Um artista na História
A memória do Holocausto e da perseguição nazi à arte moderna acompanha a apresentação de um pintor judeu exilado e esquecido
Expresso Actual de 21-05-2005
Sessenta anos após o fim da II Guerra Mundial e do genocídio de seis milhões de judeus, esta é a mais importante iniciativa portuguesa para assegurar a memória do que não deve nunca esquecer-se. Partindo da obra de um ignorado artista judeu alemão, vítima obscura dum tempo de extermínio, de exílios e dramáticos recolhimentos interiores, cujo espólio foi adquirido pela Colecção Berardo, o Museu de Sintra concebeu um projecto evocativo de todo esse período histórico e desenvolveu-o com um pouco frequente sentido de intervenção didáctica.
Com uma cenografia de grande efeito, desde a grande cruz gamada marcada pelos passos que a pisam no chão do átrio, a montagem começa por mergulhar o visitante num itinerário de informações fotográficas e escritas que estabelecem o quadro da história alemã das décadas de 1920-40, focando em especial a perseguição dos judeus. À esquerda, o «Labirinto dos Tempos Sombrios» é um corredor negro e intencionalmente claustrofóbico sobre os anos do terror, construído como um percurso cronológico, das primeira proclamações nazis aos testemunhos fotográficos dos campos de concentração. Através duma galeria de retratos (onde Walter Benjamin, que se suicida em 1940, lembra que é mais difícil honrar a memória dos sem nome que a dos reconhecidos), é particularmente referido o processo de assimilação intelectual e cívica dos judeus, que, desde a saída dos guetos ao longo do século XIX, conduz a um período de apogeu da cultura judaico-alemã cada vez menos marcada pelo espírito confessional. Walther Rathenau, industrial e ministro assassinado em 1922, é uma das suas figuras emblemáticas.
Do lado oposto, um corredor vermelho recorda o combate nazi contra a arte moderna que teve o seu maior momento mediático na exposição «Arte Degenerada», e conduz às galerias onde se mostram, através de obras da Colecção Berardo, artistas que aí estiveram incluídos. Kokoschka (1886-1980), com uma obra do exílio em Londres, cedida pela Galeria Beyeler, de Basel, abre essa ala e representa a tradição expressionista que está ausente na colecção; referência essencial para entender a obra de Kahn, é o expressionismo que então estava no centro do debate em torno da arte moderna, depois de ter sido defendido como a mais profunda manifestação do espírito nórdico. De Max Ernst a Picasso, passando por Lissitzky, Mondrian e Chirico, é toda a modernidade, e não só as vanguardas «judeobolcheviques», que é objecto de exclusão em nome de uma pureza ariana absurdamente identificada com os ideais da beleza clássica. Mas para uma aproximação às dinâmicas dos anos 30, contrapondo a resistência artística interior aos silêncios e exílios, a representação dos realismos de Käthe Kollwitz ou Karl Hofer seria essencial.
O piso superior é dedicado à obra recuperada de Erich Kahn (1904-1980), que se inicia, conforme a direcção tomada pelo visitante, através dos pólos da pintura ou do desenho, começando este pelas suas cartas ilustradas e depois pela gravura, vinda dos tempos de internamento num campo de exilados alemães na Grã-Bretanha, na ilha de Man, onde permaneceu quase dois anos, depois de ser expulso da Alemanha em 1939, já a seguir a uma breve passagem por um campo de concentração. Mais acima, ainda, mostra-se a visão contemporânea de Daniel Blaufuks sobre a problemática da emigração forçada, do desenraizamento e da memória, na série fotográfica Exílio e no filme Sob Céus Estranhos.
Concebida por Guillaume Baschet Sueur e Pedro Aguilar (design expositivo), a mostra prolonga-se num catálogo que reúne as diversas vertentes do projecto, das colaborações de Esther Mucznick (a cultura judaico-alemã e a questão da assimilação) e Maria Belo (o estudo analítico dos sonhos e cartas de Kahn) às aproximações possíveis da vida e carreira do pintor (Tito Wagner e Susana Martins). A reprodução fotográfica da obra pintada de Kahn não consegue vencer totalmente os obstáculos levantados pela densidade matérica das pastas e pela difícil leitura das formas torturadas das suas figuras evanescentes, mas fica o caminho aberto à consideração de um artista mais interessante e significativo do que reconhecido, onde as consequências das ameaças colectivamente sofridas se prolongam e agravam pela tortura muito pessoal dos seus próprios fantasmas.
Erich Kahn parece ser alguém em quem a adversidade extrema de uma época é também vivida como dilaceramento interior, num duplo destino de condenação que se fecha sobre si mesmo sem que se saiba qual terá sido mais determinante. As primeiras gravuras em linóleo mostram um universo invadido por monstros de pesadelo, enquanto as pinturas mais antigas, retratos e paisagens, revelam alguma proximidade com a obra de Kokoschka, o mais ilustre dos refugiados em Inglaterra. Depois, as telas adquirem uma condição mais convulsiva, em sucessivos auto-retratos torturados, invadidos pela densidade informe da matéria, e em outras obras onde a composição se dissolve sob uma pincelada expressiva de grande violência, numa obscuridade invasora que é rasgada por manchas de luz ou toques de cor pura.
Sem se identificar com o expressionismo abstracto que nos anos 50 se estabelece com âmbito regional na Alemanha Ocidental, a que nunca regressou, Kahn não é um artista «recuado» e parece ter mais a ver com a dimensão existencial inscrita no informalismo de um Wols ou na figuração britânica de Kossoff e Auerbach, mas Eugène Leroy, um solitário e pouco conhecido pintor francês várias vezes redescoberto, é outra aproximação possível pela densidade matérica dos empastamentos em que se absorve a referência figurativa.
«Geração Esquecida - Erich Kahn»
Sintra Museu de Arte Moderna - Colecção Berardo, até 2 de Outubro
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