Expresso Revista de 15 out.94
FIAC, Paris
«As artes de vender»
OUTRAS feiras, como as de Basileia e Frankfurt, Colónia e Chicago, terão maior importância no terreno específico do mercado da arte ou em matéria de lançamento de novidades e orientações, mas a FIAC continua a beneficiar do valor simbólico que Paris lhe confere. Aqui, tal como sucede em Madrid, a feira é defendida como um acontecimento cultural, tanto ou mais do que como uma operação comercial. O número dos visitantes (150 mil previstos até domingo) é tido por quase tão significativo como o volume dos negócios (400 milhões de francos estimados em 1989, só 100 milhões em 1992, 150 milhões em 1993) e os ecos destas oscilações quantitativas, que são secretas noutras feiras, ultrapassam os sectores directamente implicados, proporcionando periódicas reflexões sobre o estado e o valor da arte.
Este ano, às apreensões motivadas pelo «marasmo» do mercado, expressão que se usa em lugar de crise — quando não se opta antes por valorizar o regresso à normalidade anterior, depois dos anos do «mercado hiperbólico» de 1987-90 —, juntaram-se as interrogações causadas pelo abandono forçado do Grand Palais, à espera de demoradas obras de beneficiação.
Na imensa tenda branca de 14 mil metros quadrados montada pelo Ministério da Cultura junto à torre Eiffel, o Espace Quai Branly, a feira não teve a companhia prestigiosa de Poussin e de Caillebote. O que perdeu em aparato, terá ganho em operacionalidade, com a possibilidade de uma nova arrumação dos vários segmentos do mercado que nela estão representados.
Nas 160 galerias presentes não foi alcançada a desejada equivalência entre nacionais e estrangeiras (estas apenas 67, para 71 em 150 no ano anterior e 86 num total de 159 em 1992), mas a comparência de grandes nomes internacionais como Sidney Janis e Leonard Hutton, Laura Carpenter e Paula Cooper, Waddington, Jan Krugier, Annely Juda, Hans Mayer ou Gmurzynska, a servirem de âncoras a um mercado reticente e a preencherem uma prestigiosa ala central, assegurou um panorama de excelente qualidade museográfica, embora nos meses anteriores pairasse a ameaça de uma feira apenas franco-francesa.
Por outro lado, a FIAC tentou rejuvenescer uma oferta que é, em geral, bastante tradicional com a abertura de um sector de «Jeunes galeries, nouvelles tendances», onde os novos espaços nascidos já após a crise puderam contar com stands mais adequados aos seus meios. O efeito de «ghetto», embora atenuado pela colocação próxima das galerias mais «dinâmicas» do espaço nobre, é menos desvantajoso que a antiga ocupação ocasional do piso superior do Grand Palais. No entanto, entre as 35 galerias aí presentes — Air de Paris, Galerie des Archives, Arlogos, de Beyrie, Eric Dupont, Jennifer Flay, Nathalie Obadia, Yvonamor Palix, etc. — escasseiam as estrangeiras e, por outro lado, a estandardização das opções tende para uma quase total uniformidade dos stands.
EFEITO MUSEU
TERRENO paradoxal de apresentação da arte, a que se reconhece tanto uma fatal ineficácia enquanto lugar de apresentação distintiva das obras como a oportunidade salutar de reunir as diferentes famílias que compõem a arte contemporânea, sempre separadas por paredes estanques, a FIAC é um museu e um hipermercado.
O seu pólo máximo está na galeria Jan Krugier, de Genève, que incluiu no seu espaço dois gabinetes dedicados ao «Elogio do pastel», com Degas, Vuillard, Redon, Bonnard, Arikha e um Liotard de 1785, e também à «Predominância de Cézanne», onde este surge acompanhado por Picasso e Giacometti, e até por desenhos de Tintoreto e Veronese, de insólita presença numa feira de arte dita contemporânea.
