Expresso Revista
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No país de Picasso, Miró, Dalí e Tàpies, a arte é uma questão nacional e, por isso, o Arco é uma feira de Estado. Sua magestade o rei é presidente de honra, a infanta inaugurou, o Ministério da Cultura patrocina e a Fundação Coca-Cola España é o mecenas principal da 13ª edição. «Fortalecer o mercado interior da arte e conseguir a sua projecção no exterior é objectivo comum da iniciativa pública e privada», escreveu a ministra Carmen Alborch, sob o título «Comprar, e algo mais», na capa do suplemento que o «Diário 16» editou para a ocasião.
Pelo seu lado, o pintor Antonio Saura, que vem de outros tempos mais difíceis, acedeu a desenhar a capa do suplemento do «El País», mas mantém reservas contra uma feira artificialmente sustententada: «Se o Arco um dia sobreviver sem ajuda económica oficial, como todas as outras feiras de arte do mundo, isso será a prova do bom estado da arte e do comércio da arte no nosso país». É Saura quem está desactualizado, à espera de um utópico futuro.
As ilusões de que Madrid poderia ter a mais dinâmica das feiras internacionais esboroaram-se rotunda e definitivamente em 1992. Os tempos são de crise, na arte e fora dela, como se sabe, e ainda recentemente levaram mais um rude golpe com a queda do Banesto e de Mario Conde, um dos clientes notórios do Arco. Mas como a feira de Madrid, na sua fórmula dúplice de mercado e espectáculo cultural, não deve morrer, há que assegurar formas de transição entre o irrealismo da circulação da arte nos anos 80 e novos tempos mais saudáveis — é esse, no momento actual, o papel briosamente desempenhado pelas instituições espanholas.
Por isso, se os galeristas estrangeiros ameaçavam faltar à chamada, decidiu-se colocar um país em destaque (este ano foi a Bélgica, pela mão de um comissário-vedeta, Jan Hoet; em 95 serão os Estados Unidos, em 96, a Alemanha), depois ofereceram-se stands, viagens e estadias pagas a um lote de outras galerias de renome internacional e ainda se convidaram coleccionadores de todo o mundo (incluindo portugueses). Para preencher espaço vago e dar o exemplo, regiões, fundações e empresas mostraram as suas colecções, ou os seus bolseiros, no piso central do pavilhão da Casa de Campo — este ano utilizado pela última vez. Assim, o Arco pode continuar a ser uma das frentes da afirmação cultural espanhola e este ano voltou a revelar-se um notório êxito de público (mais de 130 mil visitantes); quanto a resultados, em qualidade expositiva e em vendas, o balanço afigura-se positivo.
FEIRA DE VIZINHOS
Como o panorama já não autoriza euforias e especulações, as estratégias
das galerias e também as práticas artísticas adequam-se às novas
condições, com menos presenças internacionais de ponta e menos
novidades, com mais pequenos formatos e mais obras nos «mediuns»
tradicionais, e, acima de tudo, com reforço substancial das presenças
espanholas e maior equilíbrio entre a «arte jovem» e os valores
estabelecidos. A feira é mais feira e é mais nacional. Talvez seja esse
o rumo certo, depois dos anos em que se quis acreditar que «a vanguarda
é o mercado». É certamente positivo que o não seja.
«O Arco mais conservador. O risco e a experimentação dos anos 80
sepultados pela actual crise económica», resumiu o «El País», na pressa
da primeira visita, ao lado de outro título onde lhe chamava «Feira de
vizinhos». A capa do «ABC de las artes» propunha uma outra síntese:
«Mais espanhol que nunca. Os estrangeiros perdem terreno. Retirada das
modas. Aposta nos jovens. Ganha o pequeno formato». «O grande problema
do Arco é que o coleccionismo espanhol só adquire arte nacional», disse
a galerista Soledad Lorenzo em resposta a um inquérito.
