Da vida das imagens
Expresso Revista 16-03-96
QUANDO a arte do século XX está à beira de deixar de se poder dizer contemporânea para se tornar a arte do século passado, Balthus é um dos artistas que assegura a passagem da pintura para o próximo século, precisamente porque a sua obra não pode ser vista apenas como um episódio na história dos gostos, das vanguardas e das crises dos últimos cem anos, que ele quase atravessou por inteiro.
A retrospectiva apresentada no Museu Rainha Sofia, em Madrid, que muitos viram por ocasião da feira Arco, e que se prolonga até 1 de Abril, é uma rara oportunidade de encontro como uma obra quase secreta, tão venerada como polémica.
São 52 os quadros expostos, desde as primeiras pinturas parisienses dos anos 20 até à mais recente tela do pintor, seguindo um percurso cronológico que é, pelo menos, tão excepcional pela longevidade, que nunca se deixou aprisionar num formulário repetido, como pela originalidade do diálogo que a mestria de uma pintura "antiga» foi sempre estabelecendo com sucessivas tendências do seu tempo, mesmo quando parecia traduzir uma atitude liminar de condenação do novo.
Se algumas das suas peças iniciais mais significativas não foram dispensadas pelos museus que as expõem, o conjunto é revelador da diversidade dos géneros a que se dedicou o pintor (o retrato, o nú e as cenas de interiores, a paisagem e ainda a natureza morta, para além de se reunirem numerosos desenhos). Não faltam, entretanto, algumas das mais famosas composições dominadas pela presença das suas adolescentes de inquieto e inquietante erotismo, cujos corpos se suspendem em gestos de oferenda e retraimento, detidos no tempo em acções indecifráveis.
Foi sempre o escândalo que envolveu esta obra: à possível perversidade obsessiva das "jeunes filles en fleur», onde o nu se prolonga como tema cimeiro da pintura - mas ganhando com Balthus um novo mistério, ao mesmo tempo que a nudez se banalizava com a queda dos códigos censórios -, soma-se o extremo domínio do ofício de pintor com que se retomam todos os recursos de uma antiga tradição ameaçada, sem que a seu respeito seja possível falar de academismo.
Balthus, que parece atravessar o século à distância de todas as grandes correntes, é um dos artistas que condensam na sua obra as questões essenciais que se põem à pintura do presente, quando Arthur Danto afirma que a arte chegou ao seu fim, transformando-se em filosofia: a continuidade de uma tradição chamada pintura, muitas vezes condenada, mas, de facto, sempre duplamente presente na actualidade fascinante das obras do passado e na constante busca dos artistas actuais para lhe assegurarem a permanência ou a reinvenção. Mais especificamente ainda, a persistência de uma interrogação sobre a vida e o mundo que precisa de se moldar na criação de imagens e que tem como pólo maior de eficácia, questionante e jubilatória, a representação do corpo.
CLÁSSICO E CONTEMPORÂNEO
Balthus ocupa a estranha posição de ser ao mesmo tempo um clássico e um contemporâneo, pagando os custos dessa ousadia pela perda de qualquer lugar próprio nas histórias dominantes, onde a sua obra incontornável nunca é vista em si mesma e no momento próprio (que é também o dos anos 90), embora possa ser várias vezes usada como ilustre antecedente para legitimar um qualquer «regresso» episódico à representação e à figura. Insituável, senão a partir do realismo mágico proposto por Chirico nos anos 20, mas desenvolvido numa vertente original, a sua obra faz vacilar o discurso linear e finalista da história das vanguardas e dá à modernidade (que não é o mesmo que modernismo) a sua mais exacta dimensão de simultânea tradição de rupturas e de ressurreições.
Sempre mais admirado por artistas e escritores do que pelos críticos, ele foi-se tornando, entretanto, uma espécie de pintor de culto. Para isso contribuiu a referida longevidade de Balthus, atravessando oito décadas com uma produção tão lenta como escassa, e também o segredo em que o pintor gostava de se envolver, mostrando raramente a obra e recusando por muito tempo os dados biográficos, as fotografias e as entrevistas.
«Recuso-me a qualquer confidência e não gosto que se escreva sobre arte» foi a única referência pessoal autorizada num livro dos anos 40. Sob o diminutivo usado em criança (e o mundo imaginário da infância é o território de eleição da sua pintura, o que desde logo o situa num terreno moderno), ocultava-se o conde Balthazar Klossovski de Rola, nascido em Paris em 1908 de uma família de origem polaca, arruinada mas bem integrada nos meios culturais parisienses. Hoje, com 88 anos, Balthus prefere envolver-se numa aura aristocrática, deixa-se fotografar de quimono junto da sua mulher japonesa, o modelo de La Chambre Turque, e multiplica-se em declarações de uma vaga religiosidade oriental que é conveniente considerar sob reserva: «A minha pintura é uma espécie de oração para celebrar a beleza divina.»
