Expresso Actual 19-08-2000
O Apocalipse de Anthony Caro
«Sem Piedade»
VISITA-SE Bilbau por causa do Guggenheim de Frank Gehry, mas o velho Museo de Bellas Artes não lhe fica atrás quanto à importância da programação. É o que sucede este Verão, com a apresentação de O Juízo Final de Anthony Caro (até de 30 Setembro). Obra cimeira na carreira de um dos grandes escultores do século XX, é uma instalação de 25 esculturas, ou episódios escultóricos, que se inspiram na mitologia grega e na Bíblia para construírem um impressionante comentário sobre a guerra e os horrores do presente, como uma visão actualizada do Apocalipse.
Mostrado pela primeira e única vez na Bienal de Veneza de 1999 (então referido no EXPRESSO-Revista, de 25-IX-99, por artigo de Jorge Leitão Ramos), O Juízo Final exibe-se agora em Bilbau antes de ser definitivamente instalado no Museu Würth (do nome de uma empresa siderúrgica), em Künzelsau, Alemanha, a inaugurar em 2001.
Se se acrescentar que no mesmo edifício se apresenta também, em colaboração com a Fundação «la Caixa», uma completíssima retrospectiva de Rodin, com perto de uma centena de bronzes e mármores, mais desenhos e fotografias de época, torna-se ainda mais surpreendente a dimensão das actividades do Museu de Bilbau - e nas suas instalações, recentemente renovadas, há ainda espaço para a apresentação de uma escolha da colecção própria em torno do tema do retrato, e também de uma «pequena» mostra de pinturas de Morales a Murillo, a propósito de Las Lágrimas de San Pedro, de Velázquez, e mais outra exposição sobre a arte e a tradição do damasquinado espanhol do século XIX. Qualquer comparação com um museu ou cidade portuguesa só pode ser vista como chocante.
A monumental instalação de Anthony Caro é um dos mais vibrantes desmentidos das teses que identificam a segunda metade do século como um contínuo e talvez irreversível processo de decadência da arte. Na sequência das vastas instalações escultóricas que vem realizando desde meados dos anos 80 (After Olimpia, 1986-87, e The Trojan War, 1993-94), o velho artista inglês, nascido em 1924, volta a colocar a ambição da escultura à altura dos frisos dos templos helénicos ou dos ciclos narrativos das catedrais, e é com a mesma impressão sentida perante as obras máximas que se percorre a galeria sombria onde se alinham os elementos ou episódios da sua obra.
Mais do que a síntese de uma carreira consagrada desde os anos 50, que constantemente foi reorientando as suas direcções de pesquisa, O Juízo Final, em que trabalhou entre 1995 e 99, é um surpreendente ponto de chegada na obra de Anthony Caro, culminando a evolução da sua arte e também da escultura do século XX, talvez com uma importância idêntica à que teve, um século antes, o projecto da Porta do Inferno de Auguste Rodin. É aliás na sequência da mostra deste que o visitante acede à galeria de Caro e o «confronto» sustenta-se plenamente.
Segundo as cartilhas do evolucionismo artístico, Caro figura na história da escultura como expoente do formalismo abstraccionista, ilustrando as exigências da pureza não referencial do modernismo teorizado por Greenberg. Com ele, na sequência directa do americano David Smith e na linha da escultura construída que vinha do cubismo e de Picasso, encerrava-se no início dos anos 60 a tradição humanista que se veiculava através da representação da forma humana, a qual era ainda superiormente defendida por Henry Moore (de quem foi assistente) e continuara ainda numa primeira fase da obra do próprio Caro.
Cortando qualquer relação explícita com o mundo material, renunciando à ilusão, a escultura abstraccionista reduzia-se à afirmação da essência do seu «medium» como especulação plástica auto-referencial: a construção ou desenho de formas puras, num exercício de estrita visualidade que como tal se bastaria, guiado pelo sentido do ritmo, do equilíbrio e da elegância.
