Expresso Revista de 12-10-96
FIAC, Paris
"Paris Sempre"
Em 1996, em Paris, a FIAC não foi só mais uma feira de arte e uma feira
não foi apenas um lugar de exibição e venda de objectos de arte. Era a
sobrevivência da FIAC que estava em causa. E, por extensão, também a
honra cultural de Paris e o prestígio da França.
Havia um clima de expectativa prudente a anteceder a edição que se
encerrou segunda-feira. Num país que se sente mergulhado num «período
de sinistrose» e onde a palavra mais repetida é «morosité», o mercado
da arte é um barómetro sensível, mesmo que as questões decisivas sejam
outras, mais vitais. Sob a promessa de uma FIAC «new look», jogava-se o
temor de um isolamento irreversível, quando noutras paragens já se
observam sinais de recuperação de um sector em crise há seis
temporadas. Por outro lado, arriscava-se a credibilidade do mercado
galerístico, depois do êxito da muito recente Bienal dos Antiquários,
no Carroussel du Louvre, que se abriu pela primeira vez à criação do
século XX. O desafio parece ter sido ganho. A FIAC não se mede com a
feira de Basel, mas mudou de pele e continua na primeira divisão.
Foi um golpe de palácio na estrutura directiva do certame, preparado na edição anterior pelo boicote de uma dezena de galerias, que assegurou as condições psicológicas necessárias à reforma da FIAC. A histórica Denise René cedeu a presidência a Yvon Lambert e Marwan Hoss, num comité alargado a galeristas estrangeiros. Depois, embora sem poder contar ainda com o esplendor do Grand Palais, reformou-se a logística da feira. Reduziram-se as dimensões e os preços dos stands (menos 20 por cento em dois anos), atribuiu-se uma quota acrescida para os estrangeiros convidados (75 contra 67 nacionais) e apertou-se a selecção dos franceses, sob critérios de exigência nem sempre transparentes, é certo. Bonificaram-se as galerias jovens, com menos de sete e mais de três anos; impôs-se o exame prévio dos projectos de exposição — os espaços terão sido fotografados para posterior julgamento dos compromissos não cumpridos — e mandatou-se um comité de peritos, anónimo e com plenos poderes, para fiscalizar a autenticidade das obras exibidas.
Assegurado o regresso ou a estreia de algumas das casas de prestígio internacional (Sperone Westwater e Tony Shafrazy, Bruno Bischofberger, Thomas, Nachst St. Stephan, Jean Bernier, etc), atribuiram-se-lhes os melhores lugares da feira, desalojando da avenida central do pavilhão de lona os postos franceses adquiridos por antiguidade. Por outro lado, lançou-se um programa de convites a mais de uma centena de coleccionadores e directores de museus estrangeiros, com hotéis pagos, taxis à disposição durante 24 horas e uma agenda social intensa, incluindo inaugurações em museus e até uma recepção no Eliseu — Chirac é um amador de arte politicamente correcto, e está agora empenhado em abrir o Louvre às artes primitivas, ou «primeiras». A receita voluntarista, que assegurou a ascensão da Arco de Madrid, resultou numa FIAC cosmopolita e já não franco-francesa, diversificada nas estratégias mas maioritáriamente selectiva, elegante e agressiva, mais dirigida aos profissionais e coleccionadores do que ao grande público, como deve ser uma feira.
O nível das obras expostas já melhorara visivelmente em 1995, porque quase só se vendem peças de valor e de qualidade (os coleccionadores tendem a assegurar-se da correspondência entre os dois termos). Agora voltou refinar-se, num panorama geral que se sustentava sobre obras dos «clássicos» antes de se alargar a valores mais recentes, porque não são diferentes as exigências que se fazem a umas e outros, ou seja, todas as obras devem ser capazes de afirmarem a sua presença viva para lá do prestígio histórico ou dos discursos explicativos. E, acima de tudo, porque de mercado se trata, as vendas progrediram.
A questão decisiva para a FIAC era cortar com a imagem de uma feira entrincheirada na defesa ressentida de memórias parisienses e valores chauvinistas, desertada pelas grandes galerias e pelos coleccionadores (privados e institucionais) estrangeiros, demasiado cara para as galerias jovens, invadida pelos subprodutos de uma arte «gaulesa» minada pela oficialização e o mercenarismo das carreiras, sobre a displicente repetição de formulários criativos (de Arman a Buren) e a insolvência das legitimações compradas.
