Expresso / Actual de 5/10/2002
"Quarenta anos depois"
A obra recente de um dos artistas do grupo «KWY»
Jan Voss
(Galeria Fernando Santos, Porto, e Mundial Confiança Chiado 8, Lisboa, até 11 Novembro)
Jan Voss foi um dos dois artistas não portugueses estreitamente associados à revista «KWY», criada em Paris por Lourdes Castro e René Bertholo, em 1958. O outro foi o búlgaro Christo, depois famoso pelos seus espectaculares «embrulhos». Nascido em Hamburgo em 1936, instalado na capital francesa desde 1960, Voss participou nesse mesmo ano nas exposições do grupo, nomeadamente em Lisboa, e organizou o nº 9 da revista, da Primavera de 1962. A recente exposição do CCB, «KWY, Paris 1958-1968» (Março 2001), recordou esses marcos da memória nacional - sem conseguir assegurar-lhes o conveniente eco exterior - e deu a ver as várias obras individuais que no início dos anos 60 participavam no intenso momento colectivo internacional de renovação e abertura do panorama artístico.
Particularmente significativa foi a possibilidade de apreciar a sintonia e a cumplicidade que existiam entre as obras de Bertholo e de Voss, trocando experiências num processo paralelo de abandono da abstracção informal e de reencontro com o «real». Colhiam lições do graffiti e da banda desenhada para inventar uma outra escrita que pode tornar-se figura, objecto, homem ou coisa indecifrada, surgindo em espaços incertos onde se depositam e disseminam observações, memórias e narrações pessoais. Voss começou por organizar os sinais figurativos em faixas, Bertholo explorava a dispersão e a metamorfose dos objectos; em meados da década, Voss avançou para quadros de representação minuciosa e enunciados cifrados, alinhando com propostas de Figuração Narrativa, Bertholo preferiu a indeterminação das leituras abertas, recusando esse rótulo, e deu depois movimento às figuras com as suas máquinas-brinquedos.
Ao contrário de outros contemporâneos que se fixaram na gestão de fórmulas estabilizadas (Arroyo, Klasen, Monory, Erro, etc.), ambos prosseguiriam itinerários abertos à flutuação das direcções de trabalho, em sucessivas deslocações que aliam a coerência do caminho e a sedimentação das práticas à alegria da experimentação. Duas exposições simultâneas, em Lisboa e no Porto (esta de maior dimensão), mostram alguma da produção mais recente de Voss, optando a selecção das obras por proporcionar, em torno do lugar do desenho na sua pintura actual, uma aproximação particularmente sintonizada com as questões formais já conhecidas do tempo de participação no «KWY».
O seu trabalho dos últimos 15 anos (reunido numa antologia que está em itinerância por várias cidades francesas, com apresentação num magnífico volume prefaciado por Yves Michaud, ed. Adam Biro, Paris, 2001) tem-se desdobrado na exploração de várias direcções simultâneas, alargando com inteligência as marcas de um sólido universo pessoal.
Nas obras expostas impera a linha que circula serpenteante sobre o suporte branco (parede ou ecrã), num grafismo que faz coexistir a garatuja automática com a notação figurativa e a dispersão com a elegância de uma ordem improvável. Noutras séries de pinturas (de que há dois exemplos no Porto), a cor ganha uma presença concorrente com a das redes de sinais, disposta em espaços fragmentados, imbricados ou em xadrez, que não valem apenas como fundo; estão directamente associadas a colagens e pinturas sobre materiais diversos colados sobre a tela que Voss também tem explorado, até chegar aos quadros-relevos e às esculturas construídas por «assemblage» de madeiras pintadas, em acumulações exuberantes e caóticas que fazem pensar nas «Merzbau» de Schwitters. A experimentação de diferentes processos e materiais continua com os trabalhos em cerâmica, de que se vêem algumas peças no Porto, de pequenas dimensões, embora outras cresçam como quase paredes. Esperemos que este regresso feliz de Jan Voss e do seu universo visual, bem reconhecível nos seus entrelaçados de signos, linhas e fugazes imagens de objectos, se amplie a seguir com essas obras a cores e em volume.
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