O «esfriamento» do mercado, que já não vive, no entanto, uma situação
de estagnação, é propício a uma visibilidade acrescida da realidade
plural da criação artística, com os seus diferentes ritmos, segmentos e
círculos nacionais. Se foi a crise que esbateu as excessivas ilusões
cosmopolitas e travou um ritmo de circulação artística que era em si
mesmo auto-destrutivo, o que vem agora à superfície é, afinal, não o
«regresso à ordem» mas a ordem real das coisas: os mercados nacionais
são o suporte natural e insubstituível de cada um dos sistemas
regionais; a invenção não ocorre a um ritmo constante e pré-programado;
a qualidade, em arte, é a excepção.
Este ano, as galerias presentes em Madrid foram em número de 143, com
apenas 57 estrangeiras (no ano de 1990 estas elevavam-se a 146...),
incluindo 11 belgas e sete portuguesas, seis americanas e 11 alemãs.
Ausência total da França, que ainda tivera cinco galerias em 93.
As quatro únicas vindas da Grã Bretanha, Annely Juda Fine Art, New Art
Center, Waddington e Gimpel Fils, mais a Marlborough, com filial em
Madrid, e a americana Pace Wildenstein, estabeleciam no piso superior o
reduto inultrapassável do segmento mais estável do mercado de arte
internacional e asseguravam (artificialmente ou não) a qualidade e o
prestígio da feira — de Rodchenko, Malevitch e Schwitters, ou Picasso,
a Magdalena Abakanowicz, Avigdor Arikha e Auerbach, a Baselitz,
Schnabel e Sean Scully, ou Paula Rego. Apesar do regresso de Leo
Castelli, era no piso inferior, onde se concentravam habitualmente as
galerias de «ponta», que as ausências e os desiquilíbrios de qualidade
mais se faziam sentir.
Com dez galerias seleccionadas pelo último comissário da Documenta, a
mostra belga não passou de um panorama regionalista, a que uma
exposição paralela («Ceci n'est pas une pomme») só acrescentava mais
«bric-à-brac» e as presenças tulelares de Magritte e Broothaers... e
ainda a confirmação de Patrick Corillon.
Entretanto, a América Latina manteve globalmente uma posição de algum
destaque, com sete galerias do México, Colômbia, Argentina, Costa Rica
e Uruguay, onde se reafirmava a presença de uma pintura folclorista e
arcaizante, moldada pelo tradicional ex-voto e o imaginário
surrealizante, com os nomes já conhecidos de Manuel Ocampo, Arturo
Elizondo e Ray Smith. Mais importante era o regresso dos clássicos
Torres Garcia e Rafael Barradas (na Sur, de Montevideo), a completar um
panorama da Escola de Paris mostrado pela nova galeria madrilena
Guillermo de Osma, com os mesmos e também Benjamin Palencia, Hernando
Viñes, Alfonso Olivares, José de Togores e Maruja Mallo, que estavam
entre as boas «surpresas» do Arco, a confirmar revalorizações de nomes
insuficientemente lembrados que se prolongavam fora do Arco.
Mas não se dirá que faltavam em absoluto as novidades ou os novos: os
pequenos Tàpies de 93 mostrados por Pace Wildenstein são excelentes,
Thomas Schütte tinha na Christian Stein uma peça, também de muito
pequena dimensão, que se pode tomar como emblemática de sensibilidades
actuais em torno dos corpos ameaçados (a par da instalação mais
retórica de Juan Muñoz, na alemã Konrad Fischer), e Croft, Chafes e Ana
Jotta devem ser tomados como representativos de novas emergências
autorais.
AFIRMAÇÕES PORTUGUESAS
De um ponto de vista nacional, pelo menos, o mais importante do Arco
era a presença portuguesa, concretizada por uma posição
maioritariamente afirmativa, embora em dois distintos níveis de
interesse.