Na linha então acelerada da sucessão das novidades, Anthony Caro seria, no entanto, rapidamente desalojado, no final da mesma década de 60, pela Pop e pela escultura dita minimalista. A primeira reintroduzia a figura humana, mas apenas numa prática de segundo grau (de apropriação) que já nada tinha a ver com a antiga tradição do monólito escultural; a segunda, perseguia a indistinção do objecto artístico em relação ao quotidiano não-artístico. Caro teria então deixado rapidamente de ser «contemporâneo», passando a ocupar um compartimento fechado na história da arte (a Colecção Berardo conta com uma peça significativa de 1971, Fleet, uma grande construção «espalhada» de peças de aço uniformemente pintadas de verde).
Mas o escultor britânico não saiu de cena nem ficou a explorar a repetição de um formulário estabelecido uma vez por todas. A sua pesquisa formal e material daria origem a novas séries, nomeadamente através da reutilização de materiais encontrados, conjugando uma linguagem não figurativa com uma referencialidade expressiva (patente, por exemplo, nas notáveis séries «Barcelona» e «Catalã», que foram expostas em 1989, no Porto, pela Galeria Fluxus).
O Juízo Final recupera e amplifica o princípio da «assemblage» e da escultura construída, que corresponde, no trabalho do volume, divergindo das técnicas anteriores da modelação ou do desbaste, ao que foi a colagem como invenção decisiva da arte do século XX. Em cada uma das 25 peças da sua instalação, Caro utiliza vigas de madeira procedentes de antigas travessas de vias férrea, peças de aço recuperadas, cimento, mas também figuras de cerâmica (grés cozido em fornos de lenha) que representam crânios, mãos, troncos humanos ou objectos, lembrando por vezes algumas figuras de Max Ernst. Os materiais, em parte encontrados e em parte fabricados, seguindo uma combinatória que Picasso também utilizou, inserem-se em composições de grande formato («assemblages») que são em muitos casos incluídas em caixas e assumem sempre um claro carácter referencial e narrativo, identificado pelos seus títulos.
Acede-se ao conjunto através da porta vazia de uma grande parede de vigas de madeira, sob um sino em terracota que fará referência a Por Quem os Sinos Dobram, de Hemingway, e à Guerra de Espanha. Depois de «O Campanário», o visitante encontra-se com «A Porta da Morte», uma porta de terracota entreaberta, seguindo-se, em torno do eixo central do percurso, à esquerda, as peças «O Inferno É uma Cidade», «Caronte», «Prisioneiros», «Sem Piedade», e, à direita, «Confissão», «Soldado Desconhecido» e «Caixa de Tortura», todas elas de configuração vertical, em torno de uma peça central com a forma de mesa ou tanque intitulada «Natureza Morta - Caveiras».
Outras peças ou episódios seguintes inspiram-se explicitamente na Bíblia, como «A Escada de Jacob», «A Dança de Salomé» e «Judas», enquanto a mitologia grega é referida em «Tiresias» (o adivinho cego, profeta do infortúnio), «As Fúrias» e «Campos Elíseos». Outras ainda, como «Carne», «Avareza e Inveja», «Tribunal», «Sacrifício», «Câmara do Veneno», «Sombras da Noite» e «Guerra Civil» (as duas últimas em caixas de formato duplo com uma vasta composição horizontal), aludem à violência e aos conflitos da sociedade contemporânea, associando sempre a presença de elementos figurativos isolados (em cerâmica, especialmente) a uma organização formal que não é literalmente representativa, onde os materiais brutos e os objectos encontrados têm uma presença fortemente impressiva. No final, a «Porta do Céu», entreaberta, é ladeada por quatro tocadores de trombeta, num caminho aberto à esperança.
Recuperando e ampliando uma tradição da escultura do século XX que parecia esgotada nas possibilidades da sua lógica formal e simbólica - Picasso, González, Schwitters, depois Smith, Di Suvero, Nevelson, etc., que faziam da reutilização do «object trouvé» e do desperdício uma poética da vida moderna, nos anos 50-60 -, Caro volta costas à recusa da representação narrativa e descritiva, reencontrando-se com a possibilidade de evocar a situação do homem perante os mitos, a história e o seu presente. É uma reabertura de caminhos necessários para a arte que o velho escultor propõe contra o vazio do fim de século.
Diagrama da instalação dos 25 episódios escultóricos
Pormenor de «A Dança de Salomé»
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