Mais duas páginas de promoção ao prémio dito de fotografia artística financiado por uma conhecida instituição bancária. No Público, sexta 11. Chega de beneficiar o infractor, pelo que passa a ser referido como BancoPhoto. Fui envolvido numa polémica que me desagrada, e a citação extraída daqui só pode ser erradamente lida no contexto em que foi incluída.
"O que foram defeitos iniciais do BES Photo (presença no júri de selecção dos programadores dos artistas nomeados, junção de veteranos e novos) e outros defeitos não corrigidos (amálgama de fotógrafos-artistas com artistas que se servem da fotografia, velha e difícil questão que se deve usar com prudência; sucessivas recusas de participação) deu lugar à ausência de justificação para as nomeações e, por consequência, <a> uma confrangedora inanidade."
Eu não sei de fotógrafos-artistas e fotógrafos-fotógrafos, não conheço fronteiras de natureza ou essência, nem essas distinções, quando existem, têm valor permanente e decisório. Não sei o que é "fotografia no sentido estrito da palavra", e tenho receio destas facilidades de linguagem, nem acho que o "sentido estrito" seja operacional para ver fotografias*.
O que eu disse é não se escolhiam os melhores (fotógrafos-artistas e artistas-fotógrafos) nas nomeações para o prémio - e penso o mesmo de outros prémios e selecções (nacionais) ou representações. Todo o artigo do Público é escrito com a preocupação de evitar a questão dos critérios de qualidade (aí toca-se na questão das manobras manhosas ou mafiosas que fazem o "sistema") substituindo-a por uma inútil disputa metafísica que visaria separar a arte e a fotografia.
A fotografia encenada (o tableau vivant, por exemplo) e a manipulação ou trucagem fotográfica, a ambição artística e a apropriação de processos de distanciamento do real natural dado, são campos interiores à prática e à definição social de fotografias desde o seu início. Só uma ignorância descuidada ou perversa associa o registo ou réplica realistas a uma qualquer natureza essencial da fotografia, apesar da condição de marca ou indício que podia ter o efeito químico da luz - essa possibilidade de acesso a uma verdade indicial "exterior" acompanhou-se logo, desde o início, pelas exploração das virtualidades da aparência, da ilusão e da mentira.
Nem sequer é possível separar a fotografia que circula em galerias de arte da que por aí não circula, porque daí não se extrai uma separação de identidades, ou de géneros, nem de qualidades. Aliás, sabemos que o que antes não circulou por galerias (salões, bienais ou museus) pode passar a circular por absorção no espaço da arte do que antes aí não entrava. É a passagem do gabinetes de curiosidades a museu, a descoberta da arte dos alienados e das crianças, a entrada dos "fetiches" dos povos primitivos (periféricos ou "pré-históricos") no espaço da arte, etc - aliás o sentido do ready-made, para além dos jogos de sentido (de palavras ou d'esprit) é precisamente esse: comprovar que o espaço da arte é ilimitadamente aberto ao que aí passa a entrar, tautologicamente.
E tb sabemos que o que mais se valorizava canonicamente, academicamente, o que circula ou circulou nas galerias, pode igualmente ser excluído não do espaço da arte mas do espaço da arte com qualidade - o gosto escolar, académico, salonista.
O essencial do meu raciocínio é a afirmação da indignidade da selecção (das selecções anteriores em geral tb). Até porque os nomes que apontei como autores das melhores exposições de fotografia em 2006/07 são identicamente artistas-fotógrafos.
"Se a selecção deixava afrontosamente de fora o melhor (soube de argumentos impróprios, como as alegações de que alguns se teriam candidatado ao BES Revelação - ou tinham ainda poucos anos de trabalho e próximas oportunidades), as candidaturas <em exposição> aí estão para comprovar que a situação se tornou indefensável."
Os excluídos ou desconsiderados não são fotojornalistas, mas até podiam ser sem problemas, sem exigir quaisquer entorces à tal palavra photo - embora seja mais curial delimitar num prémio como o Visão/Bes a escolha de projectos identificados por objectivos e convicções associados à tradição do fotojornalismo.
Existe um enorme simplismo no comentário de Miguel Soares transcrito pelo Público: "O nome induz em erro. As pessoas associam-no ao World Press Photo e ficam à espera de instantes capturados, quando de facto o prémio tem mais a ver com fotografia de galeria de arte, com o trabalho de artistas que usam a fotografia como suporte". A mesma ingenuidade do seu trabalho com a fotografia ( divertida e salutar, no contexto da "fotografia galerística" portuguesa, mas pouco para um grande prémio) está aqui presente na expressão " instantes capturados ". Com Luc Delaye, Susan Meiselas, Robert Capa, Cristina Garcia Rodero, etc, as mesmas fotografias podem estar no serviço de agência, na revista, no WPP, no livro e na galeria - no mesmo formato ou em maior formato - porque algumas escalas valorizam-se no grande formato e alguns tolos com grandes carteiras gostam de pagar mais caro, ou de pagar muito pelo que não vale nada (e essa seria uma componente importante da "fotografia galerística"). Miguel Soares confunde mercados diferentes com diferentes naturezas da fotografia - esse erro é muito comum.
Que alguém venda a mil/dois/três euros uma fotografia porque se considera um prometedor artista e que alguém que se considera fotógrafo não venda uma idêntica prova de exposição a 300 euros não distingue objectos mas apenas diferencia mercados e circuitos comerciais. Apenas distingue compradores e colecções - não diferentes caminhos da fotografia.
