Expresso Revista de 20- 04- 1996, pp. 102-105
" Para ver melhor "
O Museu Gulbenkian expõe as fotografias de Gérard Castello Lopes no âmbito de um programa de homenagem a Tiepolo. Celebração do acto de ver e interrogação sobre a visão numa prodigiosa encenação
HÁ cerca de um ano, Gérard Castello Lopes foi incluido numa exposição
retrospectiva dedicada à arte europeia do imediato pós-guerra, entre
1945 e 1965 — a «Arte depois do dilúvio» —, que teve lugar em
Barcelona e em Viena. Único português presente num panorama que se
estendia da pintura à arquitectura e ao design, as suas imagens
mostravam-se num primeiro sector dedicado à fotografia humanista, com
que se exprimia então a possibilidade de um optimismo renascido com a
vitória sobre a barbárie. A seu lado, sob o sub-título «As ruinas do
mundo e o renascimento do espírito», estavam Boubat e Doisneau,
Stromholm, Josef Sudek e também Robert Frank.
As ruinas portuguesas não eram as dos campos de batalha, mas as de um
tempo suspenso e de uma surda violência, e certamente também por isso
as imagens de Gérard Castello Lopes, e de alguns outros que nos anos 50
tentavam usar a fotografia para entender e transformar o mundo, só
muito mais tarde se conheceriam — Fernando Lopes escreveu em 1983 que
essas fotografias ignoradas eram o elo que tinha faltado ao cinema novo
português...
Gérard começara a fotografar em 1956, guiado pela crença na missão documental e fraterna das imagens. Esses olhares duplamente furtivos, que tinham por modelo um Cartier-Bresson recuperado para a tradição humanista, queriam descobrir um país habitado e real, segundo um projecto que ainda poderia ser tido, mesmo se indevidamente, por neo-realista.
São outras as fotografias expostas no Museu Gulbenkian, ainda que a sequência cronológica vá de 1956 até 1995, retomando algumas dessas imagens iniciais, e é o mesmo e é outro o fotógrafo que agora encontramos, distanciado dos propósitos possíveis (necessários?) nos anos 50. Aliás, desde a primeira exposição que realizou na Ether, em 1982, e desde o seu regresso à fotografia que essa oportunidade estimulou, é à transformação do olhar do fotógrafo que assistimos, num sucessivo recentramento da sua obra sobre novas aspirações e reflexões. Com passagem pela edição de Perto da Vista em 1984 (ed. Imprensa Nacional), e pelas exposições «Insignificâncias», em 1986, no Centro de Arte Moderna, e «Uma Fotografia», de novo na Ether, em 1989, sempre na dupla condição de pioneiro histórico e de criador activo no presente da fotografia.
ARTE DA ARGUMENTAÇÃO
Curiosamente, a actual exposição não tem a assinatura única de Gérard Castello Lopes e não parece ser a regra comum das exposições de autor que aqui se cumpre. As suas fotografias são mostradas no quadro de uma série de palestras de Carlos M. Couto S. C. sobre «Simulacro e Trompe- L'oeil» em homenagem a Tiepolo, embora não se trate de usar as fotografias como ilustração do discurso dedicado ao pintor veneziano, mas antes de confrontar imagens distanciadas de três séculos e problemáticas com continuidade, interrogando os enganos e verdades do ver que estariam exemplarmente presentes em ambas as obras.
Exposição de tese, ou de «pretexto», ela é o resultado de um projecto com vários autores: o fotógrafo, que cedeu as suas imagens, sem que as tenha produzido (ou sequer escolhido) para esta oportunidade, prestando-as a novas interpretações com a segura humildade de quem entende a fotografia como uma arte menor, «à maneira de uma partitura musical ou de uma peça de teatro»; Carlos Couto, que concebeu o projecto e formulou os tópicos que serviram de ideia de montagem — o labirinto, o espelho e a abóbada —; e o designer (e fotógrafo) Mariano Piçarra, que estabeleceu a encenação e determinou a escala das fotografias e os percursos do labirinto.
Uma exposição pode ser, é muitas vezes, uma exibição cerimonial de objectos estáticos e mudos, oferecidos como um fim em si mesmos. No entanto, «a arte da exposição é fazer falar os objectos entre si; a exposição é uma arte da sequência e, por conseguinte, uma arte da narração e da argumentação», como diz Michel Mélot («De l'ostentation à l'exposition», in «Les Cahiers de médiologie 1», ed. Gallimard, 1996). E a cenografia, aqui, não é um exercício de decoração acrescentado ao conjunto das imagens, uma retórica do poder que cega o visitante com a artificiosa construção de um ritual de submissão do olhar e de sacralização dos objectos. Pelo contário, é a criação de um dispositivo potenciador de uma intensificação da visibilidade de fotografias que já são por si mesmo celebrações do acto de ver e interrogações sobre a visão.
O espectáculo expositivo é, neste caso excepcional, a condição de um olhar simultaneamente deslumbrado e reflexivo, ao qual se perturbaram todos os hábitos da circulação preguiçosa, mas sem o dispersar da atenção por efeitos inúteis; é ver mais e ver melhor que importa, mesmo se é a importância do enigma, do não saber, que cada fotografia e o dispositivo visual que as associa nos revelam. Também fotógrafo, M. Piçarra apresentara no Museu do Chiado, no início do ano, uma outra «instalação» fotográfica movida por aproximáveis preocupações.
