Portugal com a participação de 13 galerias, número record
Expresso Revista de 17-02-96
"Ilusões perdidas"
Quanto menos internacional é a feira de arte de Madrid, mais forte é a
presença portuguesa. Não há qualquer contradição, porque são os mesmos
dinamismos regionais que se vão sobrepondo às ilusões mais cosmopolitas
de outros tempos. Para quem vem de Lisboa ou do Porto, é sempre salutar
a travessia da fronteira, mesmo que o lugar de chegada seja ainda o
espaço ibérico. Mas há que não ter demasiadas expectativas.
Já não se vai à Arco para conhecer as tendências e os nomes em
afirmação no sector «de ponta» da arte contemporânea internacional,
como se podia crer há alguns anos, quando, entre 1988 e 1992, o número
de galerias estrangeiras ultrapassava o das espanholas. Esmagadoramente
dominada pelos artistas nacionais, porque em Espanha compra-se espanhol
— e, por toda a parte, o contrário é só a excepção e o topo de gama —,
é de uma feira de arte peninsular que se trata, e talvez, também, cada
vez mais ibero-americana. Tornou-se evidente, em Madrid (mas a crise
não é só madrilena, é internacional), que nenhum voluntarismo se pode
substituir às limitações de um mercado demasiado fechado sobre si
mesmo, às consequências da depressão económica e à necessária natureza
mercantil de uma feira.
No entanto, a Arco continua a ser uma feira sustentada por imensos investimentos públicos, quer do governo central e autoridades locais quer das autonomias, e nota-se que PSOE e PP, em plena campanha eleitoral, concorrem em demonstrações de amor pelas artes. Foi Valência, onde a direita chegou há pouco ao poder e não se quer mostrar menos cultural, que pagou os programas de colóquios complementares à feira; outras autonomias, além de apresentarem na Arco os novos museus, traziam verbas mais ou menos generosas para aquisições de obras (espanholas), as quais se assinalavam depois com a identificação das entidades compradoras.
Jogando na indecisão entre ambição comercial e cultural, entre vocação profissional e popular, com directores de museus e de galerias no mesmo comité organizador, a Arco é promovida como se se tratasse de uma exposição comparável às grandes bienais internacionais e usa o número de visitantes, sempre crescente, como argumento compensador da escassez das vendas. Na feira, os espaços dedicados aos museus e às colecções das regiões e das empresas antecedem os pavilhões das galerias, por entre livrarias e stands promocionais dos grandes diários espanhois ou de revistas de arte. O equívoco já chegou mesmo à atribuição de prémios, a artistas espanhois, naturamente — Lucio Muñoz foi votado por uma associação de críticos como o melhor dos artistas internacionais. E fazem-se outras compras, essas internacionais, promovidas pela direcção da feira e pagas pelo Ministério da Cultura, que não escondem o carácter de estímulo ou compensação aos galeristas que vêm de longe.
NOVOS TEMPOS
Também para continuar a atrair as galerias estrangeiras, que desertaram com a crise, lançam-se projectos especiais que justificam os convites com direito a isenção de despesas — é o que sucede com a designação anual de um país em foco, primeiro, em 1994, a Bélgica (mas nenhuma galeria belga voltou este ano), depois os Estados Unidos e agora a Alemanha. Mas o espaço alemão ficou reduzido a nove stands, com desistências de última hora, e o seleccionador responsável, Kaspar K:onig, outro homem dos museus, acabou por demitir-se. Na presente edição, foi ainda dedicado um sector próprio à «arte emergente», denominado «Cutting Edge», que serviu especialmente para encobrir o convite a oito galerias norte-americanas (num total de 13 presentes, tantas como as portuguesas).
Entretanto, a imprensa local multiplica-se em suplementos, escritos antes da inauguração da feira e tomando-a como uma bandeira do progresso espanhol. Um ou outro título vai depois traduzindo a crescente insatisfação: «A feira continua igual (continua crescendo, convencional e conformista)», segundo o «ABC», ou «As galerias querem mais vendas e menos cultura», no «El País», enquanto a galerista Juana de Aizpuru levantava um coro de protestos por chamar «merceeiros» aos responsáveis pelo «conservadorismo da 15ª edição da Arco», ou seja, pela «escassa aposta no futuro por parte de uma feira dominada pelos clássicos» («El Mundo»).