A questão principal é saber ver (querer saber ver) e tanto faz que a fotografia (artística? ou não - a palavra não confere qualidade, interesse, excelência, etc) nos exiba o testemunho de um facto real ou uma ficção, um documento ou uma pose de moda, uma construção manipulada, etc. Já a fórmula "artista que usa a fotografia" é uma obscura e perigosa fórmula classificativa, uma equívoca e defeituosa identidade. O que é o artista que usa o cinema? O artista que usa a escrita? A "arte" não preexiste ao objecto ou técnica ou processo que se usa.
O que neste prémio tem traçado o seu destino medíocre é apenas a fuga / a recusa a escolher anualmente os autores das melhores exposições de fotografias (impressões fotográficas ou montagens-colagens fotográficas).
* claro que temos o fotógrafo de casamentos e bilhetes de identidade, mas esse fotógrafo "em sentido estrito" pode ser um artista-fotógrafo - um Virxilio Vieitez, um Malik Sibidé - ou será (só, melhor ou pior) um profissional da fotografia, como muitos são (eram) pintores decorativos, de tabuletas, telões de cinema ou cenários, e são pintores, artistas. As identidades abstractas arte e artista (sem falar no ainda mais equívoco "criador") é que causam problemas porque na aparência isolam um certo tipo de produtores de pintura, de escultura, de fotografia, de cinema, de arquitectura, etc, confundindo-se "arte" com uma classificação (mais) elevada e distintiva. Ora o que distingue é a qualidade e não o género ou disciplina. Os cemitérios estão cheios de obras de arte - esculturas funerárias, no caso.
** Tenho de sustentar melhor a passagem do texto anterior que foi citada: "defeitos não corrigidos (amálgama de fotógrafos-artistas com artistas que se servem da fotografia, velha e difícil questão que se deve usar com prudência)"
*** Segundo a Lusa, via RTP, "o prémio visa a divulgação da arte contemporânea suportada pela fotografia" (sic)
Estava agora mesmo a ler um artigo de opinião sobre o trabalho do Pep Bonet que toca a famosa problemática da "estetização do sofrimento alheio" (etc etc) e a pensar como essas opiniões são geralmente tão superficiais e lineares, e como gostaria de poder analisar melhor o assunto. Este post sublime põe em palavras tudo aquilo que tenho pensado sobre os fotógrafos e o que gira à volta da fotografia de forma frontal, densa e muito coerente. É raro ouvir falar assim em Português - orgulho-me aliás que o melhor blog que acompanho sobre os assuntos que costuma abordar seja escrito na minha língua. Não deixo de achar curioso que contrariamente a blogs de outras nacionalidades nos potugueses não haja praticamente nenhum feedback por parte dos leitores...
Posted by: Tomé Duarte | 04/12/2008 at 22:51
"Só uma ignorância descuidada ou perversa associa o registo ou réplica realistas a uma qualquer natureza essencial da fotografia"
Efectivamente "até" Ansel Adams manipulava (e por vezes fortemente) as suas imagens; basta folhear os seus livros (por exemplo, "The Print") para o verificar. Não creio que se trate de uma questão de manipulação vs realismo. Para mim, o problema reside na aparente tendência para ignorar a fotografia dita tradicional (mais técnica). Não compreendo a razão pela qual esta deixa de ser considerada fotografia artística. Pelo que leio nos vários artigos decorrentes desta polémica, bipolariza-se o mundo da fotografia entre documental/fotojornalismo e a dita artística, com forte presença de manipulação e/ou "efeitos especiais". A fotografia tecnicamente correcta, tradicional, de paisagem, retrato ou mesmo "de rua" deixou de ser considerada?
Curiosamente, parece-me que cada vez mais será inovador... voltar ao clássico.
Cumprimentos
Posted by: Mário Nogueira | 04/12/2008 at 23:07
Se o juri tem que escolher os nomeados através de visitas a exposições individuais em galerias de arte durante o ano precedente,
parece-me então óbvio que o prémio tenha a ver com fotografia de galerias de arte. ou seja, fotografia que tenha sido mostrada em galeria de arte.
Isto parece-me incontestável, pois é o que está no regulamento (esse sim pode ser contestado, criticado, etc). E não se está a delimitar o campo com mais nenhuma condicionante. Acaba por ser A.P. a fazer uma série de associações mal intencionadas.
Posted by: Poulo V. | 04/13/2008 at 17:14
Caro Mário Nogueira : a mais notória tendência dos últimos anos é a entrada de autores e de obras vindos da tradição documental e das agências associadas ao fotojornalismo (Magnum e não só) no universo das grandes bienais e "Documentas", bem como no circuito das galerias de arte.
Mais do que os trabalhos de artistas que se servem da fotografia como material ou suporte (cuja visibilidade é cíclica desde a 2ª metade do séc. XIX, ou já antes, passando pelo "quadro fotográfico" à Rejlander e por picturialistas, construtivistas e fotomontadores, surrealistas, artistas pop, conceptuais, neo-conceptuais, apropriacionistas pós-modernos), o que tem ganho uma presença crescente são fotógrafos-artistas como Mark Power, da Magnum (os projecros sobre o Millenium Dome, ou o Airbus 380), Edward Burtynsky, Joel Meyrowitz (NY e o Ground Zero), Robert Polidori (o Katrina) e muitos outros.
Graças às novas tecnologias da cor e da ampliação, graças aos grandes formatos e à qualidade das impressões das provas, graças a efeitos expositivos de instalação (sequências, polípticos, etc) essas práticas de descoberta e interpretação do real competem hoje em pé de igualdade, tb em termos de impacto visual e novidade, com a "fotografia artística" e a sua tradição. Por cá não se tem entendido o que tem estado a mudar, mas uma exp. vista em Lisboa em 2007, INGenuidades, org. por Jorge Calado para a Gulbenkian, mostrou muito bem esse "fenómeno".
Posted by: ap | 04/13/2008 at 22:24