apoio da sua tese que estabelecem o caminho desde o desenho Le Bain des Sorcières (do álbum XX Dessins) até à escultura La Sorcière (1916-1924), tal como sucederia desde o desenho Mauresques até Princesse X, de 1915-16, através da redução progressiva de pormenores das figuras - ao mesmo tempo que o autor faz uma contribuição essencial sobre a noção de redução em Brancusi, distinguindo-a da busca da «forma pura ou abstracta».
Outra contribuição estrangeira, que agora se publica no catálogo de «Diálogo de Vanguardas», é a de Joachim Heusinger von Waldegg, orientada para a relações de Amadeo com a Alemanha, com o expressionismo e em especial com o pintor Otto Freundlich (1878-1943). Aí se abordam directamente as dificuldades de relacionamento com a obra de Amadeo por ela não se integrar disciplinadamente em qualquer das correntes definidas do modernismo (o que ainda em 2001 lhe valeria a classificação de «camaleão de Amarante» num jornal alemão), ao mesmo tempo que se percorre um quadro de referências diferente dos modelos formalistas dominantes, para o qual, como diz J. von Waldegg, «a cor e forma não são apenas entendidas como valores pictóricos, mas estão investidos de emoções e conteúdos».
Passado quase um século, a obra de Amadeo não está arrumada na história, continua a ser iluminada por novas informações e oferecida a diferentes explorações. Com a exposição que o situa entre os seus pares abre-se um caminho que irá prosseguir com a publicação da fotobiografia e do catálogo «raisonné», contando com novas condições de rigor e, espera-se, de contacto permanente com as suas obras.
"Parte da projecção dada a Amadeo (que incluiu a reprodução em postal de Antes da Corrida, e também de Pêcheur ou Fisherman/Pescador, este nunca mais localizado)"
https://www.olx.pt/anuncio/amadeo-souza-cardoso-rarissimo-postal-1913-armory-show-nova-york-IDFdUYA.html
Posted by: João Correia | 07/05/2020 at 14:55