EXPRESSO Actual de 18-02-2005
"A mercadoria da festa"
Uma feira projectada como espectáculo cultural de massas
Desenho de Rui Carvalho (Porta 33, Funchal)
O que mais importa em Madrid são as exposições do Museu Thyssen sobre o movimento expressionista Die Brüke (1905-1913) e do Rainha Sofia sobre Alfred Stieglitz «e o seu círculo» (Nova Iorque, 1905-1930). São co-produções internacionais de máxima qualidade dedicadas a momentos localizados de renovação artística a que raramente se tem acesso fora dos museus alemães e norte-americanos. Há também «As Paixões» de Bill Viola na Caixa, que revisitam em lentíssimas imagens digitais com «dimensão mística e espiritual» a representação das emoções na pintura medieval e renascentista; é uma novidade muito consensual, mas menos interessante que os originais. E também que a passagem do academismo à arte moderna feita pelo valenciano Ignacio Pinazo (1849-1916), que se mostra na Fundação Mapfre, na continuidade de decisivas revisões da história por fora dos lugares comuns.
Tudo isso se poderá ver até Maio e faz de Madrid a nossa capital. A feira é um pretexto que atrai muitos milhares de portugueses, mas no mercado internacional da arte é só um acontecimento periférico. É indispensável para as galerias nacionais que aí ganham credibilidade interna e podem ampliar a carteira de clientes às instituições espanholas, enquanto algumas delas vão ensaiando viagens às feiras que contam (Basileia, Colónia, Londres, Nova Iorque, Miami, etc.).
A Arco é a feira de arte mais concorrida do Mundo (200 mil visitantes em 2004) e também a mais mediatizada, mas esse tipo de êxito, que é preciso moderar com bilhetes cada vez mais caros (30/24 €, conforme os dias, com descida para cerca de 180 mil), tem muito a ver com o crescimento das indústrias do ócio e o encanto dos centros comercias, por onde a democratização e a banalização da arte seguem de mãos dadas. A receita nasceu há mais de 20 anos com o investimento político de Madrid numa estratégia que visou acelerar a renovação cultural, a sustentação das infra-estruturas artísticas e o reforço da centralidade da capital, mas à custa de confundir o certame mercantil com um espectáculo cultural de massas. O êxito e os limites desta fórmula única de feira mais institucional que comercial são incansavelmente discutidos.
Carlos Amorales (México), «Skull II Poster», serigrafia
Os grandes diários de Madrid instalam pavilhões ao lado dos de museus e de governos das regiões, também expõem artistas e editam suplementos e páginas diárias que adaptam os inúmeros e muito competentes «press-releases» da organização, com tudo o que se deve dizer sobre pintura, fotografia, escultura, vídeo ou arte electrónica na Arco, a arte «com sabor latino» ou da Ásia, o mercado internacional e o espanhol. Neste domínio fabricam-se versões («Optimismo e lucros numa temporada em crescimento» e «Sinais de esperança e consolidação», respectivamente) que pintam de cor de rosa a retracção, com crise ou sem ela, do coleccionismo privado, enquanto os coleccionadores profissionalizados e especulativos seguem na peugada das dinâmicas institucionais ou as impõem.
Depois, cumprido o papel de eco e parte do sistema, alguns textos podem passar à análise, ou só à ironia. Sobre as insuficiências do coleccionismo espanhol, que é dominado pelas instituições públicas, empresas e seus consultores-comissários - inúmeros museus, fundações e governos comprometem-se a antes comprar na Arco, dos 300 mil € do novo MUSAC, o «museu do séc. XXI» a abrir em León, em Abril, aos 15 mil da Câmara de Biscaia, para além das mais confidenciais verbas dos pesos-pesados (mas o coleccionismo sério faz-se ao longo do ano frequentando os ateliers e as exposições). Sobre a máquina que ergue artificialmente o internacionalismo da feira, com excessiva presença, algo mais de um terço, de espaços comissariados por críticos-directores em «Projects Rooms» e «Novos Territórios», onde cabem a «nova pintura» inglesa, galerias convidadas do Canadá, da Rússia, orientais, latinos e bálticos - mas quase nunca conseguem atrair a Madrid quem faz a lei ou a novidade nas feiras principais. Sobre o selecto programa de comidas e festas «por rigorosa invitación» que se oferecem a 200 coleccionadores e outras tantas figuras VIP do sistema internacional, liberalmente convidados, muitos deles a pretexto de um impressionante programa de conferência (o «foro de expertos»), que incluía Norman Rosenthal, o conde Panza di Biumo, Robert Storr, Linda Nochlin, Borys Groys, Peter Sloterdijk e dezenas de directores, comissários, professores, críticos e artistas de todo o mundo -, mas, por sinal, ninguém de Portugal.