Num primeiro plano, onde se soma a qualidade global e a coerência da
selecção, a apresentação de obras inéditas ou a escolha museológica (e
também o conveniente êxito comercial), é possível situar quatro
galerias: Alda Cortez (com obras inéditas de Ana Jotta, Rui Chafes e
José Loureiro, e também José Pedro Croft, Miguel Branco, Pedro Sousa
Vieira e Paulo Quintas), Pedro Oliveira (Alberto Carneiro, Gerardo
Burmester, Manuel Rosa, Jorge Martins, Michael Biberstein, Julião
Sarmento, Pedro Proença, Júlia Ventura, Fontecuberta, Donald Baechler e
Bill Beckley), Luís Serpa (com peças já «históricas» de Sarmento, de
1982, Cristina Iglésias e Pedro Cabrita Reis, e ainda Biberstein,
Manuel Baptista, Rui Sanches e Pedro Calapez) e a estreante Arte
Periférica (de Massamá), com uma mostra individual de pintura de Rui
Serra, de forte impacto.
Especial referência deve ser feita aos novos trabalhos de Ana Jotta
(panos bordados, com desenhos e escritas, que brevemente se verão em
Lisboa), às últimas esculturas de Rui Chafes, utilizando tubagens
metálicas que conservam a referência bélica mas se organizam em peças
de parede e de chão com uma diferente afirmação formal, e ainda às
pinturas de José Loureiro, com passagem exploratória por Lichtenstein.
Pelo seu lado, o muito jovem Rui Serra (n. 1970) prolongou a série
sobre Las Meninas de Velazquez (Arte Periférica, 93) em três novas
versões de grande formato e uma instalação onde desconstroi o quadro de
referência em telas separadas (e sempre duplas, articuladas), isolando
cada personagem ou a sua transposição esquemática e depois
reconstituindo a unidade da pintura numa montagem espacial penetrável
pelo espectador. É a reafirmação de um artista de grande interesse,
onde a vontade de «pureza» conceptual e a proeza técnica (ambas
gráficas) se mostram com uma energia declarativa ainda marcada por um
excessivo peso de intencionalidade teórica.
Num segundo nível de eficácia é possível situar as representações das
galerias Graça Fonseca (com Graça Coutinho, João Paulo Feliciano,
Leonel Moura, João Louro, João Tabarra, A. Cerveira Pinto e Cristina
Ataíde — aqui, a pouca coerência da selecção agravava-se pelo
envelhecimento rápido de um «neo-conceptualismo» dependente), Palmira
Suso (outra estreia em Madrid, com Charrua, Sérgio Taborda, Domingos
Rego, Jaime Lebre e as fotografias de Philip-Lorca di Corcia) e Novo
Século (Carlos Barroco, Jorge Camões, Romualdo, Rogério Silva,
Francisco Feio, Saldanha da Gama).
Fora das galerias portuguesas, importa ainda assinalar que se
encontravam presentes no Arco Paula Rego, no New Art Center, de
Salisbury, Grã-Bretanha (com uma tela de 1985, On the Beach, de 200x239
cm, pela qual se pediam 18 milhões de pesetas; a pintora era igualmente
anunciada na Marlborough); José Pedro Croft, na Fúcares (onde o Museu
Rainha Sofia adquiriu uma das suas peças, para somar às compras já
feitas no ano passado de uma escultura e dois desenhos); Sarmento, na
Persano, de Turin; Cabrita Reis, na Juana da Aizpuru; Leonel Moura, com
três trabalhos na Oliva Arauna; e ainda, mas mais discretamente, José
de Guimarães, com pequenos papéis na Michael Schultz, de Berlim.
São sinais que as circulações de artistas portugueses no exterior
continuam, apesar da inexistência de políticas oficiais afirmativas
neste sector (recorde-se o escândalo da ausência em Veneza).
Entretanto, também em Madrid surgiram interessantes propostas de
trabalho com galerias estrangeiras envolvendo nomeadamente Croft e
Chafes.
A propósito, vale a pena referir duas iniciativas próximas de
representação de artistas portugueses no exterior, com particular
significado pelas instituições e os comissários implicados: já a partir
de 8 de Abril, no Drawing Center de Nova Iorque, sendo comissário Dan
Cameron, apresentar-se-á uma colectiva de desenho com Ana Hatherly, Ana
Jotta e Joana Rosa, Gaetan, Pedro Proença e Rui Chafes; a 2 de Junho,
numa prestigiada instituição das proximidades de Paris, La Ferme du
Buisson, estarão presentes José Pedro Croft, Rui Chafes, Rui Sanches,
Pedro Calapez, Miguel Ângelo Rocha, Francisco Rocha e Pedro Proença,
numa mostra comissariada por Chantal Cousin Berche.