Como pano de fundo, soavam os ecos persistentes, sem resposta, do alerta lançado por Baudrillard, em Maio, no «Libération», implacável manifesto contra uma produção artística que em parte pretendera fundar-se sobre os seus próprios textos (recordando a condenação dos respectivos seguidores que Duchamp também fez). Nesse texto polémico, «Le complot de l'art», era em termos de delito de opinião que Baudrillard falava do «apropriar da banalidade, do lixo, da mediocridade como valor e como ideologia»: a arte dita contemporânea, as suas instituições e o seu mercado, jogaram com a impossibilidade do juízo estético universalmente fundado para «especular com a culpabilidade dos que nada compreendem, ou que não compreenderam que nada havia para compreender». Para «reivindicar a nulidade, a insignificância, o 'non-sens', visar a nulidade quando se é já nulo. Visar o 'non-sens' quando se é já insignificante. Pretender a superficialidade em termos superficiais».
No «ArtPress» de Outubro, a propósito da FIAC, Catherine Millet interrogava-se com pessimismo sobre a futuro do mercado de arte: «na medida em que toda uma tradição da modernidade insistiu no facto de que o objecto não tinha valor 'em si', que podia até ser precário, e que a obra residia essencialmente na ideia, da qual o objecto era tão somente a encarnação, será possível espantarmo-nos agora por esse objecto já não valer mais nada?»
Dir-se-á (ainda...) que uma feira onde a pintura, o desenho, a fotografia e a escultura têm esmagadora presença é conservadora, mas no domínio artístico, onde todas rupturas foram feitas e o «fim» foi sucessivamente atingido, e reeditado, a palavra não já tem nenhum teor político. O sistema do estrelato dos anos 80, assente na especulação mercantil e na proliferação das instituições públicas, então cúmplices, não resistiu à crise económica e também à penosa continuidade de carreiras prematuramente estratificadas. O retorno oportunista às problemáticas com que se encerraram o neo-vanguardismo nos anos 70, então em convergência com uma radicalização política geral da qual nenhuma memória subsiste, veio retomar como um novo academismo a desmaterialização das obras e os formulários críticos, sobre a rede protectora de um poder gestionário que se intrincheirou nas instituições. As instalações, acções e atitudes, o inexistente, o invisível e o «não importa o quê» acantonam-se em alguns terrenos oficiais periféricos, com orçamentos recortados pela crise e em perda de legitimidade social por falta de público (mas poderão ser tidas por progressistas as instituições, quando em França, na Inglaterra, na Alemanha, em Espanha, os governos são conservadores?).
São questões essenciais, mas não de essências, que estão sobre a mesa, quando a viabilidade do mercado de arte, decisiva para os artistas, se joga na credibilidade dos objectos, caso a caso avaliada. E uma feira pode ser um local privilegiado para observar o divórcio cavado entre duas estratégias opostas que atravessam o mundo da arte: de um lado, a necessidade de restabelecer as condições de confiança de um universo sustentado por coleccionadores maioritariamente particulares («Passions Privées» era o título da grande exposição recente do Museu de Arte Moderna de Paris), num processo que passa também pela reconquista da legitimidade dos discursos críticos, e, por outro lado, a radicalização suicida de um aparelho burocrático que, por último, aposta na substituição das aquisições de obras pela gestão dos «cachets».
Passando às obras expostas, há que destacar a individual de José de Guimarães, apresentada pela galeria Fernando Santos, única presença portuguesa. Presença digna, defendida com peças de muito diversos formatos e suportes (telas, esculturas planas, papéis) onde um mesmo vocabulário primitivista se prolonga nas sugestões temáticas sugeridas por estadias no México. Noutros stands, era possível encontrar pequenos formatos de Julião Sarmento na galeria Xavier Hufkens, de Bruxelas, e também do luso-suiço-americano Michael Biberstein, na Tanit, de Munique, cuja lista de artistas refere Cabrita Reis, embora não o incluindo no lote levado a Paris. Entre os coleccionadores activos, notou-se a presença de José Berardo e Francisco Capelo.
Para além da habitual Vieira da Silva, devem referir-se as obras portuguesas do casal Delaunay, de 1915-16, na galeria Leonard Hutton, de Nova Iorque, onde também Larionov e Popova se mostravam com obras de primeira escolha e se montou uma parede deslumbrante de diversíssimos «Petits Cadeaux». Na Gmurzynska, de Colónia, La Grande Portugaise, um admirável grande formato de Robert, e Étude pour le Marché au Minho, estavam reservados para um coleccionador do Norte. Eram peças que fazem falta no Museu do Chiado.
