Está a chegar ao fim a exp. apresentada pelo CCB, 1ª grande co-produção internacional do Museu Berardo - ver texto anterior e outros na categoria "CCB". Foi menos discutida do que deveria ter sido - ignorada (julgo) pela opinião que circula em volta do teatro e da dança (se é que circula alguma de modo audível) ou talvez deliberadamente desacompanhada, por fechamento das fronteiras entre disciplinas, por recusa da pretensão das artes plásticas - autopromovidas a "arte em geral" - absorverem ou coroarem as várias outras áreas, conduzindo-as ao espaço de exposição ou apresentando-se como possibilidade do espectáculo total.
Oskar Schlemmer, danças dos Arcos, 1927 81961, 1994), instalação: madeira pintada e arame
O volume da documentação (fotografias "vintage", cartazes, publicações variadas, etc) definiu um tipo de exp. multidisciplinar que é quase inédito entre nós. Apesar de ser um ambicioso e raro acontecimento, o balanço crítico deve ser muito mitigado, ou o que se prometia foi-se esvaziando...
# de um texto interrompido
Presta-se a muitos equívocos a exp. "Um teatro sem teatro", embora um título a tal ponto impreciso nos previna desde logo que não se busca qualquer simplicidade. Não são as relações entre teatro e artes plásticas que se apresentam no CCB, e um tema tão genérico só com alguma genialidade enciclopédica caberia numa exposição (às vezes acontece, veja-se a recente e imprevisível relação entre fotografia e engenharias...).
Não são também as ligações ao teatro cultivadas pelos artistas plásticos do século XX que aqui se sumariam, desde logo porque quase nada se mostra dos trabalhos cénicos de pintores e escultores - o cenário literalmente luminoso de Picabia para Relâche; o teatro abstracto de Oskar Schlemmer, professor da Bauhaus, propondo o teatro total por via da dança e das variedades, são excepções que confirmam a regra. Aliás, exibido Schlemmer já passado o meio da exp., menoriza-se o que é um dos episódios visualmente fortes do programa.
A teatralidade, enquanto construção ficcional através de disposivos visuais, na realidade material de uma expressão corporal cénica e espectacular, é afirmada (e interrogada na sua eficácia representativa ou na sua qualidade de artifício) por muitas das maiores obras plásticas do século. Em Picasso, Chirico, Giacometti, Balthus, Bacon, Freud, Paula Rego. Está presente no retrato, na figuração que mantém ou retoma uma espacialidade material (que pode não ser perspéctica, como em Bacon, para ser mais teatral). Tudo isso não está lá, como não está quase todo o grande teatro que não prescindiu do texto ou do palco. Em grande medida são margens que lá estão.
Aliás, enquanto desdobramento espacial e temporal de uma representação destinada a ser vista por um espectador, a teatralidade é intrínseca à tradição das narrações picturais apologéticas (o retábulo, a pintura instalada medieval, o registo de feitos heróicos, etc). Enquanto interrogação ou exploração sobre o lugar do espectador, a questão da teatralidade tem uma longa continuidade desde as observações de Diderot. A teatralidade para Diderot qualifica uma construção artificial destituída de existência própria sem a presença do público, como uma falsidade da representação - e é nessa linha de reflexão que se insere a intervenção crítica de Michael Fried, que é aqui um mero pretexto académico.
O confuso texto dos comissários no catálogo aponta para uma aproximação a "todas as formas de 'anti-teatro' que contribuiram para sabotar as clivagens estéticas" (ou tratava-se, antes, de sabotar consensos e estabelecer clivagens?). Aponta para "a anti-tradição futurista" (assim convertida em "tradição da anti-tradição", como referiu Rosemberg). Aponta para a constituição de "um território de lugares alternativos"... "que possibilitaram o aparecimento de práticas artísticas à margem da indústria do espectáculo" (e certamente da indústria dos museus também, mas isso é apenas uma petição de princípio dos industriais de exposições). É uma certa linguagem "revolucionária" já destituída de opertacionalidade política que marca o discurso do inspector das Belas Artes que teve por anterior responsabilidade a exposição oficial da reabertura do Grand Palais. E que utiliza os vestígios históricos de várias derivas "alternativas", reconstruídas como "tradição", para prefaciar um presente artístico "especializado" e cinzento.