Fora da feira, um outro acontecimento nacional foi a inauguração de uma
exposição promovida pelo colectivo que se intitula Centro Cultural de
Lisboa para a abertura da Galeria Bianca de Navarra, dirigida por
António Prates (que em Lisboa orienta a Galeria S. Bento e o Centro
Português de Serigrafia). Nessa mostra, que se anuncia como a primeira
de uma série de seis e pretende tirar partido da actual capitalidade
cultural de Lisboa, participam Pedro Portugal, Fernando Brito, Sanita
Pintor (Manuel Vieira), João Louro e Paulo Mendes: o estilo «Ases da
Paleta» (Quadrum, 1989) dos três primeiros, assente na exploração de
achados de humor visual em torno de referências nacionais (a bandeira,
o mapa, a história mítica), encontra-se aqui, em situação de claro
ascendente, com outra atitude que se pretende mais «conceptual» de
Louro e Mendes, igualmente em suportes de pintura. O efeito de diversão
ficou assegurado.
À DESCOBERTA DA ESPANHA
O momento do Arco é tradicionalmente marcado por uma excepcional
concentração de exposições em Madrid. Não foi o que aconteceu este ano,
apesar da importância da retrospectiva de Bruce Naumen no Rainha Sofia,
onde também se exibem actualmente os videos históricos de Nam June
Paik. O que marca o panorama madrileno, também no exterior da feira, é
a atenção prioritária aos autores nacionais, actuais e passados, o que
parece corresponder tanto a uma revisão do voluntarismo cosmopolita
anterior como a uma reorientação da iniciativa institucional para a
recuperação de um passado histórico que foi ocultado pelo franquismo e
ignorado pelos primeiros tempos da democracia.
Não se trata de um fechamento nacionalista, já que se mantêm grandes
iniciativas de circulação internacional ao mais alto nível de qualidade
e de impacto (e anuncia-se uma retrospectiva de Beuys, em Março, no
Rainha Sofia). Quanto a Bruce Naumen, por exemplo, é significativo que
a selecção das suas obras — magníficas e terríveis na sua dimensão de
radical questionamento da arte e da sua relação com o corpo individual
e social — se tenha inaugurado em Madrid e só depois fará a sua
digressão americana, por Minneapolis (no Walker Art Center, que foi o
responsável pela sua organização), Los Angeles, Washington e Nova
Iorque, já em 1985.
Ao mesmo tempo, uma grande exposição no Prado revisita o mais
«verdadeiro» Goya através de uma escolha de quadros de gabinete,
esboços e miniaturas, intitulada «El Capricho y la Invención», que a
seguir irá à Royal Academy em Londres (de 18 Março a 12 Junho) e ao Art
Institut of Chicago. A investigação, prolongada num catálogo magnífico,
esteve a cargo de Juliet Wilson-Bareau (Slade/Oxford) e de Werner
Hofmann. Na Fundação Juan March, mais Goya, com a integral da obra
gravada.
No Rainha Sofia, mostram-se também «Picasso Gravador» e «Artistas
Españoles», em obras dos anos 80 e 90 das colecções do Museu — neste
caso, uma mostra incompreensível, que vai de Esteban Vicente (n. 1903,
instalado em Nova Iorque) e Palazuelo até a alguns artistas das mais
novas gerações, numa escolha dominada por critérios que exemplificam a
pior estratégia museológica: a dispersão das compras e a generalização
dos formatos imensos.
Outra iniciativa oficial, apresentada no Palácio de Velazquez pelo
Centro Nacional de Exposições, exemplifica uma linha aprofundada de
investigações da história nacional, sob o título «Centro e periferia na
modernização da pintura espanhola, 1880-1918», também acompanhada por
um enorme catálogo erudito .