Noutros locais, ao acaso, um desenho de Artaud de 1947 (a remeter para a notável exposição no Centro Pompidou da colecção doada por Paule Thevenin), um grande Robert Delaunay de 1926, Les Coureurs, um excelente Moholy-Nagy, colagens de Schwitters e caixas de Cornell, Kupka e muitos outros esquecidos autores do Leste, Picassos variados e magníficos, numerosos Dubbuffet clássicos (a servir, a par de Chaissac, de padrão para questionar a oportunidade de alguns neoprimitivismos recentes), De Kooning, um pequeno Bacon, Kelly, Stellas de distintas fases, a redescoberta Louise Bourgeois, com uma «aranha», um totem e desenhos, um bom Barceló já de 94 na Yvon Lambert, uma construção inquietante de Chen Zen, Lands — Objectscape, na Hussenot.
Entre as famas da década passada, Baselitz, Lupertz e também Kiefer continuam a assegurar a tradição alemã, em vários lugares; Basquiat e Haring comprovam a sobrevivência de carreiras cedo interrompidas; Schnabel, Salle e Fischl, e mais ainda os italianos Paladino, Cucchi, Chia, seguidos por Nunzio e Pizzi Cannella, documentam oscilações assinaláveis de fortuna. A França, onde Combas e Blais resistem a injustas hostilidades jornalísticas e aos acidentes das cotações, continua a propor como imagens de marca a rotina de César, agora com compressões de parede que já só pretendem ser decorativas, ou Arman, com The Day After, série de móveis queimados passados a bronze, enquanto se sucede o massacre anual de novos pequenos talentos sempre servilmente elogiados, e rapidamente esquecidos, por uma imprensa reverente e chauvinista.
No sector de maior visibilidade, o que em geral se oferece é uma revisitação ampla dos clássicos da modernidade, desde as vanguardas do início do século até aos nomes mais destacados dos anos 60 e 70, com várias situações de descoberta de longos percursos desalinhados de tendências principais com obra de segura regularidade — uma situação de refúgio e dois valores em alta.
Em contraposição a um momento anterior em que a notoriedade das assinaturas justificava a hipervalorização de peças menores, tal como a projecção mediática acelerada de novos autores justificava preços superiores aos artistas de gerações mais velhas, parece assistir-se agora a um extremo cuidado com a qualidade da oferta das peças históricas, seleccionadas dos «stocks» para equilibrar os orçamentos, e também ao reordenamento de valores em função da coerência das carreiras e à correcção de excessos especulativos, por vezes com reduções de preços que vão dos 30 aos 70 por cento, quando não ocorre a simples retirada do mercado.
À «qualidade museu» soma-se, naturalmente, a predilecção mercantil pelos pequenos formatos e pelos trabalhos em papel (incluindo as técnicas fotográficas), que são mais acessíveis ao comprador vulgar, tal como o reforço dos discursos imediatamente tipificados como pintura e escultura, contra as tendências mais heterodoxas ou híbridas da instalação. Prudências legítimas que continuam com a oferta de obras amáveis de nomes famosos por propostas de maior radicalidade e com a opção demasiado frequente pelo decorativo, o efeito fácil e o «bien fini».
Em termos de comércio de arte, parece assistir-se à vontade de recuperação do pequeno e médio coleccionador, e mesmo do cliente ocasional que busca a pintura adequada à cor dos sofás, numa situação em que todos os possíveis segmentos do mercado tendem a ser respeitados na sua própria escala. É uma situação que inverte a lógica de um anterior contexto empolado a que o mercado institucional servia de confortável retaguarda e onde reinava uma nova espécie de coleccionadores profissionais ávidos de lucros rápidos. Entretanto, à deserção destes sucedeu-se a redução geral dos orçamentos públicos para a cultura, num quadro político em que se revêem todas as noções anteriores sobre o Estado Providência, e de que decorrem já as dificuldades por que passa, por toda a parte, a gestão dos centros de arte contemporânea.