Entre o panorama francês, muito mais discreto e selectivo, destaque-se Pierrick Sorin (Nantes, 1960), autor de instalações vídeo de um humor frenético que usa a autofilmagem e meios simples de projecção, na gal. Rabouan-Moussion. Vincent Corpet, na Templon, pintor que Jean Clair levou à Bienal de Veneza, justifica a atenção sobre o seu percurso, enquanto o velho Eugène Leroy é recuperado para a primeira linha na Galerie de France e em diversas iniciativas conjugadas, com uma obra séria mas limitada no formulário de uma figuração diluida sob densas pastas de óleo.
Mostrados em individuais, Rebeyrolle, um Hervé Télémaque vindo da figuração narrativa e Pincemin, transfuga do «suport-surface», não sustentavam da melhor forma as ambições nacionais, melhor defendidas ainda por Soulages (mostrado ao lado de «assemblages» negras da americana Louise Nevelson). Noutros casos, a passagem da instalação para a peça de parede (Boltanski) e da grande escala exterior para o bibelot de secretária (Venet) atraiçoa a possível validade dos projectos.
Significativa era a presença de Kitaj, apresentada pela Marlborough, na sequência do prémio em Veneza, com pinturas e desenhos recentes num conjunto desigual, marcado pela urgência e o sentimentalismo, dedicado à mulher recentemente falecida. Ben Nicholson e Sean Scully (também antologiado no Jeu de Paume) prolongavam a onda britânica que, com Bacon em Beaubourg, tem dominado Paris.
Relevo ainda para outra individual dedicada a Mark di Suvero, escultor americano (Shangai, 1933) de residência europeia, com uma gigantesca construção de vigas de ferro, no chão, e maquetes de «mobiles» que trocam a leveza esvoaçante de Calder pelo peso e o equilíbrio. Jean-Michel Basquiat foi o mais presente entre os «novos» artistas, a pretexto do filme e da retrospectiva. Jean Krugier apresentou o melhor stand, com um Bacon excepcional a anteceder os três espaços subdividos por «Propos Libertins» de Picasso, datados de 70-72, uma antologia de Torres Garcia e telas de Zoran Music, com espaço ainda para Balthus, Morandi e Giacometti.
Quanto à fotografia, a sua presença alargar-se, graças ao aparecimento, sobre as mesmas paredes e a par de valores em voga recente (Vanessa Beecroft, Florence Paradeis?), de trabalhos de Arbus, Friedlander, Winogrand e Martin Parr.
Como país convidado, a Coreia do Sul representou-se em 15 galerias e mais artistas acolhidos noutros stands, na sequência de uma agressividade comercial que substituiu a dos japoneses, mas que, entretanto, também entrou em crise. A fusão de regras modernistas com marcas orientais (o monócromo e o gesto caligráfico) não assegura uma memória persistente.
Entretanto, a perturbar a procura de uma nova imagem de seriedade do mercado da arte, o escândalo aconteceu graças a um documentário transmitido pelo canal Arte: Un Marchand, des Artistes et des Collectionneurs — título que substituiu de urgência o anunciado «Le marchand, l'artiste et le collectionneur». Jean-Luc Leon acompanhou durante um ano Pierre et Marianne Nahon, proprietários da Galerie Beaubourg, em Vence, e o implacável microfone direccional registou as mais miseráveis conversas sobre preços e sobrevivências, deixando pelas ruas da amargura os personagens principais e três artistas, Dado, Arman e Louis Canne.
Pierre Nahon exige a Dado que «corrija» um quadro («Si tu lui enlèves justement le zizi, là est bien. Je vois pas tellement l'intéret de ça.») e o pintor executa. Arman assiste à inauguração de um monumento em Beirute, uma acumulação de autometralhadoras, onde o discurso oficial termina com um «Viva a cultura, viva o exército, viva o Líbano!» Louis Cane retrata-se como o mercenário que é há muito. O filme é magnífico, com um imparável ritmo de montagem, e a crueldade é saudável. A profissão distanciou-se dos dois galeristas e alguma crítica (no «Libération»!) não considerou «recomendável» a emissão. Mas convém ter presente que mercado não é o paraíso, mesmo se já não é o inimigo a abater.
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