No panorama das galerias, o destaque vai mais uma vez para Barceló, na
Soledad Lorenzo, com uma nova série de pinturas («ateliers», sobre
telas atravessadas por grandes rugas) e bronzes, e também para as
esculturas de Pablo Gargallo, na porta ao lado, a da Marlborough. E nas
margens institucionais as opções são ainda as mesmas: «Arte abstracta
espanhola», através de obras da colecção do Banco Central Hispano, ou
«Realismos», no Centro Conde Duque, na esteira do êxito e das polémicas
em torno de Antonio López, o pintor filmado em El Sol del Membrillo.
«Artistas espanhois de Paris. Praga 1946» é, entretanto, uma mostra
particularmente original no contexto destas revisões históricas, pela
qual Javier Tusell e Alvaro Martínez-Novillo procuram reconstituir e
estudar uma grande exposição realizada meses depois do fim da Segunda
Guerra, quando os artistas exilados em Paris, sob a ocupação, confiavam
no rápido regresso a uma Espanha democrática. «Arte na Espanha
Republicana. Artistas espanhois da Escola de Paris» era o título
original, cujo sentido pretendia reatar com a memória do pavilhão
espanhol na Exposição Universal de Paris de 1937.
Ao lado de Picasso e de Julio González expunham então Oscar Domínguez,
Luis Fernández, Hernando Viñes, Francisco Bores, Apel.les Fenosa e
também os mais jovens Antoni Clavé e Manuel Viola, entre outros. Se
globalmente se evidencia como os anos 30/40 foram, em geral, tempos de
apaziguada modernidade, construída sobre memórias cubistas e «fauves»,
a exposição é ainda o desbravar do passado pouco conhecido e muitas
vezes dramático de uma «geração perdida» onde se localizam algumas
fortes individualidades criativas, e surge como um modelo de
iniciativas que falta realizar em Portugal, enquanto ainda estão vivos
os protagonistas ou as testemunhas dessas décadas difíceis.
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A MAIS importante exposição que se apresentava em Madrid por ocasião da Arco (e até 14 de Maio) era a da colecção Jan e Marie-Anne Krugier-Poniatowski, no Museu Thyssen-Bornemisza – a par da retrospectiva de Louise Bourgeois no Rainha Sofia, já encerrada. Reune mais de duas centenas de obras, desenhos, quase sempre, e apenas 18 pinturas ou esculturas, que vêm do renascimento italiano renascentista (com a presença anterior de alguns «ídolos» ibéricos e uma escultura egípcia) até 1990 (um auto-retrato de Zoran Music), incluindo algumas obras dos anos 40-70 de Bonnard, Morandi, Giacometti, Wols, de Kooning, Diebenkorn, Germaine Richier e Picasso, que proporcionam uma visão subtil da modernidade. O seu título, «Miradas sin Tiempo», pretende sublinhar que sob a diversidade de obras distanciadas por cinco séculos (ou mesmo três milénios) existe «um fio condutor que lhes confere uma certa homogeneidade», como «um jogo de afinidades através da história».
É muito discutível a defesa da intemporalidade ou eternidade como elemento essencialmente distintivo da obra de arte, e tal argumento tornaria impossível o relacionamento com os trabalhos do presente. No entanto, perante um mercado cultural que pretende fazer da «arte emergente», da «arte jovem» e das novas tendências o seu estímulo principal, adoptando por modelo o ritmo da moda e da música popular, compreende-se a intenção polémica com que Tomás Llorens, director do Thyssen e uma das grandes figuras da crítica espanhola, apresenta a exposição.
Mas, por ocasião da Arco, seria talvez mais proveitoso transpor a questão do tempo do olhar para o lado do observador, confrontando a exigência de um relacionamento disponível e demorado com cada obra (um olhar sem tempo, esse sim) com a massificação, acumulação e velocidade que correspondem às condições de visibilidade de uma feira de galerias. Jean Krugier, além de grande coleccionador, é um famoso galerista estabelecido em Genebra e Nova Iorque. Expor a sua colecção privada no museu do coleccionador Thyssen tem um sentido acrescido por ocasião da Arco.
