"Serralves: o modelo IVAM"
Expresso, Cartaz "Actual-opinião" 18-05-96
Não é fácil entender a inclusão da Casa de Serralves entre as visitas
de Jorge Sampaio ao «Portugal de sucesso», mas, antes do presidente, já
o ministro de Cultura se deslocara ao Porto em idêntica peregrinação.
A mudança de maioria poderia ter proporcionado uma nova abordagem,
frontal e transparente, sobre o «caso Serralves», que ao mesmo tempo
denunciasse uma anterior maneira de fazer política (cultural) e fosse o
ponto de partida de outra dinâmica. Era conveniente desfazer embustes e
tornar claro que, desde 1986 (data da compra do local pelo Estado) ou
desde 1989 (criação da Fundação com o mesmo nome) até 1995, o Governo
anterior tinha tido mais do que tempo para pôr de pé o previsto Museu
Nacional de Arte Moderna. É certo que, ao sair, Cavaco deixou já
lançado o projecto para a construção do novo edifício de Serralves, mas
é também evidente que um museu, por definição, se destina a acolher uma
colecção e esta não existe, não foi praticamente começada e nem sequer
foi definido um claro programa de aquisições.
Entretanto, e sempre em prazos mais curtos, entre as decisões políticas e as inaugurações, Valência construiu o Instituto Valenciano de Arte Moderna (IVAM), Las Palmas teve o seu Centro Atlântico de Arte Moderna, Santiago de Compostela ergueu o Centro Galego de Arte Contemporânea, Badajoz abriu o Museu Estremenho e Iberoamericano de Arte Contemporânea, que até inclui o início de uma colecção de arte portuguesa, e Barcelona inaugurou o seu Museu de Arte Contemporânea. Todos os casos, muito diferentes entre si, correspondem a iniciativas dos poderes autonómicos ou provinciais, o que também deve ajudar aos debates sobre a regionalização, se é que a arte contemporânea tem ainda algum significado no âmbito das questões do desenvolvimento e perante uma crise económico-social sem fim à vista - o que talvez não seja líquido.
Serralves não é uma história de sucesso, apesar das qualidades paisagísticas do seu jardim e dos esforços, mais ou menos bem sucedidos, para manter um programa regular de exposições, os quais obrigam a render homenagem a Fernando Pernes por uma persistência que vinha já do antigo Centro de Arte Contemporânea do Museu Soares dos Reis.
Pelo contrário, mesmo sem trazer à memória a guerrilha movida por Santana Lopes contra Serralves, entre 92 e 94, a sua história foi sempre um longo rosário de promessas e indecisões. Recorde-se que foi em 1979 que Helder Macedo publicou o decreto que anunciava a criação no Porto do MNAM, ao qual logo se destinou o acervo de «obras modernas» das colecção de SEC; Brás Teixeira reafirmou o propósito em 1981 e o mesmo fez o programa do primeiro Governo do PSD, em 1985.
Comprada a Casa e o Jardim, em 86, a Fundação surgiu três anos depois, num contexto demasiado optimista quanto às potencialidades do mecenato, mas, de facto, como prova do abandono do projecto do Museu por parte do Governo, uma vez que este apenas se comprometia a assegurar, «anualmente, para as despesas de funcionamento da Fundação, um subsídio equivalente ao despendido no ano de 1988», segundo o decreto-lei que ainda está em vigor. Foi esta disposição, que nem sequer prevê a correcção da inflação, que serviu a Santana Lopes para estrangular Serralves, e, na realidade, ela continua a inviabilizar, por força da própria lei, qualquer projecto sério de museu.
De 130 mil contos de dotação da SEC em 1993, passou-se em 1994 para 190 mil contos, embora só integralmente satisfeitos já no ano seguinte, e, quanto ao ano em curso, a verba inscrita no Fundo de Fomento Cultural ascende apenas a 200 mil contos (aliás, uma verba muito superior ao orçamento do Museu de Arte Antiga, por exemplo, no quadro actual de sub-orçamentação generalizada das infra-estruturas da Cultura).