O percurso estabelece-se pela progressão através de três estações labirínticas, espaços construídos por paredes irregulares pintadas com três tons de cinzento sucessivamente mais escuros, a que corresponde uma idêntica variação da luminosidade ambiente, com a crescente intensificação dos focos directos sobre as imagens finais. As provas de exposição são sempre de grande formato (variando entre 70 cm e três metros no seu lado maior), coladas sobre suportes de alumínio que se salientam de molduras em negativo, e estão colocadas nas paredes a alturas variáveis, podendo também ver-se, em três casos, sobre o chão ou no tecto, duplicadas por espelhos. Tudo se passa como se para cada uma das imagens se tivesse procurado a dimensão ideal, ou seja, a relação de escala mais adequada do seu conteúdo, explícito ou conjectural, com o olhar e o corpo, também sempre móvel, do espectador, fazendo-se variar constantemente os pontos de vista e tornando a deambulação do visitante num itinerário argumentativo.
A cada estação corresponde a identificação de um núcleo de «jogos de linguagem» — «O olho enganado(r) e a lucidez da imprecisão», «Perspectivas viciosas e detalhes secretos», «As verdades do simulacro e a inteligência do claro-escuro» — e as respectivas razões que os sustentam são acentuadas por algumas citações, também indicativas de uma abordagem cruzada com as regras da grande decoração de Tiepolo que se prolongará nas conferências de Carlos Couto (a partir de dia 23). Dois «destaques», intitulados «Abóbora-Abóbada» (a macrofotografia de uma abóbora, Portugal, 1990) e «O Castelo ou a Origem do Mundo» (Château d'Ayres, França, 1967, erradamente datada de 1987), iluminam os dois núcleos finais.
O ESPANTO, A DÚVIDA
Se nada é acidental nem gratuito nesta montagem, também nenhum efeito demonstrativo se abate sobre as imagens expostas, nem estas se deixam apropriar por um discurso alheio. Pelo contrário, é a reflexão que Castello Lopes foi produzindo sobre as suas fotografias que aqui enforma todo o projecto.
Depois da «ingénua» convicção na eficácia do seu primeiro projecto documental, que desejou ser o «testemunho de uma realidade opressiva», G.C.L. preocupou-se com «insignificâncias» («queria que as minhas fotografias fossem identificadas e ao mesmo tempo que não significassem nada»), reivindicando o seu interesse pelas «equivalências» de Stieglitz e Minor White. Mas, enquanto os mestres americanos se tinham orientado das contingências do «real» para a expressão da intimidade emocional do artista, na busca de uma misteriosa identidade entre a «essência» das coisas e um sentido espiritual — orientalizante, no caso de M. White —, nas fotografias de Castello Lopes «a exaltante charada das aparências» é antes o desejo de reencontrar o espanto que se oferece a «um olhar atento (perante o) real quotidiano». Ou seja, entre o real a foto/ilusão, sabendo já que «a realidade da imagem é ela própria», importa «perseguir alegremente o paradoxo do visível para atingir o que todas as crianças conhecem: a magia das coisas e o mistério de tudo» (in «Reflexões sobre escala», revista «Análise», 1989).
Como disse Weston, também para G.C.L. se trata de fotografar um rochedo «de modo a que ele pareça um rochedo, mas seja mais que um rochedo», como se prova com a intrigante imponderabilidade da fotografia Portugal, 1987, agora vista sobre o chão e reflectida no tecto. No entanto, o mistério não é uma essência oculta das coisas, «verdade» fatalmente inalcansável; o fascínio do enigma, a presença exaltante do desconhecido, é condição da vontade de saber: «o físico que persegue o mistério das partículas subatómicas no seu acelerador, o astrofísico que tenta explicar o universo e os primeiros segundos da sua criação, o fotógrafo do filme Blow-up que investiga uma realidade fugidia, através de sucessivos aumentos de escala da mesma imagem, estão unidos pela mesma curiosidade: a de resolver a ancestral charada do Universo».
A fotografia, para G.C.L., é uma questão de humor, de maravilhamento e de curiosidade. Partindo de uma atenção constante aos enganos do olhar, fotografando as «coisas que 'lá estão'» e não encenando, evitando o insólito e o artificioso, o gosto de surpreender as ilusões do olhar, os paradoxos de certas aparências, é sempre um modo de ver melhor. Trata-se, como disse o fotógrafo de «despojar o meu olhar do que sei para privilegiar o que vejo».
Por isso, sem que seja determinante a identidade documental das imagens, não é impossível associá-las ainda à tradição da fotografia de viagem, quando é o Géode de La Villette, a Exposição de Sevilha ou a Ponte embrulhada por Christo (foto não incluida), as paisagens da neve ou as arquitecturas de Hong-Kong, que motivam o exercício do olhar.
Gérard Castello Lopes defende que a vantagem ontológica da fotografia é «a de escolher a dimensão da sua imagem depois de a produzir», possibilidade que se abriu quando a impressão do positivo deixou de ser feita por contacto directo com o negativo. Destinguiu, quanto aos usos do acto fotográfico, a imagem manuseável que se destina a ser contemplada à distância do braço (a ampliação de qualidade que se sustenta da virtuosidade tonal do «print» para ser um artefacto único), a imagem impressa segundo a técnica da tipografia, ou gravura-ilustração infinitamente multiplicável, e a prova de exposição, para a qual é sempre necessário procurar a escala perfeita, à distância dos efeitos de moda ou da crença num qualquer «big is beautiful».
No labirinto da fotografia, que esta exposição encena, a sabedoria é «duvidar das certezas».
«O meu percurso tem sido feito de dúvidas». «Vou tenteando».
Comments
You can follow this conversation by subscribing to the comment feed for this post.