É obvio que a oferta se procura adaptar a lógica da quantidade às realidades do presente, seguindo estratégias defensivas assentes em valores tidos por seguros e em fórmulas mais assessíveis aos coleccionadores privados. As apresentações individuais tornaram-se raras e as instalações ou objectos mais ou menos heteróclitos cederam terreno aos suportes tradicionais, aos pequenos formatos e aos «cromos», antigos e modernos. A aposta no novo e nos novos, que seria o emblema da feira internacional, dá lugar à prudência dos percursos confirmados, tantas vezes entrados no regime da reedição, e também ao retorno das diferentes tradições reconhecidas da modernidade (a abstracção «lírica», as matérias, por exemplo), num processo plural em que a fuga a alguns impasses anteriores se soma à proliferação de obras convencionais, onde domina o epigonismo amável e a exibição da «qualidade».
A questão é extensa e dá passagem a debates abertos em múltiplas direcções, que vão do reexame dos discursos de legitimação estética à suspeição mais ou menos ressentida sobre as cumplicidades entre as burocracias crítico-empresariais e o mercado internacional oficioso, onde o mais «vanguardista» se tornara o mais institucional; ou da releitura da modernidade — já não como um processo, ou progresso, linear mas como uma permanente tensão dinâmica entre tradição da ruptura (a tábua rasa) e continuidade da tradição — até à reconsideração do lugar da cultura (e da crítica da cultura) num contexto onde entraram em crise as condições do bem estar social antes genericamente assegurado. Com passagem fácil aos discursos do revisionismo, que procuram arrastar as obras das vanguardas históricas com a falência das teses vanguardistas. Em Espanha, a polémica é intensa, a crítica tem dúvidas e responde às dúvidas do público. São, apesar de tudo, outros ares.
VOLTAR A VER
Mas, tão sintomática como a mudança tendencial da oferta da feira é a mutação das programações paralelas das instituições madrilenas, e são elas, mais do que a Arco, que continuam a justificar a viagem. O Rainha Sofia mostra Balthus, um pintor de muito longa carreira solitária, hoje com 90 anos, cuja obra raramente é possível ver no seu conjunto (expõem-se até 1 de Abril). Mais do que a permanência da figuração e a fidelidade aos géneros da tradição (o retrato, o nu, a paisagem, etc), é a persistência de um ofício investigado em diálogo com as obras maiores do passado e a perturbadora estranheza das imagens que lhe assegura um lugar incontornável na arte do século XX. Picasso terá sido o primeiro a comprar-lhe um quadro e a sua obra, lenta, quase secreta e difícil, irredutível à reprodução fotográfica e às traduções por «problemáticas» discursivas, continua a ser um pólo de referência para a criação actual.
Na Fundação «la Caixa» é William Blake, um visionário pré-romântico contemporâneo de Goya, que atrai multidões. No Prado impera a austeridade, mas faz-se bicha para visitar uma exposição de um único quadro, o Retrato de Inocêncio X, de Velázquez, pela primeira vez saído de Roma; em frente, a Fundação Thyssen, apresenta um projecto idêntico em torno de uma jóia da sua colecção, o Arlequim com Espelho de Picasso, «em contexto» com uma Vénus ao Espelho de Rubens e A Flauta de Pan, vinda de Paris — talvez não por acaso são peças chaves do seu período clássico.
Perante cerca de 190 galerias e um milhar de artistas, o visitante poderá, com esforço, tentar localizar os autores canónicos ou os referidos nas últimas ressensões da «Artforum», embora se arrisque a encontrar apenas pequenas peças convencionais dos nomes eleitos e grande quantidade de sucedâneos. Notará certamente que, na passagem da instalação museológica para o suporte negociável numa feira, há muitas autorias famosas que se esvaiem sem remissão. Concluirá que muitos mestres recentes sobrevivem mal e suspeitará que, depois da citação e do simulacro, as vogas do multicultural, feminista ou homossexual se prolongam como um exotismo amaneirado (Ana Mendieta já morreu em 1985, assassinada por Carl Andre). Mas no sector «Cutting Edge» a presença da Galeria Camargo Vilaça, de São Paulo, tinha uma afirmativa presença, com Adriana Varejão, Leda Catunda e Cravo Neto, Jac Leiner e Doris Salcedo.
Entre os alemães, com a colecção Deutsch Bank a comprovar um situação fortemente regionalista, a hipótese de descoberta residirá em dois ignorados artistas do Leste, Hermann Glöckner e Carlfriedrich Claus — e não na actividade escolar dos Merz, Förg, Knoebel, Dorner, Oehlen, West ou Trockel.
