Expressao Cartaz de 15/3/2002
"Casa do mundo"
Pintura, escultura, instalação e vídeo de uma artista catalã
SUSANA SOLANO
(Porta 33, Funchal, até 3 de Maio)
Duas vastas exposições da escultura de Susana Solano foram vistas em Serralves, em 97, e no Museu de Sintra, em 2001, e outras mostras da galeria Quadrado Azul, do Porto, alargaram o contacto com esta artista catalã que é, desde os anos 80, um dos nomes maiores da arte contemporânea internacional. Agora é a Porta 33, no Funchal, que dá a ver a sua obra, mantendo uma notável regra distintiva de apresentação de trabalhos inéditos e, quando possível, resultantes de um contacto directo dos artistas com a Madeira.
Susana Solano ocupa cinco salas do edifício habitado pela Porta 33, com trabalhos de diferente natureza, usando-as como um itinerário através da sua obra, dos seus interesses e motivações. Essa diversidade de direcções não é a anulação de uma autoria ou de um sujeito criador, por uma eventual dispersão de «estilos», mas, pelo contrário, uma abertura de pistas interpretativas sobre o que a move, tornando visível a rede de relações que associa a formalização mais densamente ambígua, ou secreta, das suas esculturas à experiência emocional do mundo.
Uma primeira sala mostra pinturas sobre papel, a que a artista prefere chamar desenhos, da mesma série, «La Piel de Nadie», que a Quadrado Azul já expôs e que foi objecto de uma co-edição em livro. De grande formato quase quadrado, realizadas manualmente com pigmentos e látex, os nove desenhos-pinturas integralmente preenchidos por manchas e gestos informes reconhecem-se como «campos de acção», como diz Aurora Garcia no prefácio, no sentido em que neles se depositam e movem «transferências de energia em estado puro, onde o tacto se erige em factor primordial» da relação com as matérias.
No piso superior, uma sala é ocupada com a instalação de três peças em vime, realizadas por artesãs da Madeira a partir dos estudos desenhados pela escultora - o título comum, Salgados, refere o lugar de execução. São duas colunas de diferente perfil, elevadas e interrompidas por uma fissura mínima, e uma forma aberta e redonda, feminina, sugerindo um largo recipiente ou vaso, que deixa visível a estrutura metálica da armação. Se esta última transporta referências ao uso doméstico do vime, as duas formas arquitectónicas tecidas neste material subvertem pela própria ductilidade do vime a função habitual de sustentação das colunas, que são aqui corpos vegetais recriados, cariátides não figurativas. Ao lado, algumas obras gravadas, próximas dos desenhos, expõem-se na sala da livraria, associando diferentes objectos editados e também o reino da palavra ao da visibilidade muda.
Outro andar acima, o chão de um quarto é recoberto por um pavimento de triângulos e losangos de duas cores, de ferro galvanizado e negro, que se distribuem aleatoriamente sem deixarem de evocar as padronizações decorativas dos revestimentos em azulejo. Arabesco, este o título, retoma em diferentes dimensões uma das instalações que Susana Solano realizou recentemente num palácio de Granada. Se a horizontalidade é uma característica presente em muitas obras da escultora, quer estas se configurem como recintos, espaços domésticos ou paisagens, quer evoquem mobiliário ou se alonguem como tapetes de malhas metálicas, esta proposta de um chão (muito diferente dos de Carl André) poderia situar-se numa continuidade de reflexões sobre a condição da escultura formalista que, depois de abandonar o pedestal, anulou também o objecto reconhecível enquanto tal, se não fosse aqui essencial, chegados a um limiar de desaparição da «obra», a presença de uma regra de composição, mesmo aleatória, e a referência concreta à decoração, como tradição e necessidade.
O vídeo Lugares Adjacentes (o primeiro que a artista exibe como obra autónoma) é a justaposição sequencial de três registos realizados sem outra regra de montagem que as interrupções de filmagem, embora, em vez de material em bruto, se use em dois casos a câmara lenta e num deles a inversão da imagem: vêem-se as chamas de uma fogueira, as evoluções de uma anémona no Oceanário de Lisboa e crianças negras na Etiópia que estendem as mãos para o observador que as filma. São sempre diferentes estados de energia que se observam, sucessivas presenças da forma e do informe, do elemento natural ao viver humano, sobre os quais se exerce, noutro lugares, a intervenção simbólica da artista.
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