REFAZER A CONFIANÇA
À lógica da prudência galerística, assente em regras de seriedade e profissionalismo que são agora universalmente prometidas, subjaz o propósito de refazer a confiança do público, extirpando os factores não saudáveis do mercado, como a circulação constante das obras à procura de mais-valias rápidas, o excesso de produção e a oferta de peças de inferior qualidade assinadas em série por artistas famosos, a desconsideração dos mercados sectoriais e dos valores tidos por regionais. É um processo que tem também efeitos numa desejável alteração das regras do discurso crítico, ao qual se exige, já não a avalização universal e indiferenciada de todas as obras, mas a afirmação de critérios de qualidade e a clareza dos princípios, ao mesmo tempo que se vão denunciando as cumplicidades informais entre galeristas, críticos e funcionários culturais como fautores de uma desconsideração profunda do campo simbólico da arte contemporânea.
Os discursos sobre a crise, depois de, em cinco anos de euforia, 85-90, o número das galerias se ter multiplicado por quatro, vão valorizando timidamente, numa situação em que a arte já não está na moda, os sinais de retoma e até considerando os recentes anos de refluxo como uma oportunidade para sanear um mercado que se deixara invadir por distorções estruturais: o desiquilíbrio entre sector público e privado (com uma partilha do mercado francês da arte contemporânea em perto de 70 por cento para o Estado e 30 por cento para os coleccionadores privados); a dependência do «cachet» ou da encomenda institucional; o choque funcional entre o circuito das galerias e o mercado dos leilões; a contradição entre o acréscimo gigantesco da produção de objectos artísticos e a voga de uma «produção teórica» que preconizava o fim da arte como um tipo particular de actividade.
Não se trataria, assim, de considerar a retoma como o sinal de arranque de uma nova espiral de crescimento, segundo um modelo idêntico à anterior, mas de equacionar novas regras de circulação, porque não é previsível, por razões estruturais, que o relançamento económico e a recuperação gradual do mercado da arte venham a autorizar a reposição de mecanismos cuja perversidade foi entretanto reconhecida.
FOTOGRAFIAS
Uma feira não é lugar propício a descobertas, que são quase impossíveis na grande cacofonia dos discursos e das mercadorias. Mas, ao sabor dos acasos e da possibilidade de reconhecimento de autores já notados, era possível distinguir o interesse de dois fotógrafos e de um autor de instalações vídeo.
Contrariando a tendência para a subordinação da fotografia às regras da exposição cenográfica, é particularmente significativo o caso de Dominique Evrald, autor de fotografias de pequeno formato, a preto e branco, que são expostas na gal. Karsten Greve (um empório com lojas em Paris, Colónia e Milão) ao lado de Louise Bourgeois, Chamberlain ou Joseph Cornell. Evrald (n. 1950, Lille), que em 1993 editou na Skira o album Part de l'Ombre, com imagens feitas entre a Colômbia e à Argélia, apresentado com prefácios de Mark di Suvero e Richard Nonas, trabalha com a imobilização da luz sobre um mundo despovoado, fazendo com o recorte dos muros, das árvores e das sombras construções silenciosas de lugares ao mesmo tempo comuns e singulares.
Outra novo fotógrafo é Thomas Florschuetz (ex-RDA, n. 1957, expõe desde 87), com uma individual na Galerie du Jour Agnes B: aqui, as peças são de grande formato e a cores, sobre fragmentos de corpos que crescem até à indistinção dos motivos, ao mesmo tempo que a extrema ampliação gera efeitos de luminosidade interior e transparência.
Dieter Appelt, nas galerias alemãs Limmer (Champ de Pierres, de 94) e Springer & Winkler, com grandes instalações de imagens seriadas, é um autor que mantem um nível de grande projecção. Andy Goldsworthy (Red Store Sea), Gerard Rousse, Sandy Skoglund (com The Wedding, de 1994, mas também com a apresentação infeliz de uma primeira instalação) e Sophie Calle são alguns outros artistas fotógrafos que exibem uma produção de regular qualidade, ao lado de criadores «nómadas» como David Bueno, Paul McCarthy, Bustamante, Lavier ou Marin Kasimir.
