Passagem para o Japão
Onze artistas para o séc. XXI e um percurso pela Colecção Berardo
Expresso Actual de 11-12-2004
A presença cultural do Japão tem a sua expressão mais forte no cinema de animação e na banda desenhada, ao mesmo tempo fenómenos de massas e de culto. Por outro lado, o país também se faz representar pela continuidade de antigas tradições, como a cerimónia do chá, os arranjos de plantas («ikebana»), as dobragens de papel («origami»), as bonecas, as lacas e outras produções artesanais que coexistem com a ocidentalização da economia e do quotidiano. Uma concepção própria de património cultural, que coloca a par os bens históricos tangíveis e actividades como o teatro, a dança, a música e as artes aplicadas, designa como «tesouros nacionais humanos» os artistas e artífices cuja excelência se destaca em cada área (há 65 domínios do artesanato, com menos de uma centena de mestres).
No campo das artes plásticas, coexistem a ocidentalização acelerada desde o final da II Guerra Mundial e a permanência de tradições específicas de desenho caligráfico e de paisagem. Já nos anos 90, Takashi Murakami alcançou uma grande projecção internacional ao fazer entrar no circuito da arte um imaginário oriundo do universo da animação, com grande impacto visual, ao mesmo tempo divertido e violento, que invadiu os museus e o consumo de massas com a criação da Hiropon Factory, uma fábrica de arte. Chefe de fila de uma geração Manga, paladino da arte Poku, fusão japonesa de Pop e Otaku (fã de Anime, o cinema de animação), defendeu a teoria de uma pintura superplana («Super Flat») onde a bidimensionalidade da BD se reencontraria com formas tradicionais de representação do espaço sem profundidade. Mariko Mori é outra figura destacada que articula elementos da cultura tradicional e o uso de tecnologia contemporânea ao associar referências vindas da moda, da dança e da ficção científica em imagens fotográficas em 3D e vídeos.
A exposição que a Fundação do Japão traz ao Sintra Museu apresenta uma nova vaga de artistas posteriores à afirmação de Murakami, já num contexto de colapso económico e reexame da identidade cultural japonesa. Os textos do catálogo relacionam-nos com a chamada arte Otaku da década de 90, da qual se conserva a opção pela pintura plana, mas também com o cinema de Ozu, com o gosto pelas tradições artesanais e com o «regresso à ideia de que a arte consiste em fazer objectos com valor estético», o que alguns considerariam antiquado depois dos «ready-mades» de Duchamp, segundo diz o comissário Masanobu Ito (mas quase toda a grande arte do século XX é posterior ao urinol assinado R. Mutt e não decorre do seu cinismo filosófico).
Nascidos entre 1963 e 1974, alguns já com circulação europeia e norte-americana a partir de 2000, os onze artistas expostos formam um muito interessante conjunto plural, onde se podem reconhecer certas características comuns, para além das que decorrem da escala intimista das obras, eventualmente justificada pelo projecto de itinerância.
Tabaimo expõe uma miniatural casa japonesa onde se projectam três filmes animados em que a problemática contemporânea (o suicídio de estudantes do liceu) se expressa num grafismo que lembra as xilogravuras do tempo de Hokusai. Nas curtas-metragens de Tomoyasu Murata, os bonecos e cenários bem como a técnica de animação artesanal reforçam o tocante sentido humano das histórias de um pianista. Yoshihiro Suda instala trabalhos em madeira em condições que quase os não distinguem de plantas e flores naturais - aqui, mostra apenas uma delicada pétala pintada ao lado de uma taça de chá. Uma idêntica elegância reconhece-se, de modo paradoxal, no modelo de um veículo aerodinâmico esculpido com uma infinita perfeição de acabamento por Tetsuya Nakamura, ou nos cubos de plexiglas de Satoshi Hirose que encerram insólitas visões do cosmos, enquanto o «non sense» dos objectos do grupo-empresa Maywa Denki, com a aparência de peixes-máquinas, estabelece trânsitos entre arte, design e indústria. A instalação de plásticos com filas de sabonetes de Miyuki Yokomizo é um espaço de transparências e cores, cuja beleza artificial abre várias ordens de significados.
Entretanto, as pinturas de Nobuyuki Takahashi e Atsushi Fukui põem em prática reduções de elementos e de meios, a partir da planificação de paisagens fotográficas e da observação de espaços domésticos, convergentes numa idêntica imprecisão dos motivos figurativos que, com tonalidades nipónicas, é próxima de outras propostas picturais recentes. Masafumi Sanai tem a frescura de um olhar fotográfico directo sobre espaços e objectos do quotidiano, enquanto Katsuhiro Saiki usa a fotografia instalada no limiar da abstracção do real.
Ao primeiro piso entregue à representação japonesa segue-se a nova montagem de obras da Colecção Berardo num itinerário que percorre momentos do século XX e inclui, entre várias aquisições recentes, duas pinturas de Amadeo, uma escultura de Max Ernst, um néon de Joseph Kosuth (algo submerso pelo texto explicativo anexo) e uma impressionante instalação de Tony Oursler. Como em anteriores visitas, o facto de ter sido reunido em Portugal um tal acervo (agora também exposto na Madeira e em itinerância por sete museus japoneses) continua a ser experimentado como uma insólita surpresa.
Passagem parao Futuro: Japão, Novos Artistas
Sintra Museu de Arte Moderna, até 11 de Janeiro 2005
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