Expresso 7/7/2001
"Encontro em Paris"
As carreiras iniciais de Mondrian e Amadeo através do tema da paisagem
MONDRIAN. AMADEO – Da Paisagem à Abstracção
(Museu de Serralves, até 30 de Setembro)
Se Mondrian tivesse morrido na idade com que desapareceu Amadeo, não
saberíamos o seu nome. Com 30 anos em 1902, Pieter Cornelis Mondriaan
era um paisagista de Amsterdão que expunha na Sociedade S. Lucas. Só
uma década depois, ao mudar para Paris, nasceria Piet Mondrian. Parecia
um desafio inverosímil a junção de artistas de tão diferentes
itinerários e produções incomensuráveis, com lugares tão diversos na
história (universal) do século XX - se é que Amadeo já nela foi
admitido, como certamente merece, apesar da brevidade da obra.
O pretexto da parceria das capitais culturais, que poderia mal
justificar o encontro dos dois maiores pintores nacionais,
fundamenta-se, porém, no argumento mais sólido da sua pertença aos
primeiros anos da Escola de Paris, entendida em sentido estrito como a
comunidade internacional que aí informalmente vivia a aceleração da
aventura da arte moderna.
As relações com o cubismo foram muito diversas, mas ambos intervieram no decisivo processo de experimentação que dele tirou como consequência a passagem à abstracção. Mondrian em definitivo, como uma inevitabilidade apontada à transformação utópica do mundo e da arte, embora tenha continuado a pintar sentidas composições florais e vistas rurais por conveniência económica e algum gosto idiossincrático (Quinta em Divendrecht, de 1916?, é a obra mais tardia da mostra). Amadeo explorou a abstracção radical em telas de 1913 que não se incluem, mas sempre como uma direcção experimental entre outras, sem entender a recusa dos referentes da representação como destino obrigado, em nome da pureza pictural ou metafísica. A exposição segue-lhes o passo desde o início das respectivas carreiras, mas só até 14, data de regresso às pátrias, sem chegar, por isso, a ilustrar o Mondrian mais característico nem o último e mais original Amadeo.
Dedicada ao tema da paisagem, que Serralves tomou por tópico principal da programação do ano, dispõe em paralelo as obras dos dois artistas, através das paredes opostas de quatro pequenas salas comunicantes, e a própria configuração espacial da montagem sublinha a diversidade da formação e do ritmo evolutivo de Mondrian e Amadeo. É um percurso com distintas velocidades, em que se deixam bem patentes as diferenças individuais (a intensa emotividade que a razão ordenará; a curiosidade vital e volúvel) e em que ficam implícitas as circunstâncias de contexto das suas obras: no caso do holandês, a vinculação tanto a uma sólida tradição regional do paisagismo como a um processo colectivo de renovação, iniciado na Holanda logo na primeira década do século, enquanto Amadeo vive uma aventura sem outras filiações nacionais que as que podiam decorrer da morfologia da paisagem e da especificidade das cores e luzes do seu Minho, mas em contacto directo, desde o início, com a pluralidade das direcções simultaneamente ensaiadas na Babel parisiense.
A opção expositiva prescinde de acompanhar as obras com qualquer informação textual, mesmo quando nos dá a conhecer os inesperados naturalismo e primeiro modernismo de Mondrian, assim apontando a uma experiência de visualidade «pura». É uma aposta legítima e bem ganha, mas no catálogo também não se encontra qualquer enquadramento que guie o visitante desprevenido, o que já parece menos aceitável, tanto mais que tem havido contributos recentes para que se entenda melhor o itinerário do holandês. É o caso de recentes exposições do Museu de Arte Moderna de Paris, como «La Beauté Exacte», de 1994, sobre o século XX holandês («Mondrian: Les Années Préparatoires à 'De Stijl', Particulièrement en Zélande», de Robert P. Welsh, é um ensaio de grande oportunidade), «Le Fauvisme ou l'Épreuve du Feu», de 2000, ou «L'École de Paris 1909-1929, la Part de l'Autre», de 2001, em que também Amadeo esteve representado. Entre nós, prevalece o hábito dos catálogos caros e pouco úteis, mesmo quando ostentam o emblema comunitário do Programa Operacional da Cultura.