É de um ponto de vista muito diferente que o crítico José Jiménez se pronuncia sobre a Arco no número de Fevereiro da «Revista de Ocidente», ocupado por um dossier sobre a arte em Espanha na viragem de milénio: «Que uma feira comercial como Arco, cuja existência e continuidade é algo extremamente positivo, continue a ser, ano após ano, o maior acontecimento da arte em Espanha abona muito pouco a favor das nossas instituições artísticas».
O quadro aí traçado é bastante céptico sobre a criação espanhola posterior às gerações de Tàpies, Chillida e Saura, e, em especial, quanto à respectiva projecção internacional. Mas é também a concentração das iniciativas oficiais na área do património e dos artistas históricos que é responsabilizada por uma situação geral depressiva que a euforia anual da Arco não chega a encobrir. Por ocasião da feira e das eleições, o director-geral de Belas Artes veio revelar que durante os quatro anos da última legislatura o seu Ministério dispendeu 14 mil milhões de pesetas (perto de 17 milhões de contos!) na aquisição de obras de arte destinadas a enriquecer o já riquíssimo património dos museus – incluindo um Goya por 4.000 milhões e obras de Picasso e Miró para cobrir as «falhas» das colecções públicas. É discutível a dupla opção estratégica do governo conservador (Arco e património), mas a diferença abismal com o caso português (500 mil contos de aquisições em quatro anos?) é inquietante...
Quem acreditar que a visita à feira de Madrid proporciona uma informação fidedigna sobre a actualidade artística internacional (quanto à produção mais mediatizada que circula nas bienais internacionais ou nas iniciativas da rede Saatchi, por exemplo) incorre num equívoco. O que não significa que para os largos milhares de portugueses que desaguam em Madrid, correndo da Arco para os museus, esta não seja uma oportunidade para contactar com um universo muito mais dinâmico. Para além da predominante oferta espanhola, que também é apresentada nas galerias internacionais, imperam na feira as obras (os formatos e as disciplinas) que mais facilmente possam ser absorvidas pelo reduzido mercado nacional, e os artistas de maior notoriedade, quando estão representados, surgem quase sempre com trabalhos menores ou de pequena escala.
Mas também é indispensável reconhecer que, com o estímulo da favorável situação bolsista, a Arco voltou a conhecer este ano uma notória elevação de qualidade e animação. Em resposta às críticas das galerias excluídas e às alegações contra um mercado orientado pelas instituições, os organizadores optaram por uma fuga em frente: aumentaram os sectores da feira destinados às galerias estrangeiras convidadas e os espaços de representação das instituições regionais e mecenáticas espanholas, ao mesmo tempo que abriam o comité de selecção a um número considerável de directores de museus e sobrepunham à vertente mercantil da Arco um programa intensivo de conferências de comissários e museólogos de todo o mundo, que segundo o «El País» parecia fazer concorrência aos cursos de Verão da Universidade Menendez Pelayo.
A estratégia continua a ser discutível mas foi, em geral, bem sucedida. Às grandes galerias internacionais que asseguram a presença de uma oferta histórica e «conservadora» (com a Gmurzynska de Colónia e a multinacional Marlborough à frente) somou-se um largo sector de mostras individuais seleccionadas («Project Rooms») ou de representações comissariadas (América Latina, Países Baixos, Estados Unidos, Leste Europeu, Colónia-Berlim e alguns casos avulso sob o nome «crossroads»), onde o sector «cutting edge» (a «arte emergente») podia ser observada, em diversos casos, como reveladora de uma tensão entre a globalização da informação e a procura de afirmações localistas. Nesse área «de ponta» situaram-se duas galerias portuguesas: a Luís Serpa com uma projecção vídeo de Ângela Ferrera, já mostrada em Lisboa e entretanto destinada à colecção do Centro Galego de Arte Contemporânea, e a Pedro Cera, estreante na Arco, com as pinturas em vidro de Gil Heitor Cortesão e memórias transportáveis da recente instalação da japonesa Tomoko Takehashi, entre outros artistas.