Outro percurso do olhar poderia partir de Paula Rego e da sua inquietante natureza morta de 1994, para se descobrir que uma modernidade libertada de interditos e de fórmulas, onde a vontade de reaprendizagem dos poderes da imagem se junta ao carácter vital da criação, ocupa hoje o centro da actualidade, mas não o seu terreno mais fácil. Os desenhos de Kitaj e a pintura do natural «alla prima» de Aricka (uma raríssima tradição), como as obras de Bacon e Auerbach, sempre na Marlborough, fazem parte do mesmo território — que é também o de Balthus. Noutro lugar, descobria-se a sentida violência, a da guerra e a da pintura, de Zoran Music, bem acompanhado por Morandi e Giacometti, ou por Gnolli. Oito desenhos de Matta, de 1939 a 45, em progressiva distância de Gorki, uma colagem circular de Schwitters, a inventiva abstracção de Sean Scully, eram, ao acaso, outras presenças que não se vêem todos os dias.
Entretanto, dois trabalhos de muito pequena escala de Thomas Shütte e de Tony Oursler surgiam como comentários ajustados à imensa cacofonia da feira, oferecendo ao espectador o espelho dos seus fantoches torturados.
17-02-96
2 "A flecha portuguesa"
Não era só a participação de 13 galerias, um número record, que fazia de Portugal uma presença notada na Arco. A intervenção nacional começava pelo próprio cartaz da feira, para o qual foi utilizado um foto-grafismo digitalizado de José Drummond, escolhido na edição anterior pelo crítico-comissário João Fernandes, e projectava-se já para o futuro com o anúncio de que em 1998 será Portugal o país convidado (em 97 a atracção será a América Latina, este ano com 12 galerias). É uma abertura que Madrid substitui à regra anterior de oficial desconhecimento do vizinho ocidental, talvez o sinal de uma viragem diplomática em resposta às cumplicidades regionais que se vão esboçando entre zonas periféricas.
A dominar as representações institucionais, na zona de entrada da Arco, impunha-se a maqueta do edifício que Siza Vieira projectou para o Centro Galego de Arte Contemporânea, de Santiago de Compostela. Recentemente entrado em actividade regular, sob a direcção de Gloria Moure, é agora um dos espaços espanhois com programação mais avançada, a demonstrar que a Xunta de Galicia de Fraga Iribarne não se quer provinciana — expõe neste momento Boltanski, Feliz Gonzalez-Torres e Juan Munõz, além da colecção da Fundação Arco, aí depositada por três anos, e dispôs de 15 milhões de pesetas para compras na feira. As opções são questionáveis mas mostram que em Serralves é a distracção impera.
Outro museu, mais discretamente apresentado, o MEIAC de Badajoz, inaugurado em 95, dava a conhecer uma linha de programação voltada para a arte estremenha, portuguesa e latino-americana. Adiante, era o Centro Cultural de Belém que se fazia representar, mas com uma modéstia de meios que tem de se considerar desajustada à responsabilidade do pólo lisboeta.
De Portugal se tratava ainda no pavilhão do jornal «ABC», onde se mostravam as ilustrações originais de Almada Negreiros para a revista «Blanco y Negro», memórias de um exílio madrileno entre 1927 e 1932. São estilizações de figurino mundano, corrigindo com ornamentação de mão pesada e sentimental as dificuldades do desenho.
Entretanto, a presença de artistas portugueses em galerias espanholas confirmava a conquista de algumas projecções exteriores, que a Arco tem estimulado: Rui Chafes na Fúcares, com peças inéditas de sempre segura invenção; José Pedro Croft na Luis Adelantado (onde fará uma exposição individual em Março); Cabrita Reis na Juana de Aizpuru, com quatro auto-retratos que se reconheciam como uma das imagens fortes da feira — também expostos na galeria Luis Serpa —; Julião Sarmento na Miguel Marcos com obras conhecidas (e outras na italiana Persano, na Pedro Oliveira e Palmira Suzo). Também em galerias não-espanholas podiam ver-se Joana Rosa, na John Weber de Nova Iorque, José de Guimarães (Michael Schultz, de Berlim, mais Fernando Santos e Quadrado Azul) e, em especial, Paula Rego na Marlborough, o empório multinacional.
Entretanto, uma obra de Croft foi adquirida para a I Bienal de Pamplona, marcada para Junho; a Fundação Pilar e Joan Miró, de Palma de Maiorca, anuncia para o final do ano uma exposição de Pedro Calapez, que trabalhará a partir da obra do pintor espanhol, e Cabrita Reis terá em Setembro uma mostra antológica no IVAM, de Valência, apresentada antes em Essen.
