Expresso Cartaz, 24/2/2001, pág. 8
A magia do real
Balthus (1908-2001), uma obra contra as rupturas do séc. XX
AO LONGO DE UM SÉCULO que cultivou as rupturas, Balthus personificou a continuidade do ofício da pintura, aprendido com os mestres antigos. Nunca se associou a movimentos, nem a obra se pode definir numa fórmula. Durante décadas envolveu a biografia em mistério e fez da sua pintura realista, não fotográfica mas realizada diante dos modelos ou da paisagem, uma afirmação de estranheza, a revelação dos poderes do sonho ou da magia. Controverso e alvo de juízos contraditórios, marginal à sucessão finalista das tendências modernistas, combateu o academismo usando métodos conservadores e dirigindo a Academia Francesa em Roma.
Autor de uma obra lenta e escassa (terá pintado cerca de 300, foi primeiro um pintor de culto, mais admirado por artistas e escritores, até ser descoberto pelo grande público, em parte devido à escandalosa intensidade erótica das suas adolescentes expostas e expectantes. Às insinuações de pornografia, respondeu em anos recentes com argumentos insólitos: «A minha pintura é uma espécie de oração para celebrar a beleza divina». Camus escrevera no prefácio de uma exposição de 1949: «Aprendemos que a realidade mais quotidiana pode ter este ar insólito e longínquo, a doçura sonora, o mistério velado dos paraísos perdidos. Balthus pinta vítimas mas significativas. Uma faca, nunca o sangue. (...) Não é o crime que lhe interessa, mas a pureza.»
Faleceu no domingo passado quase com 93 anos, no seu «chalet» suíço do séc. XVIII, na companhia da segunda mulher, Setsuko,uma japonesa 35 anos mais nova que retratou em La Chambre Turque, de 1963-66. Foi um casamento ecuménico com o extremo-oriente e a cultura clássica chinesa, por parte de um pintor erudito e autodidacta. A formação adquiriu-a nos museus, como ainda era frequente nos anos 20-30, copiando Poussin no Louvre e depois em peregrinação pelos frescos de Giotto e Piero della Francesca.
Durante muitos anos o pintor não se deixou fotografar, não deu entrevistas, nem revelava quando e onde nascera, negando que os elementos biográficos servissem para interpretar a sua obra. «Recuso-me a qualquer confidência e não gosto que se escreva sobre arte», foi a única referência pessoal autorizada num livro editado nos anos 40.
Balthus era um diminutivo usado em criança, e o mundo imaginário e perverso da infância é o território de eleição da sua pintura. Decidiu intitular-se Conde Balthasar Klossowski de Rola, atribuindo-se antepassados aristocratas com um brasão vindo de 1044. É mais certo ter nascido em Paris, em 29 de Fevereiro de 1908 (por isso, no último aniversário dizia ter só 23 anos), numa família de ascendência polaca, arruinada e particularmente bem integrada no meio artístico - pai crítico e historiador, mãe pintora. Aos 13 anos publicou um caderno de desenhos sobre um gato desaparecido, que foi prefaciado por Rainer Maria Rilke. Pierre Bonnard, Gide, Derain, Matisse frequentavam a família. Mais tarde, foi amigo de Picasso e de Giacometti, conselheiro de Malraux. A primeira exposição, em 1934, foi descoberta por Antonin Artaud e muito apreciada pelos surrealistas.
O seu último quadro foi exposto na National Gallery de Londres, em 2000, num último encontro com Poussin ("Encounters"). No Museu de Sintra existe um estranho retrato feminino, de 1935, da Colecção Berardo.
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