Arquivo * artigo publicado na
revista Artistas Unidos
Nº 20, Dezembro 2007 (semestral), 10€
Director: Jorge Silva Melo. 600 exemplares
Num dossier intitulado "O que é feito da crítica?" que inclui tb depoimentos de António Guerreiro, Augusto M. Seabra, Luís Miguel Oliveira, Manuel Gusmão e Pedro Boléu.
"O campo expandido da crítica"
A crítica da crítica - de arte - é em geral uma actividade ociosa, em especial quando não se sustenta numa análise objectiva das condições materiais do exercício da actividade em questão. Como é ociosa, é muito naturalmente nostálgica, idealizando um passado que se reduz a uma ou outra figura exemplar que sobreviveu ao esquecimento por ser excepção e não regra. E é também inútil, ou fatal, quando se encerra num discurso ressentido face ao curso dos acontecimentos que se deixou de entender ou acompanhar.
Com o presente crescimento exponencial do mercado de arte (nos seus vários círculos sem fronteiras definidas, privado e institucional, galerístico e museal, mercantil e dito cultural), o espaço público da crítica conhece um idêntico alargamento, modificando-se nessas novas condições as modalidades da sua prática. Nunca houve tantos críticos, nunca se escreveu e editou tanta crítica, o que se acompanha por substanciais alterações objectivas dessa actividade, a que não corresponde qualquer “natureza” imutável. Mas também parece estar confirmado que não cresceu em paralelo o número dos seus leitores.
Multiplica-se o número dos críticos de arte ao passar a servir esta designação para qualificar uma espécie de limbo onde residem os que se formaram academicamente em história de arte, museologia, curadoria e áreas afins de muitos cursos e pós-graduações, antes de exercerem (se vierem a exercer) as profissões que daí eventualmente decorram. Como a crítica de arte não corresponde a uma específica formação curricular, senão num mundo idealizado pelos mais ferozes burocratas, ela serve facilmente como genérica qualificação identitária a que se atribui, com optimismo, um vago sentido profissional. Os títulos de crítico, comissário-curador ou historiador de arte, juntos ou à vez, usam-se sem estados de alma. É-se crítico como se é artista, porque alguém se reivindica essa designação, o que é possivelmente mais legítimo no segundo caso, a boa consciência ou autocomplacência ajudando.
Tal como se diz que se desmaterializa a obra de arte, desvinculando-a da necessidade de um suporte (a musealização de restos e de documentos contraria esse desapego inicial por um suporte físico e transaccionável), também a crítica de arte se teria desmaterializado, isto é, libertado dos seus suportes indispensáveis: o texto impresso, primacialmente de origem jornalística e com ritmo periódico. Grande jornalismo, se se quiser, nos casos eleitos de Diderot (na revista “Correspondance Littéraire”), Zola, Baudelaire, Apollinaire, etc. Jornalismo também, da crónica ao ensaio, nas situações mais próximas de um Greenberg ou, por cá, Mário Dionísio e José Augusto França: colaboração em jornais, suplementos de jornais, revistas – o livro depois, talvez, em consequência ou como antologia. A esse lugar de exercício inicial – jornalístico - se associam duas características relevantes e estimáveis da prática crítica: a inteligibilidade dos textos, por um lado, o que terá a ver com convenientes qualidades da prosa; e uma certa coerência argumentativa a marcar a continuidade da intervenção escrita - coerência, consistência, persistência ou pertinácia que pode tomar o lugar de qualquer suposta isenção e ser até, pelo contrário, uma posição de tendência ou de escola. Características dispensáveis noutros modos recentes de ser crítico.
Aquele acréscimo quantitativo dos que se dizem ou fazem críticos, que se disse marcar o presente, não corresponde a uma presença mais alargada na chamada comunicação social, desde logo porque os meios que vieram concorrer com o exclusivo da imprensa, e eles são hoje dominantes (televisão e rádio), nunca concederam lugar notório e regular à crítica de arte. E também sucede que o número dos diários se foi sempre reduzindo e com ele o dos publicadores de críticas; como refere James Elkins (citando por sua vez Neil McWilliam, num recente livrinho muito divulgado, What happened to art criticism?, Prickly Paradigm Press, Chicago, 2003), havia em Paris, em 1824, 20 diários que incluiam colunas de críticos de arte e outras 20 revistas e panfletos que também cobriam as exposições. Nada de semelhante ocorre na actualidade. São números que se associam ao facto (decisivo) do público interessado não ter crescido significativamente desde os primeiros salões até ao presente, ou, por outras palavras, não ter acompanhado em proporção o aumento exponencial da população alfabetizada. O público interessado será estacionário, cresceu o “público especializado” e em particular o público profissionalizado. <De facto, as visitas aos museus e bienais contam-se agora por milhões, mas é de lazeres e turismo que se trata.>
Entretanto, para acolher o forte acréscimo numérico dos que a si mesmo se classificam como críticos de arte, foi necessário que o significado do termo se desviasse da sua condição de exercício jornalístico (a qualificação de uma prática, de um espaço real de exercício) para a ideia geral de uma actividade de mediação entre o artista e o público, a obra e o seu espectador (a designação de um lugar abstracto). De facto, trata-se de uma ideia, e de um espaço virtual, a intermediação, que se partilham com muitas outras práticas que vão da guardaria aos serviços educativos, ao balcão da loja e outros postos avulsos.