Entretanto, já se observou que a táctica voluntarista da Arco foi, afinal, servindo de modelo para as feiras de primeira linha, onde a promoção da novidade (a arte «emergente») e os programas sociais para comissários e os coleccionadores mais poderosos unem os donos do mundo da arte num mercado centralizado e manipulado.
A feira e a região de Múrcia (!) acabam de coeditar o livro Arte y Mercado en la España Democrática, do professor e galerista Nacho Ruiz, onde se faz a história oficial desta «festa da arte contemporânea» e de algum coleccionismo corporativo (empresarial) que lhe está associado, formulando a conclusão óbvia que «o sistema da arte espanhola gira em torno da Arco». É precisamente essa situação que foi criticada num seminário de Alberto López Cuenca no Museu de Barcelona (Macba), retomando em estilo adorniano os argumentos antes formulados por artistas como Antonio Saura ou críticos acusados de conservantismo.
«A Arco é um sintoma do que se vem passando na cena artística internacional desde os anos 70, que, por sua vez, é produto do tardocapitalismo que transforma uma indústria dedicada à produção noutra centrada no ócio», citou o «El País». Dizendo que «a cultura deixa de ser uma ferramenta de crítica simbólica e transforma-se em mercadoria», o professor denuncia a «Arco como fantasmagoria» (www.macba.es e www.desacuerdos.org), defende que a feira se remeta ao seu papel comercial e que o lugar central no sistema deve estar nas mãos dos museus, em nome de uma caducada concepção da «modernidade como resistência cultural». O debate continuará, até porque os museus já se tornaram parte da mesma indústria.
A Arco teve este ano o México como país convidado, na sequência de grandes representações de iniciativa oficial que têm percorrido o (primeiro) mundo e também de um «boom» de mexicanos nas exposições internacionais, como já acontecera com os pintores da «neomexicanidade» dos anos 80 e que estará já a passar de moda na sua nova versão neoconceptual e cosmopolita. À volta de 21 galerias distribuiu-se pela cidade um enorme conjunto de exposições, individuais de Gabriel Orozco e Carlos Amorales ou colectivas, que vão dos jovens artistas de ambos os lados da fronteira de Tijuana aos retratos barrocos das «Monjas Coroadas» (a abrir ainda na Academia de San Fernando), passando pela «imaginária fotográfica» que alimentou as «foto-historietas» dos anos 50-70 com as aventuras do Santo, El Enmascarado de Plata e as novelas de «Capricho».
Fotografia do checo Miroslav Tichy (Judin, Zurique)
A capacidade de iniciativa do órgão estatal mexicano para a cultura, que dá pelo curioso nome de Conaculta, é inesgotável. Por outro lado, se a vocação latino-americana parecia a pista mais viável para consagrar a dimensão internacional da Arco, o Atlântico não se atravessa facilmente e os norte-americanos podem servir-se melhor na nova feira de Miami (organizada, aliás, pela de Basileia). Em 2007 será a vez do Brasil, depois de um intervalo austríaco.
Quanto ao que se expunha no «Recinto Ferial», podem escolher-se dois casos de radical singularidade num universo em que impera a produção de mercadorias que cumprem a programação das academias e dos museus-laboratórios - não é o facto de as obras serem vistas como investimento que as perverte, mas a transparência com que essa lógica está desde o início inscrita nas infinitas pequenas variações sobre o que já antes se viu ou se fez.
O primeiro permitiu o reencontro com o checo Miroslav Tichÿ, que Harald Szeeman tinha dado a descobrir na Bienal de Sevilha e agora a galeria Judin de Zurique expunha como «project room», antes de se iniciar na respectiva Kunsthaus a digressão internacional da primeira retrospectiva. Nascido em 1926 em Brno, antigo pintor de vanguarda caído numa vida de marginal, fotografou para si próprio, como um «voyeur» compulsivo - entre os anos 60 e 80, com aparelhos construídos por ele mesmo -, as mulheres que perseguia e foram o seu quase único tema. Fotografias extremas, furtivas, registos imprecisos em papéis de acaso, às vezes desenhados, de um erotismo cru, revelam-no como o mais independente dos artistas.
Depois os desenhos do madeirense Rui Carvalho (n. 1964), reunidos na Porta 33 mas habitualmente vendidos nas ruas de Zurique, Berlim ou Lisboa, noutro percurso à margem onde a proximidade com alguma Arte Bruta nos leva também ao contacto com mundos pessoais para os quais a expressão artística é, antes de tudo, uma necessidade interior.
