"Objectos enigmáticos"
Expresso Revista 8-3-97
A EXPOSIÇÃO intitula-se «A Céu Aberto», mas não se usaram os jardins
de Serralves. O título pretenderá significar uma instabilidade
intrínseca à prática actual da escultura, desabrigada (desobrigada) do
que seriam antigas funções e convenções — cerimoniais ou especulativas.
Croft, num entrevista ao «Público», associou a condição dubitativa do
fazer da escultura com as condições de vida dos ciganos.
Invocando o espaço da natureza, mas contrariando o possível programa de
um «jardim de esculturas», acentua-se o facto de se ocupar uma galeria
que é igualmente uma casa, e à qual se começaram a retirar os painéis
que tentavam transformá-la num espaço «moderno» e neutro de exposições.
Aí, num lugar fechado e rasgado pelas imensas janelas agora reveladas,
a escultura confronta-se com a arquitectura e com a ideia ou função do
mobiliário que, em condições habituais, a ocuparia. Essa é outra pista,
que, para além de propiciar a reflexão sobre o que na escultura actual
é arquitectura e mobiliário (industrial em S. Solano, artesanal em
Croft), determinará a revelação do confronto físico entre o objecto
escultórico e o visitante que o observa e circunda com todo o seu
corpo, sem o efeito distanciador que o pedestal conferia à estátua.
Distribuídos pelos aposentos, quase sempre como objectos isolados, as esculturas e o seu respectivo espaço (não sendo instalações) são visíveis mais como lugares do que como objectos ou imagens — e mais ainda quando, no caso de Croft, «apenas» uma cadeira (ou parte dela) se encosta a uma parede-espelho, ou, quanto a Solano, se a peça construída, única e estruturada, dá lugar ao espalhamento de parcelas soltas.
Ao usar a contradição no título diz-se ainda que estas esculturas não são, não querem ser, aquilo que parecem, ou o que podem sugerir a um espectador familiarizado com a história da escultura: elas não são uma «mera» especulação formal sobre volumes, materiais, pesos e equilíbrios, mas um questionamento da sua natureza de objectos enigmáticos, uma possibilidade de interrogação sobre os seus conteúdos e sentidos. Reforça-se, assim, uma condição dubitativa na relação do espectador com a obra, que se pretenderá equivalente à relação problemática do escultor com o seu próprio trabalho, ou destino. Uma incerteza ou estranheza que corresponderá a um não saber em que o artista se terá instalado para produzir algo que também não sabe exactamente o que é. O «qualquer coisa que se não conhece e que se chama arte», como disse Solano, a propósito de Brancusi, noutra entrevista («ArtPress», Outubro 89).
A mesma retórica do enigma é exposta, num texto de parede, ao visitante que inicia o seu percurso: «um diálogo onde a reconstrução crítica do monumento é o emblema de um solo comum desconstruindo uma tradição escultórica como se do seu reflexo inútil não restasse mais do que a reafirmação ética de uma impossibilidade». Inútil e impossível são atributos que se consideram positivamente valorativos, porque a arte, eterna reconstrução-desconstrução, exerce-se, como uma condenação pessoal, na demonstração da sua necessidade e da sua des-razão. Croft falara, noutra entrevista, da criação de «uma aura nos objectos», de «transmutação» e «magia»; Solano referira-se ao «carácter mais metafísico» das suas esculturas, distanciando-se dos impasses minimalistas. São pistas de criação e interpretação que têm o mérito de contrariar as reduções mais correntes da arte às técnicas da comunicação...
Entretanto, a mostra de Serralves tem a particulariedade (rara) de apresentar dois escultores, em simultâneo ou em confronto, embora fazendo com que sobre a diversidade das obras se acentue uma possível proximidade de atitudes e problemáticas — não de estilo ou tendência, noções de um cunho formalista que aqui se pretende esconjurar.
José Pedro Croft e Susana Solano têm em comum, para além da formação escolar em pintura «desviada» para a prática da escultura (sem que esta se constitua por referência à pintura), um idêntico tempo de emergência e de trabalho.
Nascida em 1946, em Barcelona, S.S. fez uma primeira exposição em 1980 e conheceu a partir de 86 uma vertiginosa projecção, com passagens por Kassel, Munster e Veneza, a que se seguiu uma retrospectiva em 93, no Palácio Velázquez, com circulação internacional. Croft nasceu em 1957, no Porto (com formação escolar em Lisboa) e expõe desde 82-83, com uma regularidade que se acompanhou também pela mutação de linhas de trabalho — que ainda não foi possível avaliar numa abordagem monográfica e que não permite falar (ao contrário de Solano) de uma possível maturidade criativa. Um termo que certamente se rejeitará...
Para esta exposição escolheram-se apenas obras recentes dos dois artistas e ambos os comissários, Manuel Castro Caldas e Teresa Blanch, ocuparam-se nos textos para o catálogo das eventuais proximidades. Reuniram-se, assim, os últimos trabalhos de Croft, desde 92, já parcelarmente vistos, e obras de Solano que são maioritariamente de 96 e que de modo algum permitem conhecer uma trajectória de produção intensa, «estabilizada» sobre linhas de trabalho que a confirmam como um dos mais interessantes escultores actuais.
As nove esculturas da catalã — mostradas com dois conjuntos de fotografias que exibem, com a presença do corpo, as referências existenciais do seu trabalho — parecem, agora, traduzir uma dispersão de direcções de pesquisa, mais hesitante ou interrogativa, mas também menos consequente, ao associar, por exemplo, a verticalidade construída e transparente de Lalibela e a horizontalidade amorfa de Mac i Truc, circulando por entre referências («desconstruídas») a R. Morris e a A. Caro; ou mesmo a facilidade representativa e metafórica de Estudi nº 7 e Por el Sendero...
O trabalho actual de Croft associa móveis e objectos utilitários com volumes de gesso ou chapas de espelho, referindo-se quer a uma funcionalidade destituida de sentido, quer à enigmática densidade de formas simples. A instabilização do equilíbrio e alteração das condições de visibilidade (da sua pele e da iluminação) parecem bastar como intervenção.
Nas duas obras é um próximo retraímento, uma mesma suspensão de qualquer unidade estrurante e significante que a exposição sublinha. Ou propõe.
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