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De facto, metade da exp. faz o inventário de contactos e trocas da anti-arte com o anti-teatro (são em grande medida facilidades de linguagem), no segundo caso trata-se mais da procura de um teatro radical ou extremo, em oposição ao teatro "burguês". Mostra-se a contiguidade de um certo vanguardismo mais ou menos iconoclasta, de filiação dadaista, pontuado pela figura do agitador, com o que deve conhecer-se como a "tradição" (o espaço social, os circuitos) do humorismo e do cabaret (variedades, fête foraine, circo). É de facto um espaço social que na sua relativa exterioridade à "Grande Arte" - a margem boémia e mundana, algumas revoltas e muitos falhanços - permite o trânsito da crítica, da festa, da paródia com e sem consequências.
Se percebermos que esse espaço social é contíguo a e se cruza com produções de diferente ambição e de menos efémeros resultados (as obras primas, as obras maiores ou de génio, etc) - que este é um espaço menor -, é salutar percorrermos esse itinerário onde o humor (o bom humor) impera. (Como se ligam bom humor e facilidade?)
O que é inaceitável é a colagem das duas partes da exp., colocando a teatralidade academizada do minimalismo na sequência do percurso radical que vai até aos anos 60.
Não é dispiciendo que figuras preponderantes da chamada vanguarda radical, os situacionistas ou o Jean-Jacques Lebel - este entrevistado pelo comissário Bernard Blistene -, não se reconheçam no "mundo da arte" actual e que o destino social desta substitua a contestação pela integração. O que se mostra na parte final da mostra é " 'uma nova era glaciar' como reacção às sublevações dos anos 60", sem ser preciso falar de "escravos obedientes do mercado", como faz Lebel. Ou seja uma esteticização vazia de objectos que deixaram de ter qualquer eficácia problematizadora sobre o presente. Fora do "espectáculo" ocasional em que foram usados como adereços ou praticáveis, os objectos de Robert Morris são vestígios destituídos de eficácia: as fotografias das acções importam mais que as peças coleccionadas nos museus.
Do humor inicial passa-se a uma insuperável chatice, numa lógica de recuperação e institucionalização das potencialidades críticas dos movimentos ou desafios mostrados na 1ª parte.
O uso que se faz de Michael Fried é muito pouco sério, ao contrário do que sucede em ensaios datados/envelhecidos mas com alguma perspicácia de Rosalind Krauss (1977, trad. franc. 1997) Ballets mécaniques: lumière, mouvement, théâtre e em especial de Thierry de Duve, Perfomance ici et maintenant: l'art Minimal, un plaidoyer pour un nouveau théâtre (1980, recolhido en Essais Datés, La Différence 1987).
Parte da mostra corresponde ao reviver de memórias e interesses de qualquer testemunha bem informada dos anos 60. Perante esses testemunhos pode haver posições saudosistas e auto-complacentes ou posições (auto)críticas empenhadas em autopsiar os erros, as ilusões, os crimes desse tempo (reais e ideológicos). A evocação saudosista das pretensas rupturas dos anos 60 (que eram em grande parte já revivalistas das primerias vanguardas) é hoje o suporte de um contexto político-cultural efectivamente conservador, transformado num espectáculo museológico que se condena à contemplação e à celebração de vestígios destituídos de eficácia crítica nas condições do presente, objectos de uma fetichização patética. Aliás, nunca terá havido um tempo tão longo - quatro décadas - em que a celebração das rupturas vividas toma o lugar da criação do presente.
continua
Ola' Alexandre,
Contudo existe uma voz nas artes performativas, em Portugal. A Revista "Obscena" publicou na sua sexta edição ( ver em http://www.revistaobscena.com/public/files/revista_obscena_06.pdf#page=92) uma criítica de Pedro Manuel sobre esta mesma exposição.
O Alexandre aborda uma questão interessante, mas não penso que seja exclusivo das Artes Performativas, mas sim um pouco o sentimento que se encontra generalizado. Culturalmente Portugal parece-me até que tem uma oferta interessante. O grande problema é que por muita qualidade com que os eventos possam ser realizados (muitas vezes, com grande sacrifício dos seus organizadores), o público não adere a esses eventos.
A estratégia para o sucesso acaba sempre por "spots" televisivos ou apoios de grandes empresas e instituições, para que, se não garantir o sucesso, pelo menos ajudar a diluir os prejuízos. Daí que não existam grandes repercussões de tudo o que se faz e que cause um certo desalento para qualquer pessoa que pense sequer em organizar alguma coisa. São grandes ondas que morrem na areia, mas contudo a sua não existencia seria como viver no deserto.
E' necessario repensar este aspecto. Nao dar grandes cedências ao público, de forma a transformar as Artes em geral, mas pensar estrategicamente numa forma de as aproximar (penso que tem sido esse o grande foco dos Servicos Educativos associados a grandes Instituicoes, por exemplo).
Cumprimentos, Pedro
Posted by: Pedro dos Reis | 02/14/2008 at 21:35