Se o crítico foi aquele que exercia a crítica nos espaços públicos a isso destinados (ou para isso criados, até por ele próprio) – e que a exercia com diferente fôlego, qualificação ou qualidade, em diferentes suportes editoriais -, a evolução que o termo conheceu alargou o seu uso a outras funções e actividades, com substancial alteração de conteúdo. O crítico já não é só (ou em especial) aquele que divulga e aprecia, escolhe, orienta, defende ou condena, explica, teoriza, etc, com base no exercício público e publicado de conhecimentos e juízos de valor, mais ou menos aprofundados; pode ser aquele que anuncia, promove ou publicita – com um tão obscuro modo de enunciar que não pode certamente ser alvo da acusação de publicidade enganosa.
Dirigir galerias, ou ser assistente de directores, ser conservador ou curador num museu, escrever os textos (críticos?) promocionais que acompanham as ilustrações de revistas luxuosas, abastecer o mercado dos prefácios de catálogos e das monografias, fazer os press-releases de uma galeria ou de um museu, cabem nas actividades que agora se reconhecem próprias de um crítico. Assessorar uma colecção particular ou institucional e negociar as suas aquisições também. As possibilidades de admissão na associação internacional de agentes da especialidade, a AICA, tornaram-se quase ilimitadas. E a acumulação de actividades e papéis assume-se sem falsos pudores. O crítico pode, numa única relação profissionalizada, orientar a programação da galeria e incentivar coleccionadores, assegurar catálogos e informações, e por fim publicar a crítica na sua ou noutra revista, preenchendo todos os lugares do circuito. Além de se ter profissionalizado (antes o seu exercício fazia-se, salvo raríssimas e breves excepções, como ocupação parcial), o crítico tornou-se ele próprio empresário, nos casos de maior êxito.
De facto, se o número dos lugares da crítica jornalística regrediu, e muito significativamente se tivermos em conta proporcional o acréscimo do mercado (de venda de obras e de frequência de público em instituições, duas pistas não coincidentes), cresceram muito fortemente as necessidades próprias desse mercado da arte, e também as maneiras de exigir a satisfação dessas necessidades. Elas expressam-se directamente nos textos promocionais que nas revistas de arte correspondem (em geral) às páginas de publicidade paga, nos prefácios e outros anexos de catálogos, desdobráveis e “flyers”, ou mais modestamente, sob anonimato ou não, nas folhas de sala e nos press-realeases das exposições, de museu ou de galeria. É esse o mercado disponível para a oferta crescente de críticos, complementando-se com a zona das visitas guiadas e a área dos serviços pedagógicos. A aparição na imprensa torna-se apenas a porta de acesso à prosa crítica de encomenda.
Não será fácil circular entre a escrita autónoma (livre?) que se exerceria na imprensa generalista ou genericamente cultural – onde pelo menos uma aparência de juízo independente se exige - e a escrita funcional, dependente, sujeita ao cumprimento do elogio exigido como condição contratual. Para viabilizar aquele trânsito, o crítico abdica generosamente da pretensão ao juízo de apreciação, demite-se da avaliação da relevância e da qualidade, desfaz-se dos seus critérios estéticos e procura apenas fazer-se intérprete da obra e expressão da intenção do seu autor. O seu papel passa a ser o de traduzir e amplificar os propósitos do “criador”, dar-lhe a palavra ou substituir-se-lhe quando este não a sabe usar. Da suposta isenção jornalística passa-se a uma neutralidade escolar, onde tudo se equivale, tudo se explica e tudo se vende. A questão, no entanto, não pode ser levianamente tratada porque diz respeito a um mercado de emprego rarificado e às condições difíceis da substistência individual no presente.
Ficará em causa a credibilidade de um tal tipo de discurso de intermediação e a autoridade do seu intérprete. Mas não é isso que mais importa, porque a realidade ventríloca dessa crítica para todo o serviço corresponde, em simétrica necessidade, ao actual descrédito da arte oficializada, que se estabeleceu como gestão de mercadorias museológicas sobre os restos mumificados da história das vanguardas – até chegar aos píncaros do luxo com os diamantes de Jeff Koons e Damien Hirst. A palavra vanguarda, que deixou de ter sentido em política (de onde veio), sobrevive acriticamente no domínio da arte, já sem ser pronunciada. Existem “restos” magníficos dessa tradição, mas a história linear e finalista em que se inscrevem como sucessivos records e becos sem saída vai sendo posta em causa. Interessará desconstruir essa história anedótica que se impôs em nome de grandes ambições e a troco do seu silenciamento, fazendo ao século XX a crítica dos seus academismos, tal como ele fez aos do século XIX, num processo que, aliás, está ainda por se estabilizar. Os academismos são outros, inversos em grande medida, pretensamente estabelecidos sobre rupturas e progressos que o não foram nem poderiam ser.
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(o texto foi escrito na sequência de um colóquio ocorrido durante a última feira ArteLisboa (2007), em que participei, e de outro que teve lugar na Gulbenkian, por ocasião da exp. dedicada a 50 anos das suas bolsas e bolseiros, em que intervim da assistência, seguramente com alguma dificuldade em fazer-me entender; e já teve extensões posteriores numa entrevista publicada na Artecapital)
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