É preciso também recordar que o plano de um centro cultural e de congressos em Serralves foi anunciado pela primeira vez em 1990, sendo logo o projecto atribuído a Siza Vieira... com inauguração prevista para 92. O primeiro contrato com o arquitecto foi assinado em Março de 91 e, depois de anos de anteprojectos, alterações e adiamentos, Cavaco Silva aprovou a última maquete em Julho de 1995 e anunciou formalmente a inauguração para o final de 1998 («Cavaco anuncia 'Serralves 98'» segundo o título do «Público», em 27/7/95).
De acordo com a engenharia financeira então montada, ascende a 3,5 milhões de contos o investimento comunitário para a construção do museu e mais 1,2 milhões estão inscritos no PIDDAC (20 mil contos em 96, 500 mil em 97, 370 mil em 98 e 310 em «anos seguintes»...). Entretanto, do compromisso então estabelecido com a Fundação faz parte a perspectiva de esta angariar outros 1,2 milhões de contos em três anos, junto dos antigos e de novos mecenas, o que poderá ser (se for essa a aplicação do capital) uma ajuda para começar uma colecção de obras de arte, mas está longe de ser uma verba suficiente para assegurar um verdadeiro museu. Por outro lado, quanto às despesas de funcionamento, a incógnita é total, ou antes, mantem-se a perspectiva de se ir actualizando o subsídio atribuido em 1988, uma vez que o actual governo não deu qualquer sinal público de estar disposto a enfrentar com clareza o que o anterior deixou por resolver.
É a fórmula institucional de Serralves, tendo por base o voluntarismo mecenático de uma fundação, ainda que apoiada pelo Estado, que é irrealista para a viabilização do museu de Serralves, conforme os dez anos passados demonstram. O ministro actual limitou-se a confirmar o acordo «herdado» de Santana Lopes («DN» de 30/11/95) e, contrariando o próprio programa de Governo - que prevê uma segunda unidade museológica em Lisboa também voltada para a arte contemporânea, como é curial que suceda numa capital europeia -, apenas prometeu a Serralves a exclusividade nacional neste domínio. Entretanto, a vaga de Agustina Bessa Luís (!) no conselho de administração ainda não foi preenchida pelo Governo.
De facto, seria preciso encarar de frente a necessidade de refundar o projecto de Serralves, assumindo o Estado, por uma vez, as suas responsabilidades. Já não como sócio envergonhado da Fundação, mas como seu efectivo parceiro, ou seja, no quadro de um consórcio que deveria igualmente incluir a Câmara do Porto (ou, a prazo, a Região Norte). Manter-se-ía a diferença de Serralves face à norma institucional vigente nos museus nacionais, de acordo com a originalidade da sua criação, mas assegurar-se-íam assim os meios indispensáveis ao projecto.
É essa fórmula tripartida que, por exemplo, suporta o novo Museu de Barcelona (MACB), numa versão que envolve a autonomia, a cidade e uma fundação de mecenas; a convergência das partes nem sempre foi pacífica (a inauguração foi-se adiando de 1992 para 1995), mas os conflitos tiveram por base a definição do que deve ser um museu de arte contemporânea, questão sempre polémica mas que não deve ser camuflada.
Interrogado pelo EXPRESSO sobre a oportunidade de alterar a base institucional do projecto do Porto, M.M. Carrilho apenas disse: «A situação que herdei em Serralves não era a melhor. Houve bastantes atritos e imprecisões nos últimos anos e não me parece que seja de propor, de momento, alterações ao actual figurino» (23/3/96). Pelo contrário, porque houve imprecisões e elas ainda pairam sobre o próximo futuro, este tinha sido o momento de romper com uma fórmula mal nascida e de abrir caminho à contratualização entre poder central, vontades particulares e região. A menos que a palavra museu constitua só um rótulo de ocasião e a estratégia da burocracia artística dominante seja, de facto, a de manter apenas um centro de exposições temporárias, as mais fáceis e convenientes para aceder à zona periférica dos circuitos internacionais.
