Mónica Machado, Sílvia Hestnes Ferreira, Sandra Quadros, Marta Seixas
Expresso, Cartaz, 9-Nov.-96
"Mónica, Sílvia, Sandra, Marta, etc..."
"A fórmula da bienal-concurso é posta em causa, mas o panorama é favorável às revelações"
2ª BIENAL AIP
Europarque, Santa Maria da Feira
O que é hoje um salão? A fórmula oitocentista do concurso tutelado
pelos juris académico-corporativos está definitivamente morta,
substituída pelas selecções comissariadas? Ou, depois da relativa
importância que tiveram as bienais de Lagos e de Cerveira ou os salões
da SNBA, ainda ao longo da década de 80, o actual desprestígio dos
concursos faz parte de um mesmo fenómeno de fragilização de todo o
sistema de ensino, mercado, acção institucional e legitimação crítica
que marca a arte contemporânea?
A 2ª Bienal de Arte da Associação Industrial Portuense, excêntrica
mesmo em relação ao Porto e insuficientemente promovida, é um
contributo significativo para repensar o tema, ainda que a sua fórmula
já não seja exactamente a de um salão.
Evoluindo positivamente desde a sua 1ª edição — restrita à pintura e sub-intitulada, sem razão para tal, «Tendências dos Anos 90» —, o certame é agora uma soma de três fórmulas: um primeiro sector histórico de homenagem a cinco pintores e outros tantos escultores da «Escola do Porto» (a inclusão de Amadeo será improcedente); um segundo sector formado por artistas convidados e extra-concurso, apresentando quatro artistas cada um dos nove elementos do juri (36 autores de 72 obras, pintura e escultura em partes iguais, com tolerante abertura à «instalação»); e um conjunto de concorrentes que passaram o crivo dos jurados — apenas 34 artistas e 48 obras (de um total de 348 e 575, respectivamente).
Mas antes das considerações genéricas, comece-se pelo essencial, as obras que a bienal nos propõe como novidades fortes ou como oportunidade de confronto de carreiras que têm sido diferentemente acompanhadas. Porque, inesperadamente, talvez, este é um lugar de revelação de artistas desconhecidos, jovens ou menos notados.
Há, em especial, que destacar a primeira presença em Portugal de Mónica Machado (n. 1966, Lisboa), que assina de parceria com Giles Bensmana duas esculturas surpreendentes no seu excesso de barroquismo e delírio orgânico, Le Landau (Salomé Dolores) e O Ovo (Petite Anatomie du Désir), que Carlos França, jurado-proponente, associa a possíveis referências a Gaudi e Tinguely (e também Miró).
A primeira, na foto, é um grande carrinho de bebé (2,5 metros) revestido a fragmentos de cerâmica e «objects trouvés», ocupado por corpos fragmentados e recompostos de bonecas, animadas por movimento mecânico ao som de choros e vagidos.
M. Machado vem da École des Beaux-Arts de Paris, foi premiada no Salon de Montrouge e fez uma primeira exposição individual em 1994 prefaciada por Yves Michaud.
De Paris e pela mesma mão vem igualmente Sílvia Hestnes Ferreira (n. 1961, Lisboa), objecto de simultânea afirmação na colectiva «Sete artistas...» agora apresentada na Gulbenkian. Uma das peças apresentadas, como escultura, Sem título (Árvore e Fonte), associa um volume, de rede de arame e corda, e uma pintura sobre papel, que sintetiza um campo de experimentação alargada, imprevisível e irregular, mas aliciante. (Carlos França mostra ainda Júlio Pomar — subrepresentado por desenhos a pastel, numa bienal que não os previa — e José de Guimarães.)
Sandra Quadros (n. 1970, Angola) é um terceiro nome a referir, este surgido a concurso com uma pintura, Alfredo e os Colonos em Prol da Revolução, depois de, em Lisboa, ter sido já notada na Galeria Moira e numa colectiva da Arte Periférica. A colagem faz entrar no quadro — topografia imaginária e narrativa — elementos reinventados, como gestos de subversão, de humor e reconstrução poética, continuados na inscrição escrita e título.
Outra presença curiosa, sem que se trate de uma estreante, é a de Marta Seixas (n. 1963, Porto), proposta por Fernando Pernes, enquanto simultaneamente apresenta uma individual na Gal. Síntese (até domingo), sob o título «O céu & compª.: ensaios sobre a chuva», que neste caso pode servir de referência a uma pintura onde a dimensão «atmosférica» nasce de um inteligente trabalho das matérias, tornadas sentido e imagem simbólica. Pernes propôs igualmente Rui Aguiar, Sebastião Resende e Elsa César, todos artistas do Porto, apelando, num texto sintomático, a «um 'genius loci' que talvez nos defenda ainda de massificações planetaristas».
Participações a mencionar são ainda as de Graça Morais, com duas pinturas-desenhos inéditas de muito grande formato, a carvão e acrílico sobre lona, e Moisés, uma escultura-fonte de pedra a que a escala concede uma divertida eficácia — ambos são propostos por José Rodrigues, em representação da Árvore, co-organizadora da bienal. Entretanto, outros nomes com créditos firmados ou continuada promoção crítica comparecem com menor empenhamento, cálculo ou originalidade, por proposta de Bernardo Pinto de Almeida, Fátima Lambert, Isabel Carlos, Fernando de Azevedo e Raquel Henriques da Silva (que traz, bem, Casqueiro e Xana).
Quanto aos premiados, Carlos Carreiro e Ana Fernandes beneficiaram da exiguidade da escolha. No primeiro caso, a obra não se destaca da produção agora demasiado estabilizada do seu autor, e conviria antes revitalizá-la, enquanto o segundo prémio confunde com escultura o que será a ampliação inútil de uma peça de joalharia.
Entretanto, os jurados entenderam por bem recomendar à AIP a adopção de um «modelo diferente (de bienal) que contemple apenas artistas convidados pelos membros do juri, depois de este reunir e definir critérios de selecção». Talvez fosse conveniente assegurar, antes da redução a esse modelo único, o princípio do livre concurso com aplicação de algumas orientações básicas que garantissem a seriedade da fórmula. Começando pela formação de um juri prestigiado, com sentido afirmativo e eventualmente polémico, e prémios atraentes ou programa de aquisições alargado. Num sistema demasiado dependente do controle institucional, onde se identificam os papéis do crítico, do comissário e do funcionário, o concurso aberto talvez possa ainda recuperar a capacidade de pôr em questão a ordem dominante e propiciar confrontos mais saudáveis.
Mais do que o estrangulamento da última bienal, importaria talvez dignificar e multiplicar esse tipo de iniciativas, restabelecendo, com ambições e intenções diversificadas, um leque de eventos de carácter nacional, local, mecenático e associativo — mas evitando o desproporcionado e luxuoso sobre-investimento que aqui ocorre (uns 45 mil contos de orçamento, com dez mil de subsídio ministerial).
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