Fora da feira, a galeria Elba Benitez reunia trabalhos de Fernanda Fragateiro, Joana Rosa, Júlia Ventura e Miguel Ângelo Rocha numa exposição integrada no projecto «Peninsulares», comissariado por João Fernandes, que teve extensões a Barcelona e Valência, com favoráveis ecos de imprensa.
Mas outra intervenção nacional esteve na origem do escândalo maior da Arco: um desenho de Julio González roubado por dois portugueses em Madrid, num caso que envolveu o assassinato do coleccionador, foi apreendido na galeria Waddington, depois de leiloado em Londres. A história começou 1993, com obscuras sequelas por averiguar.
Quanto às 13 galerias, o panorama era naturalmente diversificado e também tão desiquilibrado quanto tem de ser um retrato realista dos vários agentes, artistas e níveis de produção presentes no mercado. Para as galerias portuguesas, a Arco continua a ser uma estimulante oportunidade de confronto internacional (ou melhor, ibérico), assegurando uma visibilidade exterior que tem também consequências no consumo interno, já que muitos coleccionadores gostam de decidir em Madrid, no clima fervilhante da feira, algumas aquisições que por cá deixaram adiadas. Para a viagem apuram-se as estratégias e as selecções de cada galeria, estreando-se, em certos casos, novas direcções de trabalho dos artistas.
Graças ao apoio financeiro assegurado por um protocolo firmado entre a SEC (Instituto Português de Museus) e as Fundações Gulbenkian e Luso-Americana, os custos da aventura madrilena tornam-se facilmente acessíveis a qualquer galeria e, este ano, só a selecção feita pelo comité da Arco pôs travão a várias outras candidaturas. Esse será, como é óbvio, o único critério válido para regular a atribuição dos subsídios, certamente imprescindíveis e de consequências já provadas, como se foi atrás sugerindo.
No conjunto, podiam destacar-se quer o impacto da colectiva internacional apresentada por Luís Serpa — juntando obras de Tony Cragg (de 1981), Sicilia (85) e do alemão Klingelhöller (91), por exemplo, a obras recentes de Calapez e Blaufuks —, quer a aposta da Valentim de Carvalho numa individual de Palolo, revelando uma nova série de trabalhos sobre papel.
Graça Fonseca, que é a representante portuguesa no comité da feira, optou pela conjunção conflitual de duas estratégias divergentes, ao somar os objectos-esculturas de Graça Coutinho, Cristina Ataíde e António Campos Rosado às participações de pretexto anedótico-desconstrutivo de João Louro, João Tabarra e Paulo Mendes, este reeditando à escala do «gadget» os escândalos de Paul McCarthy.
Pedro Oliveira e Alda Cortez deram continuidade à defesa dos artistas com que trabalham, com uma segurança sem surpresas, em que é possível destacar os inéditos de Pedro Proença e de José Loureiro, respectivamente. Na Palmira Suzo, um grande touro de ferro soldado apresentava Jorge Vieira, a par de pinturas de Pedro Chorão e Gonçalo Ruivo, mostrando três gerações, enquanto a Arte Periférica defendia um grupo de artistas muito novos, com destaque para Rui Serra e Fátima Mendonça, e com novas obras de positiva evolução de Rui Cambraia e Vanda Vilela. Na Monumental propunha-se uma contraposição de insólito efeito entre as fotografias digitalizadas de José Drummond e pinturas de modelo nu de Manuel San Payo, enquanto a Novo Século jogava na diversidade e talvez no humor dos objectos.
Com a Fernando Santos era outra estratégia de trocas internacionais que se seguia, com obras de Penk, Pat Andrea e Antonio Seguí, mais Guimarães e Isabel Pavão — a 1 de Março é com o espanhol Saura que inaugura uma nova galeria em Lisboa. Na Quadrado Azul surgiam trabalhos em papel de Susana Solano e também Leonel Moura, Manuel Casimiro e Ângelo de Sousa. A Gilde, de Guimarães, mostrou caixas de objectos encenados de João Motta, uma estreia, o americano David Brody, Rocha da Silva, Skapinakis e mais Casimiro.
Por último, no sector «Cutting Edge», a Zé dos Bois (tradução para Joseph Beuys) tinha quase o exclusivo das novas tecnologias muito anunciadas para a Arco — com a Aula do Risco, entre os projectos institucionais —, apresentando em imagens virtuais exposições do seu grupo de artistas, mas só aos visitantes dispostos a aceitar uma longa espera.
Da lista geral não se tiram conclusões. Excepto a de que nenhuma marca nacional identificava colectivamente a diversidade das obras.
Comments
You can follow this conversation by subscribing to the comment feed for this post.