Andava à espera de um pretexto para reeditar a história de Nemo, então uma surpresa. A lembrança de um comentador foi oportuna.
Expresso Revista de 2 Setembro 1995 (pp. 75-79)
EM AGOSTO, AS PAREDES DE LIOSBOA FORAM SENDO INVADIDAS POR NEMO, PERSONAGEM E AUTOR. FOI O TRABALHO DE FÉRIAS DE UM ENGENHEIRO FRANCÊS
Foi a primeira vez que Nemo trocou o seu «quartier» de Paris — Belleville-Ménilmontant — por outra cidade. Pensou primeiro em Bogotá ou Bucareste, e mesmo nas ruínas de Beirute, mas escolheu Lisboa, pela leitura de um artigo do «Le Monde» onde se falava de colinas, bairros antigos e ainda do incêndio do Chiado. De férias, veio directo ao Bairro Alto, para uma pensão da Rua da Atalaia, até se mudar para casa de amigos. Trouxe no carro um escadote, no banco do lado, as grandes pastas com os «pochoirs» (escantilhões ou moldes de cartão) no banco de trás e 60 «sprays» (bombas, em francês) no porta-bagagem — com receio de uma explosão se a temperatura passasse dos 50 graus, ao atravessar a Espanha.
Engenheiro informático de profissão e graffitista ou «bombeur» nas horas vagas, com uns respeitáveis e bem humorados 48 anos, Serge Faurie, aliás Nemo, fez em duas semanas 36 pinturas de parede, todas diferentes mas identificáveis, em geral, pela presença de um mesmo personagem solitário: uma silhueta de homem de chapéu e gabardine, com uma eterna pasta de executivo, mais alguns acessórios variáveis, uma rede de apanhar borboletas, o guarda-chuva, uma bandeira, balões. Personagem de série negra e homenagem ao Little Nemo da banda desenhada de Winsor McCoy, reconhecível auto-retrato e nome de guerra.
Cais do Ginjal. Acima, R. António Maria Cardoso
Primeiro território de intervenção, é no Bairro Alto que se pode ver a maior concentração de bombagens, entre o Camões, a Calçada da Glória e o Príncipe Real, com extensões à Rua de São Bento e à Madragoa. Depois descobriu a linha do eléctrico 28 e foi até Alfama, deixando marcas também na Rua António Maria Cardoso e junto à Sé. Atravessou o rio e executou cinco pinturas no Cais do Ginjal, enquanto no Cais do Sodré, mesmo junto à água e visível do barco para Cacilhas, ficava um Nemo pescador.
À silhueta negra, na interminável variação de atitudes conseguida por hábil conjugação de diferentes moldes, juntam-se as flores que Nemo oferece ou que lhe caiem da pasta aberta na corrida, pombas e núvens coloridas de peixes, borboletas, folhas de plátano ou estrelas, e ainda um tigre e um rinoceronte, os primeiros animais selvagens de uma série que espera ampliar. Numa taberna do Bairro Alto, onde a porta larga é ladeada por gaiolas de pássaros, apenas vieram acrescentar-se outras aves voando em liberdade, e a habitual pasta. Noutros lugares, mais raros, o personagem solitário multiplica-se em grupos de figuras desenhadas em negativo.
Nemo não é (já não é) um grafitista furtivo: actua de dia, de fato macaco e capacete protector, com a lentidão necessária e todo o aparato dos seus materiais de trabalho. Não pede autorização a ninguém («é sempre um acto de força»), mas confia que a sua aparência tranquila, a escolha de paredes degradadas ou de tabiques precários e a curiosidade dos vizinhos vençam a possível desconfiança. Apesar da experiência de anos de rua, «le trac», que não é exactamente o mesmo que o medo, acompanham-no sempre. Sobre o acolhimento que teve em Lisboa, repete os elogios habituais sobre a gentileza da população, e a polícia, afinal, só apareceu para lhe rebocar o carro-oficina.
Essencial é sempre a selecção dos locais onde intervem, como ocupação de um território, até a presença de Nemo se tornar familiar, ou marcação de descobertas feitas ao sabor das deambulações pela cidade. Nunca utiliza uma parede bem conservada (porque «seria uma agressão»), nem faz bombagens sobre a pedra, que seriam irreparáveis, e as figuras dialogam com o espaço escolhido. Por exemplo, com uma janela emparedada a tijolo que conserva ainda o antigo gradeamento, no Príncipe Real, com a moldura de um portal, o relevo de um muro, um piso em declive, uma fenda que atravessa a parede ou anteriores graffitis. Em alguns locais, foi a proximidade de notáveis edifícios degradados (na Rua da Esperança, na Rua das Pedras Negras, à Sé) que motivou a escolha, noutros a importância da paisagem. Afinal, esta foi também uma forma de conhecer os recantos da cidade.
Nemo é reservado sobre as razões e os possíveis significados do que pinta. A menção ao pequeno herói de Winsor McCay basta-lhe como referência à terra do sonho que pode existir nos muros degradados, mesmo entre ruinas e depósitos de lixo. Diz que «falta qualquer coisa nas cidades», que é possível «fazer falar as paredes» e usa-as como páginas de uma banda desenhada sem princípio nem fim, «espaços para colorir» contra «o feio, a tristeza ou a pena». Mas quer que o mistério envolva o personagem e o seu autor, negando a existência de um qualquer sentido político ou mensagem decifrável, excepto, talvez, quando uma bandeira branca parece ser um aviso contra a ameaça de uma demolição. «Quanto menos houver uma chave de interpretação, melhor». Ou, «Nemo é ninguém, e como toda a gente, portanto, sonha».
Sublinha, por outro lado, a oposição entre o seu «trabalho» e os graffitis (os «tags» e graphs») que invadem grandes extensões de Paris e se limitam às assinaturas dos seus autores, em gestos de protesto racial e juvenil que são agressivos e visualmente pobres. As pinturas de Nemo pretendem ser uma intervenção doce para mudar o espaço urbano. Acção directa.
Começou com as bombagens há 14 anos, para um filho, marcando-lhe o caminho para a escola com a figura de uma criança directamente inspiradada no Little Nemo. Fez carreira de «bombeur» furtivo e, depois de uma interrupção de cinco anos, regressou à rua com novos projectos. Em Fevereiro, o «Libération» dedicou-lhe uma reportagem de duas páginas, com chamada de capa, e Nemo já falava em sair do seu território de sempre e deixava adivinhar projectos de maior ambição, hesitando entre as vantagens da notoriedade e os riscos de se tornar um profissional. Em Lisboa, decidiu ampliar o efeito das suas bombagens dando-lhes divulgação: ele próprio contactou os jornais e as televisão, fornecendo o roteiro das intervenções.
Mas continua a não se considerar um artista, nem se interessa por classificar o que faz como arte, embora aceite a expressão «pintor de domingo». Afirma que não sabe desenhar, citando com admiração um colega parisiense que dispensa os moldes e traça com um só gesto o perfil de uma figura — estende os braços para mostrar que não tem «mãos de artista», como se o talento se pudesse reconhecer numa configuração física qualquer. No entanto, aponta com orgulho uma frase destacada no artigo do «Libération» onde se lhe reconhece o talento com que usa a antiga técnica do «pochoir»: «Je ne sais pas dessiner, mais la technique, je la plie, je lui tords le cou».
Nemo não pensa passar das paredes para as telas: diz que «é preciso o céu».
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