Entretanto, a Fundação, com a concordância do Ministério da Cultura, escolheu o espanhol Vicente Todolí, director artístico do IVAM, para, a partir de Setembro, orientar a programação de Serralves, em substituição de F. Pernes. A escolha de um estrangeiro é uma decisão positiva, que vem instaurar entre nós uma prática usual noutros países - recorde-se, por exemplo, que foi o sueco Pontus Hulten o primeiro responsável pelo Centro Georges Pompidou. No caso de Serralves, ela tem o mérito de importar a experiência e, certamente também o exemplo, de uma instituição que ascendeu a um lugar destacado entre as suas homólogas espanholas e europeias, assegurando sobre uma perfeita integração regional uma prática de nível internacional.
O IVAM foi inaugurado em 1989, desde logo dotado de uma dupla sede, o Centro Julio González, construído de raíz (por 1,2 mil milhões de pesetas), onde mantém a colecção permanente e apresenta as exposições de maior vulto, e o «Centre del Carmen», instalado num antigo convento. Criado por iniciativa da «Generalitat» valenciana, o IVAM já contava à data de abertura com uma colecção que fora iniciada logo em 1985 e graças à qual assegurou de imediato uma implantação inequívoca no contexto espanhol e da cidade: constituiam-na, em especial, os acervos do catalão Julio González e do pintor valenciano Ignacio Pinazo, representativo da modernidade artística local do final do século XIX, e o depósito das fotomontagens de Josep Renau, outro valenciano ilustre.
Da ampliação da colecção histórica, respondendo à limitação de recursos com o privilegiar de direcções específicas da arte moderna, mesmo que não fossem as mais populares, deu conta a exposição «Abstracção e Montagem, 1916-1945», mostrada no CCB há um ano. Outras vertentes da colecção partem do informalismo espanhol para fazer incursões na criação internacional e prolongam-se até ao presente com a vinculação necessária entre o projecto da colecção e o programa expositivo.
Tomás Llorens (que abandonou a direcção do IVAM para presidir ao Centro Rainha Sofia e é actualmente o conservador do Museu Thyssen, continuando presente no «conselho de reitores» de Valência) foi o responsável pela definição do projecto do Museu-Instituto, sempre continuado por Carmen Alborch, que o dirigiu até ocupar em 1993 o lugar de ministra da Cultura.
Jovem conservador e depois director artístico, Vicente Todolí foi o herdeiro e continuador desse projecto exemplar. A viragem política de Valência do PSOE para o PP, em 95, levou à escolha de um director do IVAM, o crítico e historiador Juan Manuel Bonet, que se declarou interessado em moderar algum radicalismo atribuído à orientação recente do Museu, e Todolí, de saída, acabou por optar pelo Porto. Note-se, entretanto, que o «progressismo» estético não tem geralmente cor política, como se observa em Santiago de Compostela ou em Bordéus.
O essencial da questão, para além da excelência das linhas programáticas definidas por T. Llorens, é que o IVAM dispôs, até 1993, de 2,7 mil milhões de pesetas para compras de obras de arte, a que se somaram importantes doações e depósitos que a credibilidade do projecto tornou possível. Nos anos seguintes, o Museu de Valência, tendo apenas o apoio da «Generalitat», pôde contar com verbas anuais da ordem dos 1,2 mil milhões de pesetas, sendo cerca de um terço para compras destinadas às suas colecções permanentes. Por outro lado, numa cidade com 700 mil habitantes, a «Deputatio», a Câmara de Valência, mantém em actividade um outro centro de exposições, a Sala Parpalló.
A abissal distância dos meios disponíveis, entre Valência e o Porto, não traduz apenas um menor nível de riqueza entre as duas regiões. Traduz uma diferença de projectos e de políticas. E de culturas.
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