Já a presença oficial da Itália como país convidado, cuja selecção foi confiada a um personagem demasiado gasto e pouco credível, Bonito Oliva, saldou-se por um fiasco largamente reconhecido. O comissário esteve mais interessado em demonstrar que a grandeza histórica da arte italiana não tem continuidade e em vender a sua teoria do sistema da arte, no qual os artistas ocupam um lugar cada vez menos relevante, recobrindo a sua presença mediática com um ataque aos grandes museus internacionais que tenderiam a uniformizar o gosto geral.
Portugal foi, com 17 galerias, a terceira presença internacional (se o termo se aplica ao quadro ibérico), depois das 30 de Itália e 28 da Alemanha, logo seguido por 16 norte-americanas e 15 francesas, embora nestes números se incluam numerosas galerias convidadas. Para além dos números, notou-se a larguesa dos espaços, já que foram várias as galerias que partiram da área mínima suportada pelos apoios oficiais para ampliarem os seus «stands» de 50 para 120 metros quadrados. Esse esforço continuou com o cuidado posto na selecção das obras expostas e o resultado foi globalmente favorável. As vendas confirmaram-no, sendo de sublinhar que, para além dos clientes nacionais, surgiram em maior número os coleccionadores estrangeiros.
À galeria André Viana, do Porto, terá pertencido a representação mais forte e de maior risco, desde logo pela presença de duas grandes esculturas do inglês Tony Cragg. Também em destaque, esteve Miguel Palma, com uma paisagem construída como relevo de parede, uma «cidade futura em miniatura» intitulada Regulamento, que foi este ano a única obra portuguesa adquirida pela Fundação Arco, por selecção de Dan Cameron e María Corral. Sem o peso retórico de outros «dispositivos» do autor e podendo ser vista mais como um comentário irónico sobre recentes «regressos à paisagem» do que como uma obra crítica com intenção ecológica, é certamente o seu trabalho mais interessante desde os combóios e carros de cimento com que apareceu há anos. Com uma peça também de parede, que não importará classificar como pintura (silhuetas de corpos caídos traçadas sobre um grande suporte com textura de tapete), Patrícia Garrido foi outra presença bem visível, a par de duas fotografias, retratos intimistas, de Daniel Blaufuks.
A Quadrado Azul optou também por uma presença forte da escultura, com peças de Susano Solano (adquirida no primeiro dia pela Fundação Coca Cola), e também de Rui Sanches, José Pedro Croft e Alberto Carneiro, os dois últimos igualmente vendidas em Madrid. A enumeração das galerias não pode ser completa e, em geral, repetiria a lista dos artistas que têm apresentado. É o caso da 111, Presença, Fernando Santos, Canvas, Pedro Oliveira, Cesar, Palmira Suso, Arte Periférica, Monumental e Novo Século. Já a Porta 33, do Funchal, esteve presente com uma instalação de António Dantas, artista madeirense ligado à «mail-art», na sequência das apresentações anteriores de Rigo e Lourdes Castro, também da Madeira.
Entretanto, são significativas das recentes metamorfoses do mercado nacional as participações de Mário Sequeira, de Braga, também em estreia em Madrid, expondo Cabrita Reis e Clemente, Andy Warhol e Baselitz; e de Dário Ramos, do Porto, juntando a Sá Nogueira um largo conjunto de espanhóis, com Sicília, Tàpies, Chillida (de quem fará uma exposição individual em Março) e outros históricos como Canogar, Mompó, Saura, Millares, Rivera, Feito, etc.
Entretanto, a feira confirma a inclusão regular de artistas portugueses nas programações de outras galerias: Julião Sarmento, Cabrita Reis e José Pedro Croft na brasileira Camargo Vilaça; mais Cabrita Reis na Juana de Aizpuru, com Rui Chafes;
Croft também na Senda, de Barcelona; Fernanda Fragateiro na Elba Benítez; Helena Almeida na Estrany, de Barcelona; Pedro Calapez na Bores & Mallo, de Cáceres – sem excluir a possibilidade de outros nomes figurarem no labirinto da feira. Para além de Paula Rego, presente na Marlborough com um trabalho em pastel de pequeno formato avaliado em 19 milhões de pesetas.