De Mondrian assiste-se aos seus inícios naturalistas, desde 1898/1900, e a um trajecto lento em que se acentua uma inclinação simbolista (por vezes a lembrar António Carneiro) antes de se poder falar em vanguardismo. Este surge (por via de Van Gogh, que foi reconhecido em Amsterdão em 1905) com a clarificação da paleta e a iluminação dos amarelos solares numa mudança que é evidente a partir de 1907 (Árvores à Beira do Gein), logo acentuada pela pincelada divisionista que separa as cores e faz vibrar a luz, onde se conjuga a informação do pós-impressionismo pontilhista e a influência que os «fauves» exerceram no grupo dos «luministas» holandeses.
Até aí, Mondrian (Mondriaan, aliás) acompanhara um paisagismo que se revia na grande tradição do século de oiro (a Escola de Haia) e dela se já distanciava pelo exemplo da Escola de Barbizon. Integrado num contexto nacional que se manteve alheio ao impressionismo, Mondrian dialoga, depois, com a evolução modernista de Jan Toorop, Jacoba van Heemskerck, Johan Thorn Prikker, Leo Gestel e Jan Sluijters, de que a mostra «In the Rough» trouxe alguns exemplos desgarrados. Só retrospectivamente se poderá reconhecer a essas obras de Mondrian bem inseridas numa história regional, que já era então aberta à informação internacional, uma dimensão pessoal de excepção.
O interesse pelo cubismo, em 1911, é súbito e faz explodir, finalmente, a individualidade genial de Mondrian, numa situação que fica documentada por três telas onde se assiste à adopção de uma estratégia de construção do quadro como uma grelha espacial a que aderem alguns traços representativos de massas de árvores e pedaços de paisagem. Do mesmo passo evolutivo fazem parte estudos de figura e duas naturezas mortas decisivas, com potes de gengibre, que a mostra não podia incluir. Aliás, apesar de parecerem prometidas pelo título «Da Paisagem à Abstracção», também não se incluem as primeiras composições radicalmente abstractas de 1913 e 14, nomeadamente as surpreendentes telas ovais em que se desvanece a configuração espacial própria da paisagem. Essa é uma opção menos compreensível no programa da exposição, que nos deixa à beira da mudança decisiva, sem dar o salto anunciado. Algo de semelhante se passa com Amadeo, que surge sempre e só com paisagens, algumas numa acentuada direcção abstracta, mas com reconhecível origem no espaço natural observado.
Os dois pintores coincidiram em Paris só nos dois anos que antecederam a I Guerra: Amadeo chegara em Novembro de 1906 e ficou até Junho de 14; toda a sua formação é parisiense, mas os três últimos anos de trabalho em Portugal, até à morte em 1918, não deixariam de ser magnificamente produtivos. Mondrian partiu para Paris em Dezembro de 1911, já consagrado como um dos principais vanguardistas da Holanda, e a Guerra deixou-o retido em Amsterdão, a partir de Julho de 14. Voltaria em 1918 para permanecer até 38, transferindo-se nesse ano para Londres e em 40 para Nova Iorque (morreu em 1944, com 72 anos).
É improvável que se tenham conhecido, porque, para além da diferença de idades, Mondrian era uma figura reservada, que se manteve mais ou menos isolado entre a colónia holandesa, ao contrário da abertura de Amadeo a múltiplos convívios. Ambos participaram nos Salões dos Independentes de 1911 e 12, exposições sem júri de admissão nem prémios, aonde afluíam jovens artistas e estrangeiros. A edição de 11 foi a da aparição pública do cubismo, sem a presença de Picasso e Braque, mas com um forte contingente dos que se chamariam depois os cubistas de salão (Fauconnier, Gleizes, Metzinger, Lhote) e também Léger e Delaunay.
Mondrian tivera oportunidade de conhecer obras cubistas ainda em Amsterdão, nesse mesmo ano, e à descoberta seguiu-se de imediato a adopção das suas regras, radicalizando-as de um modo pessoal. Amadeo, que levava apenas cinco anos de aprendizagem da pintura (em 1906 começara a frequentar as academias livres de Montparnasse) relaciona-se mais lentamente com o cubismo, sem que este se torne uma obediência escolar e única. As obras que expõe na edição de 1912 dos Independentes são as do seu período «gótico» (Os Galgos e Paisagem com Pássaros).
Em Setembro de 1913 ambos participam no primeiro Salão Alemão do Outono, em Berlim, organizado pela Galeria Der Sturm. Mondrian com as primeiras pinturas de título neutro e numerado, Amadeo com Atleta (só conhecido de fotografia) e os quadros A e G (pág. 179 do catálogo), que o situavam também na linha avançada de um tempo comum.
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