Da fotografia ao vídeo, outra presença notada é a de Pierrick Sorin, com a instalação Artiste au Bain, na galeria Jacqueline Moussion, uma muito simples montagem frontal de dois monitores separados por um vidro, no qual se fundem as imagens de uma autofilmagem burlesca e paroxística, acompanhada por uma activa banda de som. Nascido em Nantes em 1960, Sorin passou do cinema ao video em 1989 e esteve presente na abertura, em Maio, das novas instalações da Fondation Cartier com La Bataille des Tartes.
Também não é em Paris, numa feira tradicionalmente menos aberta a dinamismos externos, que se podem constatar emergências de novas propostas. Mas a presença insistente do americano Paul McCarty, com notoriedade acrescida pela interdição de exposição de uma obra em Angoulême por alegada pornografia, é um dos efeitos de actualidade. Curiosamente, a galeria vienense Ursula Krinzinger mostrava McCarty rodeado das fotografias históricas dos accionistas austríacos Herman Nitsch, Gunter Brus, Rudolf Schwarzkogler e Otto Muhl, assim oferecendo uma exacta noção do que, entretanto, deixou de ser transgressão utópica para tomar aspectos de paródia kitsch.
Outras presenças de artistas de projecção recente são as de Fiona Rae e Lidia Dona, autoras de uma pintura feita de sincretismos vários, sobrepondo diferentes estruturas de composição e processos picturais, cuja facilidade intrínseca se soma já aos efeitos da apropriação da fórmula por múltiplos epígonos.
PORTUGUESES
A presença portuguesa foi sempre discreta na FIAC, mas este ano voltou a comparecer uma galeria nacional e alguns outros artistas podiam ser encontrados dispersos por vários stands, em geral ao sabor de carreiras prosseguidas em França.
A única presença era a da galeria Fernando Santos, de muito recente origem portuense, que propunha obras de Nikias Skapinakis e José de Guimarães, de Darocha, um português de Paris, evoluindo de uma figuração esquemática para o uso de uma sinalética abstracta, em pinturas de pequeno formato, e também o inglês Alan Davie (que fará a próxima individual da galeria) e o argentino Segui.
Luís Lemos, um artista nascido em Belmonte, em 1954, mas de carreira francesa, com rara presença em Portugal, é mostrado na Punto, de Valência, dando sequência aplicada e já rara a uma figuração simplificada que há dez anos se supunha «nova».
Jorge Molder tem uma fotografia de grande formato na galeria Froment & Putman, na companhia de Bill Henson e Istvan Balogh, autores identificados com a «fotoficção», muito presente em outros espaços fotográficos.
Júlio Pomar, na galeria Gérald Piltzer, ao lado de telas gigantescas de Olivier Debré e Hélion, de Olitski, Hantai, Tàpies e Barceló, e também Braque e de Stael, mostra pinturas muito recentes sobre o episódio de Ulisses e Circe, em quatro telas sequenciais e intencionalmente narrativas.
Alargando a presença nacional a outras afinidades, poderiam citar-se ainda Michael Biberstein, presente na Tanit, de Munique, onde se encontrava em destaque uma escultura de forte impacto de Juan Muñoz, e também na Montenay, de Paris; uma magnífica mostra individual de Arpad Szenes na Jeanne Bucher; Vieira da Silva, na Jacobs, de Amsterdão; e ainda algumas pinturas de Robert e Sonia Delaunay, traduzindo, em 1916, por altura da sua estadia em Vila do Conde, a adequação dos círculos ópticos aos motivos populares portugueses. Por outro lado, é curioso observar a influência directa, e excessiva, de Paula Rego sobre o inglês Peter Howson, na galeria Angela Flowers, seguindo os mesmos modelos figurativos e situações temáticas.
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