Madrid, A rentrée
A «rentrée» de Madrid foi inaugurada na galeria do banco La Caixa com uma exposição conjunta de Kandinsky e Mondrian, dedicada às carreiras iniciais dos dois pintores, que já tinham sido objecto, aliás, de retrospectivas individuais mostradas na Fundação Juan March. A exposição, intitulada «Dois caminhos para a abstracção» (até 13 Nov.) e incluindo 88 obras, que assinala também o 50º aniversário da morte de Kandinsky e de Mondrian, seguirá depois para Barcelona.
Entretanto, no Centro Rainha Sofia a temporada abriu com o episódio obscuro da demissão da anterior directora, Maria Corral, substituida por uma equipe alargada presidida por José Guirao, até agora director geral de Belas Artes e Arquivos, com um subdirector, Miguel Zurara, crítico e empresário de serviços culturais, e uma comissão assessora formada por Julián Gállego, Algel González, Gloria Moure e Vicente Todoli.
Quanto à programação, ela iniciou-se com uma mostra antológica do pinto norte-americano Franz Kline (1910-1962), uma figura destacada mas menos popularizada do expressionismo abstracto, organizada pela Fundação Tàpies (patente até 21 Nov.) e também com a apresentação de Jeff Wall, um canadiano que utiliza a fotografia (até 6 Nov.). Em final de carreira pode ver-se também uma colectiva com obras de artistas estrangeiros recentemente adquiridas ou doadas; nela figuram José Pedro Croft, com esculturas e obras gráficas, e Michael Biberstein, com pinturas, mas não Cabrita Reis, uma vez que a peça integrada na colecção do Centro se encontrava na sua exposição no CAM.
O grande acontecimento da temporada será, no entanto, a inauguração, no dia 18, das exposições paralelas dedicadas ao Surrealismo Espanhol, de 1924 a 1939, e aos anos de juventude de Dalí, com obras que vão de 1920 a 1931 (até 16 Jan. 95). Miró, Picasso, Óscar Domínguez e também Dalí integram o sector intitulado «contribuição espanhola (uma presença decisiva», alargando-se a abordagem aos núcleos regionais da Catalunha, de Madrid e das Canárias, aos membros espanhois da Escola de Paris, à situação criada pela Guerra Civil e à Diáspora, num total de 200 obras escolhidas por Lucía García de Carpi e Josefina Alix. Ambas as exposições têm itinerários internacionais, seguindo a primeira para Dusseldorf, Viena, Verona e Santiago de Compostela, enquanto a segunda já foi mostrada na Hayward de Londres e no Met de Nova Iorque.
Mais tarde, a 14 Dezembro, abrirá uma ambiciosa colectiva internacional comissariada pelo crítico norte-americano Dan Cameron, intitulada «Cozido e Cru», que proporá um balanço da actualidade, da sua extrema diversidade e do seu ecletismo, com obras de 50 artistas de 26 países, incluindo um só português, Pedro Cabrita Reis.
Na Fundação Juan March, a época abriu com uma mostra de Tesouros da Arte Japonesa, relativos ao período Edo e procedentes do Museu Fuji de Tóquio (até 22 Jan.). Por outro lado, apresenta-se na Casa da América, uma importante exposição de Arte pré-colombiana com obras da colecção Barbier-Mueller, da Suiça (até 4 Dez.).
No Museu Thyssen, a colecção permanente é temporariamente enriquecida com um mostra dedicada ao século de ouro da paisagem holandesa, o séc. XVII, com obras de Van Goyen, Breenbergh, Rembrandt e, em especial, Jacob van Ruisdael, representado por dez telas (até 1995).
Quanto ao sector galerístico, o destaque do início da temporada vai para a presença de Susano Solano na galeria Oliva Aruna e para a apresentação de esculturas da artista polaca Magdalena Abakanowicz na Marlborough.
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