Dentro (e fora) das 15 galerias nacionais, destaque-se também Joana Vasconcelos, que mostrou novos objectos com envolvimentos em crochet (uma televisão e dois lavatórios), na brasileira Casa Triângulo e na espanhola Elba Benítez, e esteve sem surpresa na 111. Mais as pinturas dos muito jovens Nuno Viegas e Paulo Damião na Arte Periférica, com percursos originais e talentosos, talvez já sob a ameaça da facilidade e do seu êxito. E as grandes telas de Bruno Pacheco, de uma pintura de estridências coloridas, mas contida, como é de conveniência, na apropriação fotográfica e na neutralidade pictural - multiplicaram-se na Lisboa 20 e na Quadrado Azul, todas esgotadas (o tempo é propício aos baixos preços dos jovens artistas, mas também à sua desaparição se não se tornam logo vedetas internacionais). E ainda um grande desenho de Cristina Lamas na primeira dessas galerias, a presença repetida de Pedro Calapez e José Pedro Croft, a acompanhar trânsitos institucionais, ou as vendas de João Louro e Miguel Palma, nas galerias Cristina Guerra e Graça Brandão, para a Fundação Arco, e de João Penalva para a Fundação Coca-Cola, na Filomena Soares, escolhidos dentro dos estereótipos correntes.
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Expresso Actual de 05-02-2005
"Um Arco para Madrid"
Além da feira, o México, Stieglitz e Die Brucke
São 15 as galerias portuguesas que vão participar na próxima edição da feira Arco, que decorre a partir de dia 10, até 14, em Madrid: Ara, Arte Periférica, 111, Graça Brandão, Jorge Shirley (em estreia na Arco), Lisboa 20, Mário Sequeira, Pedro Cera, Pedro Oliveira, Presença, Quadrado Azul, mais a Porta 33, do Funchal, que regressa para apresentar o madeirense Rui Carvalho, e ainda Cristina Guerra e Filomena Soares, que também incluem no sector «Project Room» representações individuais, respectivamente, da brasileira Rosângela Rennó e de Francisco Queiroz. Mais a Bores & Mallo, com origem em Cáceres.
O México é este ano o país convidado, com 18 galerias e um vasto programa paralelo noutros espaços da capital. No total, comparecem na 24ª edição da feira 289 galerias, sendo cerca de 70% estrangeiras (203), com destaque para as 32 norte-americanas e as 36 da América Latina e Caribe.
Como novidades da orgânica da feira anunciam-se dois novos sectores comissariados: «The Black [email protected]», que reunirá 16 galerias especializadas em arte electrónica (vídeo, Internet, etc.), e «Painting Only», com quatro galerias de Londres sintonizadas com mais uma vaga de «regresso» à pintura. Entretanto, com os programas «Project Room» e «Novos Territórios», este dedicado a obras de artistas com menos de 40 anos, fica assegurada a presença de um total de 102 espaços galerísticos seleccionados por comissários ao lado da secção geral com 197 galerias.
O México apresenta noutros locais um conjunto de exposições, que inclui, no Museu Rainha Sofia, um panorama sobre a arte das duas últimas décadas, de Francisco Toledo a Francis Alÿs, entre 41 artistas de diferentes gerações, mais uma grande instalação de Gabriel Orozco no Palácio de Cristal, uma mostra de Carlos Amorales na Casa de América e outra sobre a fotomontagem e mais usos da imagem fotográfica nos anos 40-60 na sala Canal Isabel II. Em paralelo, a gal. Elba Benítez exibe a vídeo-instalação de Chantal Akerman From the Other Side, concebida para a Documenta de Kassel de 2002, sobre a fronteira com os Estados Unidos.
À margem da Arco, o calendário de Madrid oferece a instalação vídeo de Bill Viola The Passions, revisitação da pintura tardomedieval em ecrãs digitais de pequeno formato, vinda do J. Paul Getty Museum para as galerias de La Caixa. Na Fundação Juan March, «Contemporânea» reúne 16 artistas e 34 obras, datadas de 1968 a 2004 em diferentes «media», de Araki a Jeff Wall, passando por Bruce Nauman e Luc Tuymans, oriundas do Kunstmuseum Wolfburg, da Alemanha.
Recuando no tempo, o Rainha Sofia propõe a importante mostra «Nova Iorque e a Arte Moderna - Alfred Stieglitz e o seu Círculo (1905-1930)», em co-produção com o Museu d’Orsay, sobre o fotógrafo norte-americano, a revista «Camera Work» e as suas galerias. Outra oportunidade a não perder é mais uma das grandes revisões históricas promovidas pelo Museu Thyssen, com extensão à Fundação Caja de Madrid, dedicada ao nascimento do expressionismo alemão, no centenário da formação do grupo Die Brücke (A Ponte), em Dresde. É um longo itinerário temático com cerca de 200 obras do movimento de Erich Heckel, Kichner e Schmidt-Rottluf, a que se uniram, até 1913, Pechstein, Otto Müller e Emil Nolde. E ainda, na Fundação Mapfre, o valenciano Ignacio Pinazo (1849-1916) e os inícios espanhóis da pintura moderna.
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