Ainda que o pintor negue agora a intensidade erótica das suas figuras fatais e cândidas («uma menina é um elemento sagrado que não se pode tocar; é anti-erótico, sobrenatural, divino e angelical», no catálogo), ela é um dos elementos do culto criado à sua volta, tal como a procurada sabedoria artesanal de uma pintura «antiga» que o artista contrapôs, com o gosto da provocação, à decadência da pintura do seu tempo: «Não sou um pintor moderno, nem sequer contemporâneo. Na realidade, sou um homem medieval».
A acessibilidade imediata das suas pinturas aparentemente realistas bem como o mítico isolamento são contrariados, no entanto, por leituras mais atentas. Os seus temas mais frequentes sustentam-se por uma prática permanente da citação de inúmeras fontes históricas, retomando personagens e posições dos corpos de uma imensa galeria que vai de Piero della Francesca a Caravagio e Poussin, ao mesmo tempo que parecem veicular significados esotéricos, em cerimónias rituais e iniciáticas cuja complexidade se oferece à interminável decifração erudita.
Por outro lado, o virtuosismo oficinal que o levou a recuperar nas telas a aparência dos frescos do «Quatroccento», através das matérias granulosas e interiormente iluminadas que resultam da sobreposição das camadas de têmpera e caseína, não impede que na procurada atemporalidade da sua obra se veja um efectivo relacionamento com os seus contemporâneos. O pintor refaz a sabedoria da pintura face às direcções apostadas na sua redução a um qualquer elemento formal tido por essencial e mantém a solidez da figura quando a renovação do seu poder de expressão parecia passar pela inevitabilidade da deformação e do fragmento.
Balthus não é um solitário transplantado de outro século, mas alguém cuja obra se entretece numa teia imensa que começa com a influência de Derain e Bonnard, com quem conviveu na juventude, passa por um longo diálogo com Picasso e com Braque, e depois pela cumplicidade com Giacometti, num meio intelectual parisiense marcado por Antonin Artaud, Pierre Jean Jouve, Starobinski, Bataille e Camus, que escreveram textos decisivos sobre a sua obra.
Por outro lado, Jean Clair já sublinhou os contactos de Balthus com a Nova Objectividade alemã e com o «retorno à ordem» dos Novecentistas italianos, que conheceu enquanto estudava en Arezzo os frescos de Piero della Francesca. A recusa do surrealismo não desmente também uma próxima sensibilidade aos poderes do inconsciente e do maravilhoso, embora separando-se o pintor do que o movimento teve de demonstrativo e de disciplinado.
Autodidacta, mas filho de uma pintora e de um crítico de arte, o jovem Balthus fez a sua aprendizagem nos museus, através da cópia dos mestres; pelos anos 60, quando se instalou em Roma a pedido de Malraux, para restaurar a Villa Medicis, o pintor viria ainda a adicionar a uma cultura plástica muito vasta a descoberta da antiga pintura chinesa, dando à obra tardia o estranho carácter de um encontro entre diferentes tradições.
Dormeuse, 1943
Dormeuse, de 1943, seria uma pintura realista se o rosto sereno, a boca entreaberta, a torsão excessiva do corpo e o seio descoberto e iluminado não criassem ao olhar uma dúvida indecidível sobre a visão oferecida - o sono-sonho, a morte, a hipótese de um crime -, e se a composição espacial (o braço caído e o ângulo aberto que formam a cabeceira deslocada e a manta) não forçasse a entrada do espectador, que invade a cena como «voyeur» e interveniente da acção, diante de uns olhos fechados que podem ser uma recusa ao seu desejo. A redução extrema dos elementos sublinham o equilíbrio «abstracto» da cena, onde é provável que o pintor cite uma Vénus (e Vulcano) de Parmigianino, enquanto a matéria densa, que substitui a cor pela construção da luz, se dá a ver como superfície de pintura.
Le Chat au Miroir III, 1984-94 (então o mais recente quadro de Balthus)
Cinquenta anos depois, Le Chat au Miroir, terceiro quadro de uma série, põe em cena dois elementos inúmeras vezes presentes na sua obra, o gato e o espelho, com toda a sua carga simbólica, enquanto a figura adolescente ganha uma estranha indiferenciação sexual e temporal. O espaço indefinido marca a frontalidade do quadro e todos os panejamentos do divã, onde se retomam pavimentos perspécticos da pintura renascentista e também arabescos de tecidos orientais, apenas reforçam a planificação integral da superfície da pintura, que nenhum foco iluminante exterior vem alterar - está-se longe de todas as tradições da profundidade, e o humor é, como em muitos outros quadros do pintor, uma presença sábia. A síntese das referências ocidentais e orientais, que tem a força de um manifesto na Chambre Turc, surge aqui numa composição em que a intensidade dos valores decorativos concentra toda a atenção sobre as questão da identidade que o espelho e o gato duplamente simbolizam, num ritual talvez esotérico, talvez apenas evocativo de uma infância nunca perdida.
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